Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0121885
Nº Convencional: JTRP00033943
Relator: AFONSO CORREIA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
SOCIEDADE
REPRESENTAÇÃO
Nº do Documento: RP200201290121885
Data do Acordão: 01/29/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 1 J CIV V CONDE
Processo no Tribunal Recorrido: 312/01
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE.
Área Temática: DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CPC95 ART456 ART458.
Sumário: I - Quando for parte na causa uma sociedade, esta pode ser condenada como litigante de má fé, apesar de a responsabilidade pelo pagamento da multa, indemnização e custas caber ao seu representante que estiver no processo.
II - Por isso, e porque a actividade processual que conta é a do representante da sociedade, tal condenação não pode ter lugar sem prévia audição desse representante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação do Porto

J....., Lda, com sede no Lugar de....., ..... intentou acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, regulada no Dec-Lei nº 269/98 de 1/09, contra U....., Lda, com sede na Zona Industrial de....., Rua..., Armazém..., ....., pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de 203.550$00, de capital e juros de mora vencidos e vincendos sobre a quantia de 166.762$00 até efectivo e integral pagamento, alegando para tal que celebrou com a Ré um contrato de compra e venda de diversas mercadorias no âmbito da sua actividade comercial que tem por objecto o comércio de artigos de mobiliário e objectos de decoração, mercadorias essas que se estão descriminadas nos documentos 1 a 3 de fls. 6 a 8 dos presentes autos.
Do total dessas facturas a ré só pagou 866.305$00, ficando por pagar o restantes 166.762$00.
Citada, contestou a Ré, alegando que foi celebrado o contrato de compra e venda referido pela Autora, que efectuou reclamações por via das quais a Autora emitiu notas de crédito juntas à petição inicial e que, não obstante as reclamações, pagou prontamente e integralmente as facturas que lhe foram apresentadas pela Autora através de três pagamentos de 200.000$0, 185.800$00 e 666.305$00.
Conclui dizendo que não só nada deve à Autora, como existe um saldo credor a seu favor no montante de 19.038$00.
Em articulado de resposta aos documentos juntos pela Ré, a A. requereu a condenação daquela em multa e indemnização por litigante de má fé, pois estava a usar como recibo documento que bem sabia ter sido emitido por engano pelos serviços da A., documento cuja devolução recusara.
Procedeu-se a julgamento e o Ex.mo Juiz, depois de julgado válido e regular o processo, ditou para a acta sentença que, apurados os factos provados e não provados, condenou a Ré no pedido e, como litigante de má fé, na multa de cinco unidades de conta e em cinquenta mil escudos de indemnização à Autora.
Inconformada, apelou a Ré pugnando pela revogação da sentença na parte que a condenou por má fé, quer porque, sendo ela uma sociedade, não podia como tal ser condenada, também o não podendo ser os seus representantes por não ouvidos; além de que se não verificava fundamento material para a decretada condenação.
Como resulta da alegação que coroou com as seguintes Conclusões
1) - A R., como pessoa colectiva que é, não pode ser condenada como litigante de má fé.
2) - Não tendo os legais representantes da R. sido ouvidos quanto à sua eventual responsabilidade, não podem agora ser condenados no pagamento de qualquer multa ou indemnização como litigantes de má fé.
3) - A R. quando foi demandada judicialmente, quase dois anos após a transacção comercial em crise nestes autos, verificando que existia um recibo nos seus arquivos que correspondia à quantia peticionada veio opor-se a tal pagamento referindo (de boa fé e de acordo com esse recibo) que já havia pago tal montante.
4) - Não tendo sido dado como provado que a R. estava ciente que não tinha efectuado o pagamento reclamado, não pode a R. ser condenada como litigante de má fé, sendo penalizada por um lapso da A.
5) - A Douta Sentença recorrida viola o disposto no nº 2 do art. 456º e no art. 458º do Código de Processo Civil.
Não houve resposta.
Colhidos os vistos de lei e nada obstando, cumpre decidir as questões submetidas à nossa apreciação, as de saber se
I - há, in casu, fundamento (material) para condenação da Ré por litigância de má fé - conclusões. 3ª e 4ª;
II - uma sociedade comercial pode ser condenada como litigante de má fé - conclusão 1ª;
III - não tendo sido ouvidos, podem os representantes da Ré ser condenados no pagamento de multa e indemnização por litigantes de má fé - concl. 2ª.
Mas antes veremos que o Tribunal recorrido teve por assentes, sem qualquer discordância - e porque não há razões para alterar tal decisão também nós assim julgamos - os seguintes
FACTOS:
1 - A Autora é uma sociedade comercial que tem por objecto o comércio de artigos de mobiliário e objectos de decoração.
2 - No exercício da actividade comercial de ambas, a Autora forneceu à Ré, a solicitação desta, por encomenda, diversas mercadorias que se encontram discriminadas nas facturas juntas e assim identificadas:
- Factura nº 0003, de 26.05.99, no valor de Esc. 756.318$00;
- Factura nº 0004, de 11.06.99, no valor de Esc. 312.500$00;
- Facturas nº 0001, de 07.07.99, no valor de Esc. 38.049$00.
3 - Em 31.08.1999 e 13.10.1999, para rectificação dos valores das facturas 0003 e 0001, a Autora emitiu a favor da Ré duas notas de crédito, num total de Esc. 73.800$00.
4 - O custo das mercadorias fornecidas, deduzido dos créditos referidos, ascendeu a Esc. 1.033.067$00 e deveria ter sido pago na data da respectiva emissão.
5 - A Autora interpelou a Ré para lhe pagar a importância referida em 4, e a Ré apenas pagou a quantia de 866.305$00.
6 - A Ré apresentou junto da Autora algumas reclamações quanto à mercadoria fornecida, tendo esta, em consequência de tais reclamações emitido as notas de crédito referidas em 3.
7 - Em 5 de Abril de 1999, e como adiantamento do fornecimento a efectuar pela Autora, a Ré pagou, por conta de tais fornecimentos, o montante de 200.000$00.
8 - Em 29 de Julho de 1999, a Ré pagou à Autora o montante de 666.305$00.
9 - A Autora emitiu o recibo nº 00013 a favor da Ré, constante de fls. 18 dos autos, no valor de 185.800$00.
10 - Tal recibo foi emitido por erro de processamento da contabilidade da Autora, por ter sido efectuado um pagamento no mesmo dia (relativamente ao referido em 8) por outra cliente da Autora, precisamente no mesmo montante, através de cheque sacado sobre a Caixa Geral de Depósitos, com o nº..... e da conta de Cristina......
11 - A Autora solicitou à Ré a devolução do recibo referido em 9, mas esta não o devolveu.
12 - A Autora logo que se apercebeu da emissão indevida do referido recibo, procedeu à rectificação do mesmo, que foi passado em nome da pessoa que efectuou esse pagamento, Cristina....., no valor de 185.800$00.
Como se vê da sentença em crise (fs. 42), a Ré foi condenada como litigante de má fé porque ... «baseia toda a sua defesa, na circunstância de ter em seu poder um documento emitido pela Autora que utiliza como prova do pagamento da quantia peticionada nos autos, mas cujo conteúdo sabia que não correspondia à verdade dos factos, já que lhe foi comunicado pela Autora que tal documento - recibo de fls. 18 - tinha sido incorrectamente emitido pelos seus serviços de contabilidade.
Aliás tal recibo diz respeito a um pagamento efectuado por uma outra cliente da Autora, através do cheque sobre a C.G.D. nº....., o que vem mencionada no dito documento, nem sequer conseguindo ou tentando (a A.) encontrar uma explicação para a referência desse cheque no recibo em causa.
Aproveitou-se portanto a Ré de um documento emitido - por lapso - pela Autora para esquivar-se ao pagamento solicitado por esta, alegando que tal pagamento foi por si efectuado, o que sabia que não correspondia minimamente à verdade.
Tal falta de fundamento da oposição não pode pois ser qualificada de simples desatenção ou desconhecimento não se tratando pois de erro grosseiro mas sim oposição conscientemente infundada.
Pelo exposto e verificada a actuação da Ré como litigante de má-fé, vai a mesma condenada em 5 UC’S de multa e ainda na indemnização à Autora no montante de 50.000$00».
Esta apreciação, pela sentença, da factualidade apurada é perfeitamente correcta e a defesa que na alegação se faz do comportamento da Ré de todo inconsistente.
Insiste a recorrente que foi a A. quem emitiu o recibo, que não foi dado como provado que a R. estivesse ciente que o montante em causa estivesse por pagar, que não consta dos autos carta ou fax a pedir a devolução do recibo, que usou o recibo porque só vinte meses volvidos sobre o alegado engano é que a A. demandou a Ré e esta, consultando os seus serviços de contabilidade, encontrou o recibo que usou de boa fé.
Esquece, porém, a recorrente ter ficado provado que a Autora emitiu o recibo nº 00013 a favor da Ré, constante de fls. 18 dos autos, no valor de 185.800$00, por erro de processamento da contabilidade da Autora, por ter sido efectuado um pagamento no mesmo dia (relativamente ao referido em 8) por outra cliente da Autora, precisamente no mesmo montante, através de cheque sacado sobre a Caixa Geral de Depósitos, com o nº..... e da conta de Cristina...... E que a Autora solicitou à Ré a devolução do dito recibo, mas esta não o devolveu.
Portanto, a Ré sabia perfeitamente não só que não tinha pago a quantia que lhe era exigida mas também que o recibo fora emitido por engano e que, pedida a devolução dele, recusara devolvê-lo. De resto, constava do recibo a referência a uma conta bancária que não era sua e o recibo era de montante superior (185.800$00) à dívida (166.762$00).
Apesar disso, em vez de, como faria qualquer pessoa de bem, devolver o recibo que lhe não pertencia, permitiu-se usá-lo pela forma que do artigo 14º da contestação se vê: não só a Ré nada deve à Autora, como existe um saldo credor a seu favor no montante de 19.038$00. Ou seja, não só a Ré não paga o que sabe dever como ainda tem a haver!!!
A litigância maldosa da Ré continuou quando a A., em resposta aos documentos juntos, apresentou cópia do cheque sacado por uma sua cliente, precisamente no valor do recibo que o refere, e requereu que a Ré juntasse cópia do cheque com que teria feito o pagamento do recibo em causa. Em vez de admitir o (agora alegado) erro, a Ré reafirmou tudo o vertido na contestação (nº 13 a fs. 34).
Se isto não é litigar de má fé não se vê o que possa sê-lo.
Analisando o aplicável Direito
Depois de estabelecer que tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir, tipifica a lei - art. 456º, nº 2, do CPC - as hipóteses de litigância de má fé:
Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) - Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) - Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) - Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) - Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Anotando esta norma, como resultante da revisão processual de 1995/96, ensina o Cons.º Rodrigues Bastos [Notas ao CPC, II, 221]:
«A má fé processual tinha, entre nós, como requisito essencial o dolo, não bastando a culpa, por mais grave que fosse. A reforma processual de 95/96 mudou esse estado de coisas, considerando reveladora da má fé no litígio tanto o dolo, como a culpa grave, que designa por negligência grave.
A parte tem o dever de não deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; de não alterar a verdade dos factos ou de não omitir factos relevantes para a decisão da causa; de não fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão; de não praticar omissão grave do dever de cooperação, tal como ele resulta do disposto nos arts. 266º e 266º-A.
Se intencionalmente, ou por falta da diligência exigível a qualquer litigante, a parte violar qualquer desses deveres, a sua conduta fá-lo incorrer em multa, ficando ainda sujeita a uma pretensão indemnizatória destinada a ressarcir a parte contrária dos danos resultantes da má fé».
Mais estabelece o art. 457º:
1 - A indemnização pode consistir:
a) No reembolso das despesas a que a má fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos;
b) No reembolso dessas despesas e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência directa ou indirecta da má fé.
O juiz optará pela indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigante de má fé, fixando-a sempre em quantia certa.
2 - Se não houver elementos para se fixar logo na sentença a importância da indemnização, serão ouvidas as partes e fixar-se-á depois, com prudente arbítrio, o que parecer razoável, podendo reduzir-se aos justos limites as verbas de despesas e de honorários apresentadas pela parte.
3 - Os honorários são pagos directamente ao mandatário, salvo se a parte mostrar que o seu patrono já está embolsado.
Comentando esta norma escreve o mesmo Autor:
«O único critério que deve nortear o juiz ao escolher a indemnização mais restrita prevista na alínea a), ou a indemnização mais lata a que se refere a alínea b), é o da intensidade da culpa ou dolo manifestado pela conduta do litigante de má fé.
Em qualquer dos casos, se a parte contrária ao responsável foi a vencedora, deve o juiz ter presente, ao fixar a indemnização, o montante da procuradoria (Cód. Custas, arts. 40º e segs.).
O reembolso a que se refere o nº 1 não tem forçosamente que se referir a todas as despesas feitas na causa, mas tão somente àquelas que a litigância de má fé produziu.
Apesar de a alínea b) encarar a ressarcibilidade dos danos em termos muitos vastos, abrangendo os prejuízos produzidos como consequência directa ou indirecta da má fé, não deve esquecer-se que se trata da responsabilidade civil e, portanto, que só são indemnizáveis os danos presentes e certos e não os futuros e eventuais.
A indemnização é sempre fixada em quantia certa. A sua determinação nunca fica reservada para execução de sentença. Se na ocasião em que profere a sentença o julgador não possuir os elementos necessários para a fixação do seu montante, lançará mão do disposto no nº 2 deste preceito, o que lhe permitirá determinar o quantitativo da indemnização devida em despacho complementar daquela decisão».
Por último e consoante o art. 458º do mesmo diploma, quando a parte for um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade, a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o seu representante que esteja de má fé na causa.
Ainda conforme Rodrigues Bastos, «O preceito prevê o comportamento de má fé do representante dos incapazes ou das pessoas colectivas, e atribui-lhe a responsabilidade pelo pagamento da multa e da indemnização a que se refere o art. 456º, indo até ao ponto de o onerar também com a responsabilidade pelas custas».
Comentando o correspondente preceito do Cód. de 1939, ensina o Prof. J. Alberto dos Reis [CPC Anotado, II, 3ª ed., 271]: «Quando seja parte na causa uma pessoa colectiva, a actividade processual que conta é a do respectivo representante. É este que age, em nome do representado; se no exercício da acção ou da defesa puder descobrir-se dolo substancial ou instrumental, há-de imputar-se ao representante, e não ... à pessoa colectiva».
«Não se trata, assim, de uma responsabilidade do representante ao lado da do representado, cumulativa com a deste, antes de uma responsabilidade em vez da deste, uma responsabilidade substitutiva.
A responsabilidade dos gerentes das sociedades (ou dos representantes da pessoa colectiva) ... é, assim, uma responsabilidade por uma actuação em nome de outrem.
Não significa esta norma que a sociedade não possa ser condenada por má fé, pois quem é condenada é a parte (art. 456º, nº 1).
Partes são as pessoas pela qual e contra a qual é requerida, através da acção, a providência judiciária [Antunes Varela e outros, Manual de Processo civil, 2ª ed., 107] e, nos termos do art. 5º, nº 2, do CPC, porque quem tem personalidade jurídica (pessoas jurídicas, singulares ou colectivas) tem igualmente personalidade judiciária, forçoso é que as pessoas colectivas, designadamente as sociedades, sejam representadas na lide por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem - art. 21º CPC.
Parte na causa não é o representante da pessoa colectiva. «As sociedades, embora agindo necessariamente em juízo por meio dos seus representantes estatutários, são as verdadeiras partes da acção, sempre que esta seja proposta em nome delas ou contra elas» [Ibidem, 110].
As sociedades por quotas, dotadas de personalidade jurídica - art. 5º do CSC - são representadas, nas acções com terceiros [Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 146], pelos gerentes - 252º, nº 1 do mesmo CSC - e é de lei - art. 258º do CC - que o negócio jurídico realizado pelo representante produz os seus efeitos na esfera jurídica do representado.
Só que a especial natureza da representação orgânica das pessoas colectivas - que não pensam, não falam, não agem por si mas apenas através dos seus representantes - levou a lei (art. 458º do CPC) a pôr a cargo do representante que esteja de má fé na causa a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização em que a sociedade, parte na causa, tenha sido condenada por via da actuação (maliciosa) do seu representante.
Como acima se disse pela voz autorizada de Alberto dos Reis, quando seja parte na causa uma pessoa colectiva, a actividade processual que conta é a do respectivo representante. É este que age, em nome do representado; se no exercício da acção ou da defesa puder descobrir-se dolo substancial ou instrumental, há-de imputar-se ao representante, e não ... à pessoa colectiva.
Quanto ao procedimento a seguir para aplicação destas normas decidiu o Tribunal Constitucional [Ac. do TC, de 22.2.95, no DR., II Série, de 17.6.95, pág. 6676]:
É certo que o art. 458º (e o mesmo sucede com o art. 456º) não prevê a prévia audição da parte que no processo se condene como litigante de má fé (ou do seu representante).
Ora - já se disse -, essa prévia audição é essencial, pois sem ela não pode impor-se-lhe uma sanção nem decidir-se a causa contra si. De outro modo, o processo deixará de ser, como o exige a ideia de Estado de direito, um processo justo e leal, e a condenação surgirá como uma condenação-surpresa (e, assim, injusta, ao me-nos em termos procedimentais).
O facto de o artigo 458º do Código de Processo Civil não prever a audição do gerente da sociedade (ou, de modo mais geral, o representante de pessoa colectiva) previamente à sua condenação como litigante de má fé não deve, porém, conduzir à recusa da sua aplicação, por inconstitucionalidade.
Como sublinha o procurador-geral adjunto nas suas alegações, «a plena garantia do princípio do contraditório poderá passar pela pró-pria audição dos que o tribunal entenda deverem ser condenados como litigantes de má fé - em termos de algum modo análogos aos que o artigo 84º, nº 6, da Lei nº 28/82 prevê - e não pela recusa de aplicação das normas que dispõem sobre os pressupostos e o âmbito da responsabilidade processual do litigante de má fé». E acrescenta o mesmo magistrado:
Cumprirá, deste modo, ao juiz, no uso dos seus poderes de direcção do processo, quando entenda que o respeito pelo princípio do contraditório e o completo esclarecimento da situação impõem necessariamente a prévia audição dos sujeitos a quem é imputada conduta processual reprovável, adequar a respectiva tramitação ao que considere serem as exigências da lei fundamental, realizando as diligências pertinentes para que o acto processual respeite integralmente os princípios da Constituição».
E concluiu o mesmo Acórdão do Tribunal Constitucional: o art. 458º deve ser aplicado «certificando-se o tribunal previamente, com observância das regras do contraditório», de que eles (os representantes das partes) actuaram no processo em termos de a sua conduta preencher o conceito de litigância de má fé, previsto no art. 456º do mesmo Código.
Este respeito do princípio do contraditório, que está ao serviço do princípio da igualdade das partes ... está presente e bem explicitado no art. 3º, n.os 2 e 3, do CPC, com as alterações introduzidas em 1995 e 1996 [Ac. do TC, de 12.5.98, no DR., II série, de 16.7.98, pág. 9887]: salvo caso de manifesta desnecessidade, não é lícito ao Juiz decidir questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Da mesma forma os art. 265º, 265ºA e 266º do CPC conferem ao juiz latos poderes de direcção e de adequação da tramitação processual prevista na lei às especificidades da causa, bem como de, em qualquer altura do processo, ouvir os representantes das partes.
Os factos, o Direito e o Recurso
Vistos os factos atrás alinhados e apreciados, é fora de dúvida existir fundamento material mais que bastante para julgar e condenar a Ré sociedade, a parte na causa, como litigante de má fé. Parte que foi ouvida (fs. 32) e respondeu (fs. 33-34) o que houve por bem sobre tal condenação logo que pedida (fs. 27). Respeitado foi, no tocante à sociedade, o contraditório. E podendo a sociedade parte na causa ser condenada por litigante de má fé - 456º, nº 1 CPC - improcede o levado às conclusões 1ª, 3ª e 4ª.
Porém, a actividade processual que conta é a do representante - art. 458º do CPC. Por isso assiste parcial razão à Recorrente quando diz ter sido desrespeitado o disposto neste art. 458º do CPC. Com efeito, a verificar-se que a má fé da sociedade na causa ficou a dever-se aos respectivos representantes, as outorgantes da procuração de fs. 20 [Ac. da Relação do Porto, de10.3.98, na Col. Jur. 1988-II-196 e 200], sobre elas recairá a responsabilidade pela multa e indemnização.
Antes de tal decisão devem ser ouvidas essas representantes, «certificando-se o tribunal previamente, com observância das regras do contraditório», de que elas (as representantes da sociedade - parte) actuaram no processo em termos de a sua conduta preencher o conceito de litigância de má fé, previsto no art. 456º do mesmo Código».
Nesta parte não pode subsistir a decisão recorrida.
Decisão
Termos em que, na parcial procedência da apelação, se revoga a decisão recorrida na parte em que condenou a sociedade Ré como litigante de má fé para que o Tribunal recorrido, ouvidas as representantes da sociedade e apreciadas as suas razões à luz dos factos apurados, decida a questão da má fé, responsabilizando, se for caso disso e nos termos do art. 458º do CPC, as representantes da sociedade - parte pela multa e indemnização que ao caso couber.
Sem custas por não devidas - art. 446º, nº 1, do CPC.
Porto, 28 de Janeiro de 2002
Afonso Moreira Correia
Albino de Lemos Jorge
Rui Fernando da Silva Pelayo Gonçalves