Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0722890
Nº Convencional: JTRP00041111
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: ARTICULADO SUPERVENIENTE
FACTOS SUPERVENIENTES
CABEÇA DE CASAL
DENÚNCIA CRIMINAL
Nº do Documento: RP200802190722890
Data do Acordão: 02/19/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO. AGRAVO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO. NEGADO PROVIMENTO AO AGRAVO
Indicações Eventuais: LIVRO 264 - FLS. 216.
Área Temática: .
Sumário: 1. Ocorrendo factos supervenientes na fase dos articulados, é no articulado seguinte que devem esses factos ser invocados; ocorrendo esses factos em fase posterior aos articulados, serão invocados em novo articulado.
2. O cabeça de casal, no âmbito dos seus poderes de administração e no exercício de um direito que lhe advém dessa qualidade, pode participar criminalmente contra pessoa que tenha praticado crime sobre bens da herança.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2890/07-2 - Apelação
Decisão Recorrida: Proc. nº …../04.2TJPRT do ….º Juízo, ….ª Secção Cível do Porto.
Recorrente: B…………….. e mulher
Recorrida: C………………….
Relator: Cristina Coelho
Adjuntos: Desemb. Eduardo Rodrigues Pires e Desemb. Canelas Brás
Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO.
B……………. e mulher, D………………. intentaram contra C………………., acção declarativa de condenação para pagamento de quantia certa, sob a forma de processo sumário, pedindo a condenação da R. a pagar-lhes a quantia de € 5.000,00, a título de indemnização pelos danos sofridos, acrescida de juros de mora desde a citação e até efectivo pagamento.
A fundamentar o peticionado, alegaram, em síntese, que:
- A R. apresentou, em 28.06.01, queixa crime contra os aqui AA., imputando-lhes a prática dos crimes de burla qualificada e falsificação de documentos, alegando que os AA. teriam depositado um cheque no dia 8.10.99, datado de 7.10.99, pertencente ao seu pai, E…………., no valor de dez mil euros, tendo, para o efeito, os AA. falsificado a assinatura do E………….., pois este encontrava-se internado no Hospital, totalmente incapacitado, vindo a falecer no dia seguinte.
- Em 11 de Setembro de 2003, os AA. foram constituídos arguidos, interrogados e aplicada medida de termo de identidade e residência, tomando, ainda, conhecimento que a R. tinha desistido da queixa, alegando não possuir dados que confirmassem a denúncia apresentada, bem como já ter sanado os problemas com os AA., sendo tal desistência irrelevante, por estarem em causa crimes de natureza pública, tudo constituindo surpresa desagradável para os AA.
- Os AA., que são, respectivamente, irmã e cunhado de F……………, que vivia em união de facto com o falecido E……….., tinham acedido ao pedido da F…………. para depositarem o cheque em questão numa conta dos AA., aberta para o efeito no Banco Melo, por esta estar impedida de sair do Hospital, a prestar assistência ao referido E………….., sendo tal depósito da vontade exclusiva deste.
- Posteriormente, durante o ano de 2002, quando solicitado, os AA. entregaram o dinheiro e respectivos juros.
- Durante todo este tempo, os AA. nunca tiveram qualquer contacto com a R., sendo falsas as declarações da R., aquando da desistência de queixa.
- Findo o inquérito, o processo foi arquivado por “inexistirem quaisquer indícios seguros de que tenha sido praticado qualquer dos ilícitos denunciados, sendo plausível que os arguidos tenham procedido de acordo com a expressa vontade do falecido pai da denunciante, veiculada pela sua companheira F………….., e no sentido de voluntariamente lhe dar a quantia de 10.000 contos ”.
- A queixa apresentada pela R., com conhecimento que não tinha qualquer fundamento, constitui ofensa ao bom nome, honra e consideração dos AA., que lhes causou prejuízos.
Regularmente citada, a R. contestou, alegando, em síntese, que apresentou queixa crime na qualidade de cabeça de casal constituída no processo de inventário por óbito de E…………….., na sequência de desaparecimento de quantia em dinheiro do acervo hereditário, que apareceu depositada em conta bancária dos AA., através de compensação por cheque feita posteriormente à morte do inventariado, sendo certo que, segundo declaração médica o mesmo estava incapacitado física e psiquicamente para proceder à assinatura e preenchimento do cheque, e termina propugnando pela improcedência da acção, e condenação dos RR. como litigantes de má fé, em indemnização nunca inferior a € 2.000,00.
Foi proferido despacho saneador, e dispensada a fixação de base instrutória.
Foi designado dia para audiência de julgamento, vindo, entretanto, os AA. a apresentar articulado superveniente, para ampliação do pedido e causa de pedir, alegando, em síntese, que:
- Na contestação, a R. veio reiterar novamente as suspeitas e denúncias dos crimes antes denunciados, e em relação aos quais apresentou desistência de queixa, praticando novo crime de denúncia caluniosa.
- O que provocou um estado de ansiedade nos AA., no qual têm vivido desde então.
- Para além de novamente a R. pôr em causa o bom nome dos AA., o que lhes causa danos.
Terminam pedindo a ampliação do pedido, com condenação da R., também, pela prática destes factos posteriores, em indemnização no montante de € 5.000,00, acrescida de juros de mora, desde a data da entrada da P.I..
Foi proferido despacho a indeferir liminarmente o articulado superveniente, em virtude de se concluir, face ao alegado no novo articulado, pela inexistência de qualquer superveniência.
Deste despacho agravaram os AA., tendo, no final, formulado as seguintes conclusões:
1. Os agravantes deduziram articulado superveniente, nos termos do disposto no art. 506º, nº 3 al. b), no qual alegaram factos susceptíveis de responsabilizar civilmente a agravada.
2. Esses factos constituem afirmações caluniosas produzidas na contestação da agravada, o que foi alegado pelos agravantes, bem como os danos daí decorrentes.
3. A contestação da agravada foi posterior à petição dos AA. e nela, a agravada não deduziu nenhuma excepção ou reconvenção.
4. Nos termos do disposto nos artigos 785º e 786º do C.P.C., a petição foi o primeiro, único e último articulado ordinário admissível aos agravantes/AA.
5. São supervenientes os factos que ocorrem após o termo do prazo marcado para os articulados ordinários do processo, conforme dispõe o artigo 506º, nº 2 do C.P.C., devendo fazer-se prova da superveniência.
6. Não carecem de prova ou alegação, os factos que o tribunal conheça em função do exercício das suas funções, nos termos do disposto no artigo 514º, nº 2 do C.P.C.
7. Pelo que o tribunal, sabendo que os factos foram produzidos na contestação e que nela não foram deduzidas excepções ou reconvenção, sabe que a petição foi o último articulado admissível aos AA. e que os factos foram supervenientes.
8. O despacho, violou, por isso, aquela disposição legal.
Terminam pedindo a revogação do despacho recorrido e a substituição por outro que admita o articulado superveniente deduzido.
A R. não contra-alegou e foi proferido despacho sustentado a decisão recorrida.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal, vindo, oportunamente, a ser proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo a R. do pedido contra ela formulado.
Discordaram desta decisão os AA., dela apelando, tendo no final das respectivas alegações formulado as seguintes conclusões:
1. A apelada denunciou os apelantes por crime de burla e falsificação de documentos, sem que tivesse dados, reconheceu mais tarde, que confirmassem as suas suspeitas;
2. Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com a intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa – art. 366º, nº 1 do Código Penal.
3. Constitui, pois, um facto ilícito criminal a conduta adoptada pela apelada.
4. A apelada apresentou queixa e desistiu dela sem ter contactado sequer os apelados ou lhes ter pedido explicações sobre o assunto.
5. Não pode o cabeça-de-casal, sob o pretexto do cumprimento dum dever, praticar um crime.
6. O tribunal a quo violou o disposto no artigo 366º, nº 2 do CP ao não considerar ilícito o facto praticado pela apelada.
7. Como aplicou mal o art. 2080 do CC, considerando-o justificativo da conduta da apelada, quando ele nada diz a esse respeito.
8. Não houve um indício que fosse da prática dos crimes de falsificação e burla !
9. Houve culpa na produção do facto ilícito, tendo o tribunal a quo aplicado mal o direito, no que diz respeito à interpretação que fez da norma do 487º, nº 2 do CC.
10. Face aos depoimentos das testemunhas G……………, H……………, I…………… e não pode deixar de considerar-se provados os factos J……………. alegados em 13, 14, 15, 16, 18, 24 e 25º.
11. Estes factos, são merecedores da tutela jurídica, pois, constituem a violação dum direito de personalidade, protegido por lei – nos termos do disposto nos artigos 70º e 496º do CC, ambos do CC, tendo sido também violadas estas normas.
12. Deve assim ser revogada a sentença proferida pelo tribunal a quo, sendo substituída por outra que condene a R. a pagar aos AA. a indemnização peticionada.
Terminam pedindo a revogação da sentença proferida pelo tribunal a quo e substituída por outra que condene a apelada ao pagamento duma indemnização que repare os danos que a apelada ilícita e culposamente infligiu aos apelantes.
Houve contra-alegações, pugnando a recorrida pela improcedência da apelação e pela manutenção da decisão recorrida.
Notificados para o efeito, os apelantes vieram declarar que mantêm interesse no agravo interposto ( fls. 343 ).
Corridos os vistos, cumpre decidir.

A – RECURSO DE AGRAVO.
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões dos recorrentes ( art. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC ) a questão a decidir no recurso de agravo é se o articulado superveniente deveria ter sido admitido.
Analisemos da bondade do recurso.
Os AA. intentaram a presente acção contra a R. com vista a serem ressarcidos dos danos sofridos em consequência de conduta ilícita desta, consubstanciada em denúncia caluniosa.
A R. contestou, tendo os AA. sido notificados da contestação em 26.01.05 ( cfr. fls. 56 ).
Designado dia para julgamento, vieram os AA., em 04.07.06, apresentar articulado superveniente, para ampliação do pedido e da causa de pedir, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 506º, nºs 1 e 3, al. b) e 273º, nºs 1 e 2 do CPC, assentando tal requerimento nos factos alegados pela R. na sua contestação.
Dispõe o art. 506º do CPC que “ 1. Os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão. 2. Dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo, neste caso produzir-se prova da superveniência. 3. O novo articulado em que se aleguem factos supervenientes será oferecido: a) na audiência preliminar, se houver lugar a esta, quando os factos que dele são objecto hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respectivo encerramento; b) nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência de discussão e julgamento, quando sejam posteriores ao termo da audiência preliminar ou esta se não tenha realizado; c) na audiência de discussão e julgamento, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior à referida na alínea anterior. 4. O juiz profere despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, rejeitando-o quando, por culpa da parte, for apresentado fora de tempo, ou quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa; ... ”.
O Mmo Juiz recorrido indeferiu liminarmente tal articulado, por concluir pela inexistência de qualquer superveniência, em face do alegado no novo articulado.
Alegam os AA. nas suas conclusões de recurso que são supervenientes os factos que ocorram após o termo do prazo marcado para os articulados ordinários do processo, e uma vez que, in casu, não foi deduzida nenhuma excepção ou reconvenção pela R., a petição inicial foi o primeiro, único e último articulado ordinário admissível aos AA., tendo os factos sido supervenientes, porque verificados na contestação.
Ocorrendo os factos supervenientes na fase dos articulados, é no articulado seguinte que devem aqueles factos ser invocados, ocorrendo os factos supervenientes em fase posterior aos articulados, serão invocados em articulado novo - por isso a lei estipula, no nº 1 do mencionado art. 506º, que os factos supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado.
Como referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, pág. 365, “a alternativa referida na lei – dedução em articulado posterior ou em novo articulado – visa abranger, no seu primeiro termo, a possibilidade de o facto (superveniente ) ocorrer ainda no período dos articulados, mas em momento posterior ao oferecimento do articulado próprio ”.
Segundo alegam os próprios AA., os factos que fundamentaram a apresentação do articulado superveniente resultam do teor da contestação apresentada pela R., em que a mesma, no dizer dos AA., “ veio reiterar as anteriores e levantar novas suspeitas na sua contestação, da prática por parte daqueles, do dito crime de burla”, sendo o comportamento da R. proibido por lei e tendo natureza de ilícito criminal, com o que provocou novos danos aos AA..
Segundo a própria alegação dos AA., os factos que determinaram a apresentação do articulado superveniente verificaram-se, pois, na contestação.
A presente acção segue a forma do processo sumário ( art. 462º do CPC ), apenas se prevendo 2 articulados – a petição inicial e a contestação -, sendo, excepcionalmente, admitida resposta, caso seja deduzida alguma excepção ou reconvenção.
Alegam os AA. que, in casu, na contestação não foi deduzida qualquer excepção, nem reconvenção, não havendo, pois, lugar a resposta, motivo pelo qual foi apresentado articulado superveniente ( nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência de discussão e julgamento).
Não podemos concordar com os AA.
Efectivamente, analisando a petição inicial e a contestação, não se poderá deixar de concluir que a R. se defendeu, nesta, não só por impugnação, mas, também, por excepção, não obstante não ter especificado separadamente as excepções que deduzia, como a lei impõe ( art. 488º do CPC ).
O dever de especificar separadamente as excepções prende-se com razões de clareza e com a concretização do princípio da cooperação e do dever de boa fé processual ( neste sentido, cfr. Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, pág. 414 ), não prevendo a lei qualquer cominação para a sua omissão, que poderá, eventualmente, e verificados os demais requisitos, ser censurável em termos de má fé processual ( art. 456º, nº 2, al. c) do CPC ).
A defesa por excepção abrange as excepções meramente processuais, que obstam à apreciação do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal ( art. 493º, nº 2 e 288º do CPC ), e as excepções materiais ou substantivas que “importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor ” ( art. 493, nº 3 do CPC ).
A propósito da defesa por excepção propriamente dita (excepção substancial) escreve Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, págs. 215 e 216 que “ nessa defesa entrarão – isto dito de uma maneira genérica e aproximada – todos os factos que possam conduzir a que o direito do autor que poderia ter nascido, efectivamente não nasceu – factos impeditivos -, ou que modificaram as condições desse nascimento ou o extinguiram – factos modificativos e extintivos. ... Mas se a distinção entre estes últimos e os factos constitutivos do direito ( de nascimento do direito – momento constitutivo do direito ) se apresenta simples e líquida, na medida em que são sucessivos ao nascimento do direito, isto é, se reportam à sua subsistência e não à sua existência, difícil se torna tal distinção quanto aos primeiros – os factos impeditivos-, por cronologicamente coincidentes com os factos constitutivos, ... . O problema dessa distinção vem a traduzir-se formalmente em saber quando é que determinada alegação é de considerar como excepção ou negação motivada. ... A directriz geral será a seguinte: na negação motivada, como se disse, ainda que haja aceitação parcial dos factos, nega-se sempre a realidade do facto constitutivo, visto se afirmar que o facto jurídico ocorrido foi um facto diverso e com diversas consequências jurídicas. Na defesa por excepção, o facto constitutivo não é negado, e tão só ( reportamo-nos, é óbvio, aos factos impeditivos ), se alegam outros que, segundo a lei, infirmam os seus efeitos no próprio acto do nascimento, ou seja, na sua raiz ”.
Ora, analisada a contestação, necessariamente se conclui que a R. se defendeu, também, por excepção, ao invocar factos legitimadores da sua conduta (a actuação no âmbito de deveres inerentes à função de cabeça de casal que desempenhava e que afastam a ilicitude da conduta), que são impeditivos do direito dos AA.
E tendo a R. deduzido excepções, teriam os AA., necessariamente, de deduzir os factos supervenientes que pretendiam fazer valer (e que, repete-se, têm a sua origem precisamente na contestação) na resposta à contestação.
A petição inicial não era, pois, o único e último articulado ordinário admissível, face à defesa excepcional deduzida, como os AA. alegam, pelo que o articulado superveniente apresentado foi manifestamente extemporâneo, por culpa dos AA., tendo de ser rejeitado.
Assim sendo, o despacho recorrido que rejeitou, liminarmente, o despacho deve ser mantido, embora por fundamento diferente.
Face ao que se deixa dito, nega-se provimento ao agravo.
B – RECURSO DE APELAÇÃO.
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões dos recorrentes ( art. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC ) são as seguintes as questões a decidir:
1ª - se a conduta da R. constituiu facto ilícito e se esta agiu com culpa;
2ª - caso se responda afirmativamente à 1ª questão, reapreciação da prova produzida relativamente aos factos alegados nos artigos 13, 14, 15, 16, 18, 24 e 25 da P.I.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
1. A Ré, na qualidade de cabeça-de-casal e herdeira de E………….., em 28 de Junho de 2001 apresentou queixa crime contra os AA., imputando-lhes a prática dos crimes de burla qualificada e falsificação de documentos (facto 1º da p.i.).
2. O respectivo processo de inventário correu os seus termos na 7ª Vara Cível do Porto, com o número 446/2000, encontrando-se a respectiva certidão do processado junta aos autos a fls. 202 e ss., dando-se o seu teor por integralmente reproduzido.
3. A Ré alegou em suma que os AA. teriam depositado um cheque em 8 de Outubro de 1999, datado de 7 de Outubro de 1999, pertencente a seu pai, E……………, no valor de dez mil contos, tendo para o efeito os AA. falsificado a assinatura deste, pois este encontrava-se internado no Hospital de St. António, totalmente incapacitado, tendo falecido no dia seguinte (facto 2º da p.i.).
4. Os AA são respectivamente irmã e cunhado de F………….. que vivia em união de facto com o entretanto falecido E…………… (facto 3º da p.i.).
5. Em 11 de Setembro de 2003, os AA. foram constituídos arguidos, interrogados e aplicadas as medidas de coacção de termo de identidade e residência (facto 4º da p.i.).
6. Nesse dia tiveram conhecimento que a Ré tinha apresentado desistência de queixa, alegando em suma não possuir dados que confirmassem as denúncias apresentadas, bem como já ter sanado os seus problemas com os AA (facto 5º da p.i.).
7. Os AA., cunhado e irmã de F…………….. que vivia em união de facto com E……………, pai da Ré, tinham acedido a um pedido de F…………… para depositarem o cheque em questão numa conta aberta para o efeito no Banco ……. em nome dos AA. (factos 7º e 8º da p.i.).
8. Em todo este tempo os AA. jamais tiveram qualquer contacto com a Ré (facto 10º da p.i.).
9. Aquando do pedido de desistência de queixa, a Ré tinha sanado os problemas com os AA. em virtude do dinheiro titulado pelo cheque pertencente a E…………., pai daquela e depositado pelos AA. numa conta aberta para o efeito ter sido restituído à herança para partilha (facto 11º da p.i.).
10. O processo de inquérito instaurado contra os AA. foi arquivado por inexistirem indícios seguros de que tenha sido praticado qualquer dos ilícitos denunciados conforme teor de fls. 11 a 16 que se dá por integralmente reproduzido (facto 12 da p.i.).
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
A presente acção insere-se no âmbito da tutela geral da personalidade.
Como escreve R. Capelo de Sousa, in O Direito Geral de Personalidade, pág. 303 a 307, “a honra juscivilisticamente tutelada abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela Natureza igualmente a todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância e atributiva a todo o homem, para além de expressões essenciais, de uma honorabilidade média em todos os outros domínios, a não ser que os seus actos demonstrem o contrário. A honra, em sentido amplo, inclui também o bom nome e a reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo ... .Engloba ainda o simples decoro, como projecção dos valores comportamentais do indivíduo no que se prende ao trato social. E envolve, finalmente, o crédito pessoal, como projecção social das aptidões e capacidades económicas desenvolvidas por cada homem. Estes bens são tutelados juscivilisticamente impondo às demais pessoas, não fundamentalmente específicos deveres de acção, mas um dever geral de respeito e de abstenção de ofensas, ou mesmo de ameaças de ofensas, à honra alheia, sob cominação das sanções previstas nos arts. 70º, nº 2 e 483º do Código Civil. ”
O direito de todos os cidadãos ao bom nome e reputação tem consagração constitucional - art. 26º da CRP.
E no art. 70º do CC consagra-se uma cláusula geral de tutela da personalidade, resultando do seu nº 2 que à responsabilidade por ofensas à personalidade são aplicáveis os arts. 483º e ss. do CC.
O art. 483º do CC estabelece o princípio geral da responsabilidade por factos ilícitos, aí se prevendo a violação de direitos de outrem e a violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, consagrando, de seguida, a lei previsões particulares que concretizam aquelas, nos arts. 484º, 485º e 486º.
Assim, dispõe o art. 483º do CC que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
São, pois, pressupostos (cumulativos) da responsabilidade civil, o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante (dolo ou mera culpa), o dano, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, pág. 416 ).
Estatui o art. 484º do CC que “ quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados”, e responde desde que se verifiquem os pressupostos definidos no art. 483º.
Ao lesado cumpre provar a culpa do autor da lesão, a qual é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso – art. 487º, nºs 1 e 2 do CC.
Aqui chegados, analisemos o objecto do recurso.
Os AA. intentaram a presente acção com vista a serem ressarcidos dos danos por si sofridos em consequência da conduta da R., que apresentou queixa contra aqueles pela prática de um crime de burla qualificada e falsificação de documentos, bem sabendo que tal não correspondia à verdade.
Concluiu-se na sentença recorrida que não houve ilicitude no acto da apelada e que esta agiu no cumprimento dos seus deveres de cabeça de casal, nem tão pouco houve culpa, atentas as circunstâncias do caso, insurgindo-se os apelantes contra este entendimento.
Alegam os recorrentes que a ilicitude do facto existiu e é de natureza criminal, consubstanciando a conduta da R. um crime de denúncia caluniosa, não podendo o cabeça de casal, sob pretexto de cumprimento de um dever, praticar um crime.
Dispõe o art. 365º, nº 1 do CP ( e não o art. 366º ) que “ quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de um crime, com a intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa ”.
O elemento subjectivo essencial da prática deste crime é a consciência da falsidade da imputação.
Ora, o tribunal recorrido deu como “não provado que a Ré tenha apresentado denúncia com o perfeito conhecimento que não tinha qualquer fundamento” (facto 22º da p.i. da resposta à matéria controvertida a fls. 223), logo faltando um dos elementos essenciais para se concluir pelo preenchimento deste tipo de ilícito criminal.
E não se diga, como referem os recorrentes, que a consciência da falsidade da imputação resulta de a R. ter declarado no processo de inquérito que não possuía dados que confirmassem as suas suspeitas, uma vez que uma coisa é querer imputar algo que se sabe não corresponder à verdade, outra coisa é não se ter meios de prova para indicar com vista a demonstrar a veracidade do facto que se imputou e que se acredita ser verdadeiro.
Por outro lado, também não corresponde à verdade que “ não houve um indício que fosse da prática dos crimes de falsificação e burla ”.
De facto, o inquérito foi arquivado por “ inexistirem indícios seguros ” e não por inexistirem quaisquer indícios.
Acresce que, “ o cumprimento de um dever, o exercício regular de um direito, a acção directa, a legítima defesa e o consentimento tolerante podem, ..., excluir a ilicitude de certos actos lesivos do direito geral de personalidade e de direitos especiais de personalidade e, como tal, funcionar como limites ao exercício dos direitos de personalidade ” – R. Capelo de Sousa, ob. cit., pág. 552 e 435 ).
Como referem, também, P. de Lima e A. Varela, in loc. cit., pág. 421, “ a afirmação ou divulgação do facto pode, no entanto, não ser ilícita, se corresponder ao exercício de um direito ou faculdade ou ao cumprimento de um dever ( ... ) ”.
A R. apresentou queixa crime contra os AA. na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu pai, E………………, considerando-se na sentença recorrida que, naquela qualidade, actuou no exercício de um dever, enquanto administradora da referida herança.
Dispõe o art. 2079º do CC ( e não art. 2080º como se refere na decisão recorrida ) que “ a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal”.
A lei não concretiza os direitos e deveres do cabeça de casal, resultando os mesmos da obrigação geral de boa administração dos bens da herança, tendente à sua conservação e defesa, e de várias disposições legais.
Sobre esta matéria, escreve Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, Vol. I., pág. 305 que “ a lei diz ao cabeça de casal que administre, impõe-lhe regras de conduta cuja inobservância é causal de responsabilidade, nenhuma retribuição lhe atribui e dispensa-se de definir em concreto o que pode fazer, o que deve fazer e lhe é defeso fazer. ... Concluir-se-á, portanto, que, colocado numa situação temporária de administrador de bens em que tem mera parte ideal (e até em que não tem parte alguma), o cabeça de casal deverá praticar os actos que sejam indispensáveis à conservação do património em partilha, exercer aquele conjunto de direitos que a lei lhe outorga especificamente com vista a essa conservação e cumprir as tarefas que diplomas vários lhe impõem em atenção à qualidade em que investido ou a que tem potencial direito ”.
Este autor continua a sua análise, enunciando e concretizando vários deveres do cabeça de casal, bem como, de seguida, enuncia, também, os seus vários direitos, ambos inerentes à conservação e defesa do património que lhe foi confiado para administrar, referindo, concretamente, que incumbe ao cabeça de casal “participar criminalmente contra qualquer pessoa que tenha praticado crime sobre os bens da herança” (ob.cit. pág. 316).
A R. agiu, pois, não só no cumprimento dos seus deveres (gerais) de administração, como cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu pai, mas ainda no exercício de um direito que lhe advém dessa mesma qualidade.
E o exercício desse direito foi legítimo, face aos elementos de que a R. dispunha, que constam do inventário, como resulta da certidão junta a fls. 202 e ss. dos autos, sendo certo que não resultou provada qualquer outra intenção menos legítima, nomeadamente a alegada pelos AA..
A R. exerceu um direito de queixa perante a autoridade policial, ficando, assim, afastada a ilicitude do acto, como se concluiu na sentença recorrida, improcedendo, nesta parte, as conclusões de recurso.
Afastada que está a ilicitude do facto, não há que indagar da verificação dos outros pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente da culpa (imputação do facto ao lesante), não se podendo deixar de referir que a questão foi correctamente analisada na sentença recorrida.
Fica, também, prejudicada a apreciação da 2ª questão (reapreciação da matéria de facto no que aos danos respeita ).
DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo e em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
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Porto, 19 de Fevereiro de 2008
Cristina Maria Nunes Soares Tavares Coelho
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
Mário João canelas Brás