Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5943/06.5TBVFR.P1
Nº Convencional: JTRP00043867
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RP201004205943/06.5TBVFR.P1
Data do Acordão: 04/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO - LIVRO 367 FLS. 62.
Área Temática: .
Sumário: I- É mais adequada, face à situação da lei e da doutrina em Portugal, a consideração do “dano biológico” como um verdadeiro dano ressarcível, mas integrado, seja numa componente do dano patrimonial, seja numa componente do dano não patrimonial, tudo dependendo das consequências do dano, respectiva relevância e, em termos jurídico-formais e práticos, da alegação das partes.
II- Incidindo o dano sobre a necessidade de aquisição ou produção de rendimentos, por parte do lesado, pode ser ressarcido atribuindo um capital a pagar de imediato e antecipadamente, mas que, por um lado, produza rendimentos, por outro, se venha a esgotar no final da vida do lesado (“vida do lesado”, e não apenas a respectiva “vida activa”, pois que, mesmo na situação de pensionista, existem, na normalidade da vida, trabalhos e actividades que se desenvolvem e que envolverão esforço necessariamente superior)
III- Tendo o lesado 70 anos de idade, à data do acidente, vista a respectiva incapacidade geral e permanente de 20%, decorrida do acidente, mostra-se justa e equitativa a quantia fixada, a este título, ao Autor, de € 12 500.
IV- Quanto ao dano não patrimonial, vistas a incapacidade permanente (20%), o “pretium doloris” (ressarcimento da dor fisica sofrida — grau 4, em 7), o dano existencial e psíquico (o dano da vida de relação e o dano da dificuldade de “coping”, ou seja, da dificuldade em lidar com a sua actual incapacidade, bem como a dificuldade nas relações sociais, a incapacidade para o desempenho das actividades diárias, de cultivo ou agrícolas, de carpinteiro, ou outras, de utilidade permanente, e próprias do passadio de vida de qualquer cidadão e de qualquer estrato social, a dificuldade em realizar as tarefas tão simples de vestir, calçar ou tomar banho, em suma, o prejuízo de afirmação pessoal, fixada num grau 2 em 5), mostra-se adequada a quantia já fixada de € 20.500.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: • Rec. – 5943-06.5TBVFR.P1. Relator – Vieira e Cunha. Decisão de 1ª Instância de 21/10/09. Adjuntos – Des. Mª das Dores Eiró e Des. Proença Costa.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo ordinário nº5943/06.5TBVFR, do …º Juízo Cível da comarca de Stª Maria da Feira.
Autor – B…………...
Ré – C………….., S.A.

Pedido
Que a Ré seja condenada a pagar ao Autor, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia de € 50 018,64, acrescidas das importâncias que se vierem a liquidar em execução de sentença pelos danos futuros previsíveis emergentes dos tratamentos, intervenções cirúrgicas, medicação, consultas, deslocações que o Autor ainda tenha de efectuar para o efeito e consequências definitivas, bem como prestações mensais a pagar a terceira pessoa que venha a cuidar dele.
Ainda condenada a pagar ao Autor os juros, à taxa legal, desde a citação.
Tese do Autor
No dia 11/3/06, cerca das 19H. e 20m., verificou-se um acidente de viação, no qual interveio o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-..-RV, conduzido por D…………. e propriedade de E……….., e o ora Autor, enquanto peão.
O acidente verificou-se enquanto o Autor peão efectuava a travessia da via na Rua Central, sentido S. Vicente – Vale, no local em que esta via entronca perpendicularmente com a Rua do Louredo, sendo que, para quem transita nesta Rua, existe um sinal de Stop para entrar no entroncamento, em sinalização vertical e horizontal.
Ora, o veículo do segurado na Ré, não respeitando a obrigação de paragem no Stop, surgiu subitamente ao peão, quando este efectuava a travessia da via, tornando inevitável o embate.
Do referido embate resultaram os extensos danos patrimoniais e não patrimoniais invocados e peticionados pelo Autor.
Tese da Ré
Impugna motivadamente a tese do Autor, para além do mais atribuindo ao peão a responsabilidade pela eclosão dos danos sofridos, por via de um atravessamento da via por forma descuidada e desatenta.

Sentença
Na sentença proferida pelo Mmº Juiz “a quo”, e no pressuposto da culpa total do condutor do veículo automóvel, a acção foi julgada parcialmente procedente e, em consequência, condenada a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 33.633,64, acrescida de juros de mora contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Mais condenar a Ré no pagamento à Autora das importâncias que se vierem a liquidar em execução de sentença relativas aos tratamentos, intervenções cirúrgicas, medicação, consultas, deslocações que o Autor ainda tenha de efectuar para o efeito do tratamento das lesões consequência do acidente dos autos, bem como das importâncias relativas a prestações mensais a pagar a terceira pessoa que dele venha a cuidar.

Conclusões do Recurso de Apelação do Autor
1ª – Atendendo a todos os factos dados como provados no tocante aos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor, bem como a propensão natural que se tem vindo a verificar no sentido da não atribuição de indemnizações miserabilísticas aos lesados, ao intenso grau de culpa do lesante pela produção do acidente, mostra-se, a este título justa e equitativa a quantia de € 27 500.
2ª – O dano biológico não pode nem deve ser fixado em quantia inferior a € 20 000.
3ª – Ao decidir nos termos constantes da douta sentença, o tribunal violou o disposto nos artºs 494º, 496º nº3, 562º, 564º nºs 1 e 2 e 566º C.Civ.

Conclusões do Recurso de Apelação da Ré (resenha):
1ª – A Recorrente não aceita a culpa exclusiva atribuída ao condutor do veículo por si seguro, impondo-se a alteração das respostas dadas aos artºs 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º (que não deveriam ter sido considerados “provados”) e 68º, 69º, 70º e 71º (que deveriam ter sido considerados “provados”) da Base Instrutória.
2ª – Tal extrai-se, para além do mais, do depoimento da testemunha D…………,
3ª – Também não aceita a “quantum” indemnizatório atribuído ao Recorrente a título de dano biológico, que em consequência do acidente adveio para o Autor uma incapacidade geral permanente de 20% e não aceita o “quantum” indemnizatório atribuído a título de danos não patrimoniais.
4ª – Na verdade, deveriam ter sido considerados “não provados” os factos vertidos nos artºs 45º, 46º, 47º, 48º, 51º, 54º e 55º da Base Instrutória, designadamente por apelo ao depoimento testemunhal do Dr. F………………...
5ª – O Autor sofria de patologias antigas que, quando muito, se agravaram com o sinistro.
6ª – Deste modo, como consequência do sinistro seria de atribuir uma incapacidade entre 5 a 10% - a existir efectivamente a incapacidade de 20%, parte dela já existiria anteriormente.
7ª – Como tal, deve também a Recorrente ser absolvida do pagamento de importâncias que se vierem a liquidar em execução de sentença relativas aos tratamentos, intervenções cirúrgicas, medicação, consultas e deslocações que o Recorrido tenha ainda de efectuar para tratamento das lesões, bem como as importâncias relativas a prestações mensais pagas ou a pagar a terceira pessoa que dele venha a cuidar.
8ª – O dano biológico deveria ter sido valorado enquanto dano não patrimonial e não como dano patrimonial; o Recorrido, à data do acidente tinha 70 anos de idade, já era reformado, e tinha um vasto historial de doenças crónicas que certamente o impossibilitavam ou reduziam de forma substancial a sua capacidade para exercer actividades que exigissem esforços acrescidos, como é a agricultura; o Recorrido não tinha saúde nem robustez bastante para o exercício de tal actividade; em sede de julgamento não ficou provado que auferisse qualquer rendimento com a sua eventual actividade agrícola.
9ª – Tendo em conta a idade do Recorrido, o seu historial clínico, a título de dano não patrimonial, no qual se inclui o dano biológico, não deveria ter sido atribuído ao Recorrido quantia superior a € 10 000.
10ª – A douta sentença recorrida violou, entre outras, as disposições dos artºs 563º, 564º, 566º e 570º C.Civ.

O Autor apresentou as respectivas contra-alegações, na qual sustenta a mesma posição já sustentada por alegações de recurso.

Factos Apurados
No dia 11/3/2006, pelas 19h. e 20m., na Rua Central, em Louredo, área de Stª Mº da Feira, ocorreu um acidente de viação consubstanciado em atropelamento de peão em que foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-RV (A).
No local do acidente a estrada é plana, com pavimento asfaltado e com a largura de 8,60m. (B).
No local do acidente, do lado esquerdo da estrada, atento o sentido S. Vicente – Vale, existe um passeio com a largura de 1,50m. (C).
A Rua Central entronca, pelo lado esquerdo, atento o sentido S. Vicente – Vale, com a Rua do Louredo (D).
A via é composta por duas faixas de rodagem destinadas a trânsito em sentido contrário, delimitadas por traço contínuo ao eixo da via, à excepção do local do entroncamento referido em D), onde o traço é descontínuo (E).
A Rua do Louredo é composta por duas faixas de rodagem destinadas a trânsito em sentido contrário (F).
Na Rua do Louredo, a anteceder o local de intercepção com a Rua Central, encontra-se um sinal vertical de paragem obrigatória (“stop”) e no pavimento encontra-se pintada a expressão “stop” (G).
Ambas as vias são marginadas por estabelecimentos comerciais e edifícios habitacionais (H).
No momento do acidente o piso estava seco (I).
O Autor seguia pelo passeio referido em C) e iniciou a travessia da Rua Central da esquerda para a direita, atento o sentido S. Vicente – Vale (J).
O veículo RV circulava na Rua do Louredo em direcção ao entroncamento com a Rua Central, por onde pretendia circular, no sentido Vale – S. Vicente (K).
A Ré prestou serviços médicos ao Autor e promoveu o seu internamento na Casa de Saúde da Boavista, em respiração assistida e sujeito a tratamentos (L).
O Autor continua em tratamento, nomeadamente de ortopedia e neurologia, sem possibilidade de total recuperação (M).
À data do acidente o Autor tinha 70 anos de idade (N).
À data do acidente, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a circulação do veículo RV encontrava-se transferida para a Ré Seguradora, por contrato de seguro titulado pela apólice nº 4100420306924 (O).
No local do acidente a estrada configura uma recta (1º).
É um local de movimento constante de veículos e peões (2º).
No momento do acidente estava de noite (3º).
No local do acidente existia iluminação pública (4º).
O Autor, antes de iniciar a travessia referida em J), imobilizou-se no passeio e olhou para ambos os lados na Rua Central (5º).
Verificou que não circulava qualquer veículo na Rua Central e não era visível qualquer veículo provindo da Rua do Louredo (6º).
O veículo RV surgiu quando o Autor já tinha percorrido 1m. na Rua Central (7º).
O veículo RV circulava a velocidade concretamente não apurada (8º e 67º).
O seu condutor seguia distraído (9º).
Ao chegar ao cruzamento referido em D) não abrandou a marcha (10º).
Não sinalizou a intenção de mudar de direcção para a direita, com o pisca-pisca (11º).
Não parou junto ao sinal de “stop” referido em G) (12º).
Em consequência foi embater no Autor (13º).
O condutor do RV só se apercebeu da presença do Autor na via quando embateu no mesmo (14º).
Em consequência do embate, o Autor foi projectado para o ar (15º).
Veio a cair a 1m. do passeio do lado esquerdo da Rua Central, atento o sentido de marcha S. Vicente – Vale (16º).
O condutor do RV prosseguiu a sua marcha (17º).
Em consequência do embate, o Autor sofreu: ferida contusa parietal direita; traumatismo torácico com insuficiência respiratória; traumatismo abdominal; fractura dos 4º a 10º arcos costais à direita; fractura do 5º arco costal à esquerda; hemo-pneumotórax bilateral; ferida contusa parietal direita; escoriações no dorso do pé direito; ferida corto-contusa no membro inferior direito e escoriações dispersas por todo o corpo (18º).
Para tratamento das lesões sofridas foi conduzido ao Hospital de S. Sebastião, em Stª Mª da Feira (19º).
Onde foi submetido a tratamento, exames radiológicos e TAC (20º).
Foram-lhe colocados drenos torácicos à esquerda e à direita (21º).
Manteve-se em insuficiência respiratória (22º).
Ficou sob respiração assistida, entubado e algaliado (23º).
Foi-lhe aplicado um colar cervical (24º).
Manteve-se internado pelo período de 22 dias (25º).
Teve alta hospitalar em 10/4/2006, com a indicação de se manter em repouso absoluto (26º).
O Autor sentia dores e dificuldade em respirar (27º).
O Autor manteve-se internado na Casa de Saúde da Boavista por 15 dias (28º).
Foi submetido a tratamentos dolorosos (29º).
Teve alta em 29/5/2006 (30º).
Nessa data ainda necessitava de auxílio mecânico para respirar (31º).
Antes do acidente o Autor era uma pessoa calma (36º).
Após o acidente, passou a ser emotivo e a irritar-se com facilidade (37º).
Tem dificuldade em fazer movimentos de expiração e de inspiração (41º).
Ao fazê-lo sente dores (42º).
O que se verifica mesmo quando se encontra em descanso e não lhe permite dormir tranquilamente (43º).
O pé e tornozelo direitos apresentam rigidez articular ao efectuar movimentos de flexão, rotação e extensão (45º).
Em consequência das lesões sofridas, os músculos do pé direito ficaram atrofiados (46º).
O que dificulta o seu movimento (47º).
Sente o pé e o tornozelo direito dormentes (48º).
Sente dificuldade em subir escadas (49º).
Ainda sente dores generalizadas e que se agravam com a mudança de tempo (50º).
À data do acidente, o Autor era um homem trabalhador e alegre (51º - tal como resulta da resposta restritiva infra adoptada).
Em consequência do acidente sente-se desmotivado, inferiorizado e complexado (52º).
Isola-se das pessoas e tornou-se taciturno e mal disposto (53º).
Necessita parcialmente do auxílio de terceiros para se vestir, calçar e tomar banho (54º - resposta restritiva adoptada nesta instância, consoante infra).
Em consequência das lesões sofridas com o acidente, o Autor ficou a padecer de uma incapacidade geral permanente fixável em 20% (55º).
À data do acidente, o Autor dedicava-se a trabalhos agrícolas e pecuários (56º).
Criava animais (58º).
Em deslocações à Casa de Saúde da Boavista para tratamentos despendeu € 663,64 (62º).
O veículo RV, à data do acidente, pertencia a E…………. e era conduzido por D…………. (65º).
O Autor procedia da berma direita da via, atento o sentido de marcha do RV (70º - tal como foi respondido o quesito nesta instância, com revogação da anterior resposta).
No local do acidente estava escuro (72º).
O Autor usava roupa escura (73º).
Antes do acidente o Autor sofria de doença pulmonar crónica, alcoolismo crónico, hipercolestrolemia, herniorrafia, hérnia diafragmática e cataratas (74º).

Fundamentos
Os recursos dos Apelantes Autor e Ré comportam a apreciação das seguintes questões:
1ª – Conhecer do bem fundado da culpa exclusiva atribuída ao condutor do veículo cujo proprietário era segurado da Ré, com a eventual alteração das respostas dadas aos artºs da B.I. 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º (que não deveriam ter sido considerados “provados”) e 68º, 69º, 70º e 71º (que deveriam ter sido considerados “provados”).
2ª – Saber se deveriam ter sido considerados “não provados” os factos vertidos nos artºs 45º, 46º, 47º, 48º, 51º, 54º e 55º da Base Instrutória, e se, pelo facto de o Autor sofrer de patologias antigas que, quando muito, se agravaram com o sinistro, como consequência do sinistro seria de atribuir tão só uma incapacidade entre 5 a 10%; também se deve por isso a Recorrente ser absolvida do pagamento de importâncias que se vierem a liquidar em execução de sentença.
3ª – Saber se o dano biológico deveria ter sido valorado enquanto dano não patrimonial e não como dano patrimonial e se, tendo em conta a idade do Recorrido, o seu historial clínico, a título de dano não patrimonial, no qual se inclui o dano biológico, não deveria ter sido atribuído ao Recorrido quantia superior a € 10 000, ou então se, como sustenta o Autor, no respectivo recurso, o dano biológico deveria ascender a € 20 000.
4ª – Finalmente, saber se os danos não patrimoniais sofridos pelo Autor, deveriam ser antes fixados na quantia de € 27 500.
Passaremos a apreciar tais questões uma por uma.
I
Analisemos a impugnação da matéria de facto, para o que foi ouvido na íntegra o suporte áudio junto aos autos, relativo ao julgamento efectuado.
No quesito 1º perguntava-se se “no local do acidente a estrada configura uma recta”. Foi respondido “provado”. Inevitavelmente, a nosso ver. Como afirmou o agente policial que participou o acidente e elaborou o esboço desenhado junto com a participação, no local a estrada desenvolve-se em recta, embora à frente exista uma curva. De resto, idêntica configuração da via foi confirmada pelas testemunhas G…………. e H…………., que se encontravam perto do local do acidente e mostraram conhecê-lo na perfeição.
Confirmamos a resposta adoptada.
No quesito 2º perguntava-se se “é um local de movimento constante de veículos e peões”. Foi respondido “provado” e novamente bem, a nosso ver. Não bastasse o que declarou expressamente nesse sentido o condutor do veículo automóvel, D………….., também o confirmou a testemunha soldado da G.N.R. I…………, que participou o acidente; em sentido ligeiramente divergente, de que “àquela hora já não haveria muito movimento”, o depoimento de H…………., o qual porém, pela respectiva singularidade e apenas parcialmente contraditório com os já apontados, não merecerá crédito para a pretendida resposta “não provado”, almejada pela Recorrente. Confirmamos também a resposta adoptada.
No quesito 3º perguntava-se se “no momento do acidente era noite”, tendo-se respondido “provado”. Ora, mais uma vez apenas H………… divergiu ligeiramente (“estava a escurecer”); o condutor do veículo declarou claramente que era noite, assim como o fez o participante I…………... Adopta-se nesta instância, por isso, resposta idêntica à já adoptada, que vai, pois, confirmada.
No quesito 4º perguntava-se se “no local do acidente existia iluminação pública” – a resposta “provado” adoptada impõe-se, por apodíctica. Todas as testemunhas ouvidas à matéria o disseram – H……….., I………… e G………….. Por isso, impõe-se outrossim confirmar a dita resposta.
No quesito 5º perguntava-se se o Autor “antes de iniciar a travessia referida em J) se imobilizou no passeio e olhou para ambos os lados, na Rua Central”. Foi respondido “provado”.
Pensamos que a resposta é a correcta – existe um tempo de espera do Autor em cima do passeio em terra, para cá das guias divisórias, relativamente à faixa de rodagem: disseram-no as testemunhas H………… e G………….., aliás presenciais do facto. Por outro lado, o que se depreende do destino do Autor é que ele pretendia seguir para sua casa, para o que teria que atravessar aquela Estrada ou Rua – declarou-o, sem contestação, seu filho, J…………. Para mais, o veículo surge subitamente da direita – o condutor D…………. diz que, quando arrancou, “só ouviu o estrondo”. Portanto, a conclusão que se pode tirar deste conjunto de depoimentos é que a travessia da via foi efectuada com os cuidados normais, mas que foi o aparecimento inopinado do veículo que causou o acidente. Sufragamos e confirmamos a resposta “provado” a este quesito mais.
A mesma ordem de razões leva a que seja confirmada a resposta “provado” ao quesito 6º, onde se perguntava se “o autor verificou que não circulava qualquer veículo na Rua Central e não era visível qualquer veículo provindo da Rua do Louredo”.
No quesito 7º perguntava-se se “o veículo RV surgiu quando o autor já tinha percorrido 1 metro na Rua Central”. Foi respondido “provado” e claramente bem: a razão decorre desde logo da aparência do esboço sem escala que acompanhou a participação de acidente; note-se que o soldado I………… esclareceu que desenhou as circunstâncias do embate com fundamento no depoimento do condutor D………….. Confirmamos pois com base nesse elemento probatório, não contraditado, ou contrariado validamente, a resposta adoptada ao quesito.
No quesito 9º perguntava-se se “o condutor do RV seguia distraído”. Trata-se de um elemento subjectivo que se retira sobretudo dos factos, da conduta desse tripulante do RV, mais que da prova directa, virtualmente impossível. Vejamos então: é o próprio condutor do veículo que afirma não ter olhado para a sua direita, quando mudou de direcção para a direita, no entroncamento – é este o melhor indício de uma condução desatenta. Confirmamos a resposta adoptada em 1ª instância.
No quesito 10º perguntava-se se “ao chegar ao cruzamento referido em D) – esse condutor – não abrandou a marcha”. Respondeu-se “provado”. É certo que aqui nos não podemos valer do depoimento do próprio condutor, que afirmou ter parado; todavia, mais central, desapaixonado e factualmente muito rico foi o depoimento da testemunha presencial G…………, que estava fora de uma loja existente no entroncamento das vias, fora do estabelecimento, e declarou peremptoriamente que o condutor não chegou a reduzir, o que é conforma com o depoimento de H…………., tendo esta declarado que não ouviu qualquer travagem. Não há dúvida que estes elementos probatórios nos levam a inclinarmo-nos para a confirmação da resposta adoptada, aliás sem qualquer rebuço, o que agora fazemos.
Idêntico acervo de razões nos fazem confirmar a resposta “provado” dada aos quesitos 12º e 13º, onde se perguntava se o condutor “não parou junto ao sinal de “stop” referido em G)” e se “em consequência, o veículo foi embater no Autor”.
Da mesma forma, é o depoimento de G…………… fulcral para se concluir pela confirmação da resposta “provado” ao quesito 11º, onde se questionava se o condutor “não sinalizou a intenção de mudar de direcção para a direita, com o pisca-pisca”; nenhum outro depoimento o contradisse, ou contradisse a respectiva razão de ciência.
Quanto às impugnadas respostas aos qq. 68º, 69º, 70º e 71º, resta acrescentar que as razões invocadas para as respostas positivas aos qq. 10º, 11º e 12º, por um lado, e 6º, por outro, fundamentam a correcta resposta negativa aos qq. 68º, 69º e 71º.
Apenas não concordamos com a resposta negativa ao quesito 70º, onde se perguntava se “o autor procedia da berma direita da via, atento o sentido de marcha do RV”. Positivamente a essa matéria se pronunciaram todas as testemunhas inquiridas ao facto, designadamente as presenciais H………… e G…………., bem como o participante I……….., que chegou ao local pouco depois da ocorrência.
Esta a parte em que a decisão fáctica vai revogada, adoptando-se a resposta provado, como acima damos conta, no elenco dos factos provados.
II
Continuando a sindicar os factos apurados, com o auxílio de toda a prova carreada para os autos, documental e testemunhal gravada em audiência.
A Ré impugna os factos provados relativos à incapacidade do Autor, resultantes das respostas positivas aos qq. 45º, 46º, 47º, 48º, 51º, 54º e 55º.
No quesito 45º perguntava-se se “o pé e tornozelo direitos apresentam rigidez articular ao efectuar movimentos de flexão, rotação e extensão”. Tal se retira da resposta dada pela perita médico-legal, designadamente a fls. 157 dos autos, resposta essa que, pelas respectivas condições de isenção, se nos afigura com razão de ciência e neutralidade mais acentuada que o depoimento em audiência da testemunha médico de medicina interna da Casa de Saúde da Boavista Dr. F…………., sendo que este se baseou em exclusivo na “nota de alta” do Hospital de S. Sebastião, de fls. 138 dos autos, e que a perita médico-legal teve acesso não apenas ao dito relatório como também ao exame integral e posterior do Autor, não sendo provável que as graves sequelas ortopédicas, ao nível da articulação do tornozelo, e que podem ter sido desvalorizadas numa primeira análise hospitalar, por não carecerem de intervenção imediata, tenham sido produzidas em ocorrência posterior ou mesmo anterior ao acidente.
Confirmamos assim a resposta positiva adoptada, tal como, em idêntica linha de raciocínio, se confirma a resposta aos quesitos 46º, 47º e 48º (“em consequência das lesões sofridas, os músculos do pé direito ficaram atrofiados, o que dificulta o seu movimento” e “sente o pé e o tornozelo direito dormentes”).
No quesito 51º perguntava-se se “à data do acidente o Autor era um homem robusto, saudável, trabalhador e alegre”.
Ora, quer os antecedentes pessoais relatados na perícia médica a que nos vimos referindo e que são longos (hipertensão, hipercolesterolémia, operação a hérnia diafragmática e inguinal, cataratas – com operação – bronquite crónica), aliás confirmados pelo clínico da Casa de Saúde da Boavista, não nos podem fazer ver no Autor uma pessoa saudável, no período de que antecedia o acidente de viação dos autos; todavia, que o Autor trabalhava o seu quintal e era alegre (facto que foi naturalmente modificado pelas sequelas neurológicas ou psiquiátricas provocadas pelo acidente e referenciadas nas respostas aos qq. 52º e 53º) foi facto confirmado pelas testemunhas ouvidas à matéria, seu filho J…………. e K………….
Portanto, nesta matéria, revoga-se parcialmente a resposta adoptada, que deverá constituir-se como “provado apenas que, à data do acidente, o Autor era um homem trabalhador e alegre”.
No quesito 54º perguntava-se se “o Autor necessita do auxílio de terceiros para se vestir, calçar e tomar banho”, matéria que foi respondida positivamente. O relatório médico-legal refere a necessidade desse auxílio como “parcial” – não vemos como não exprimir a convicção da melhor prova efectuada, com base na avaliação científica – para adoptar uma resposta que responda restritivamente ao quesito.
Assim, nesta instância propõe-se que a resposta adoptada seja do seguinte teor: “provado apenas que necessita parcialmente do auxílio de terceiros para se vestir, calçar e tomar banho”, revogando-se uma vez mais parcialmente o decidido no despacho em crise.
Finalmente o quesito 55º, onde se respondeu que, “em consequência das lesões sofridas com o acidente, o Autor ficou a padecer de uma incapacidade geral permanente fixável em 20%”. Nada existe que alterar. Esse é o critério imparcial do exame médico-legal, que aqui obviamente se mantém. Note-se que o clínico F…………, da Casa de Saúde da Boavista não contestou tal incapacidade, se fixadas as lesões tal como já as fixámos supra, sobretudo no que concerne as sequelas de ortopedia.
Confirmamos pois a resposta dada a este último quesito.
III
Os factos tal como resultam da convicção atingida nesta instância não são suficientes, obviamente, para alterar a conclusão apodíctica de que o condutor do veículo automóvel Seat Ibiza infringiu de forma clara o sinal de cedência de passagem de “Stop” (que implica paragem obrigatória à entrada de cruzamento ou entroncamento), de forma a evitar o risco de colisão, com infracção ao disposto no artº 29º nºs 1 e 2 C.Est. e 21º-B2 do Dec. Regulamentar nº 22-A/98 de 1/10 (Regulamento da Sinalização do Trânsito) e dessa forma, face às condições do embate e também à forma descuidada e desatenta como o condutor do veículo executou uma manobra de mudança de direcção à direita (sem olhar precisamente para a sua direita, onde o Autor efectuava a travessia da via), justifica-se claramente uma atribuição exclusiva de culpa ao citado condutor do veículo, na eclosão do acidente e respectivos danos.
Outrossim, dentro do condicionalismo da prova tal como resulta do fixado nesta instância, não existe qualquer espécie de razão para denegar confirmação ao decidido, no que concerne a condenação da Ré “no pagamento ao Autor das importâncias que se vierem a liquidar em execução de sentença relativas aos tratamentos, intervenções cirúrgicas, medicação, consultas, deslocações que o Autor ainda tenha de efectuar para o efeito do tratamento das lesões consequência do acidente dos autos, bem como das importâncias relativas a prestações mensais a pagar a terceira pessoa que dele venha a cuidar”.
De facto é, para além do mais, previsível que o Autor continue a necessitar de cuidados médicos em ortopedia e neurologia, para além do auxílio de uma terceira pessoa a fim de realizar actos básicos da vida diária.
IV
Apreciemos agora a questão do dano biológico, sua natureza e fundamento do valor fixado (€ 12 500).
A doutrina portuguesa, em especial pelo trabalho jurisprudencial, tem tratado este conceito de forma dispare.
Um lado, que podemos classificar como maioritário, trata o conceito como integrado no dano patrimonial, como sucedâneo de uma indemnização pela perda de capacidade aquisitiva, quando os parâmetros desta capacidade aquisitiva se não encontrem definidos ou de todo não existam (seja porque nos encontramos perante pessoas menores, ainda não entradas no mercado de trabalho, seja porque, p.e., nos encontramos, como no caso dos presentes autos, perante pessoas simplesmente já retiradas do mercado de trabalho, por via de uma idade mais avançada).
Em termos muito latos, foi este o tratamento conceptual dado ao chamado “dano biológico”, enquanto “dano biológico com reflexo patrimonial”, nos Acs. S.T.J. 1/10/09 in www.dgsi.pt, pº nº 1311/05.4TAFUN.S1, relator: Souto Moura, S.T.J. 18/6/09 in www.dgsi.pt, pº nº 81/04.8PBBGC.S1, relator: Armindo Monteiro, S.T.J. 12/11/09 in www.dgsi.pt, pº nº 258/04.6TBMRA.E1.S1, relator: Oliveira Rocha, S.T.J. 14/7/09 in www.dgsi.pt, pº nº 630-A/1996.S1, relator: Fonseca Ramos, S.T.J. 26/5/09 in www.dgsi.pt, pº nº 3413/03.2TBVCT.P1, relator: Paulo Sá, S.T.J. 19/5/09 in www.dgsi.pt, pº nº 298/06.0TBSJM.S1, relator: Fonseca Ramos, S.T.J. 23/4/09 in www.dgsi.pt, pº nº 292/04.6TBVNC.S1, relator: Salvador da Costa ou S.T.J. 1/10/09 in www.dgsi.pt, pº nº 21/01.7GTLRA.C1.S1, relator: Sousa Fonte (como podemos verificar, em função da novidade dos arestos, este é um elenco apenas exemplificativo).
De outro lado, aqueles, em menor número, que expressamente classificam o “dano biológico” como um dano autónomo, na doutrina italiana, que o vem conceptualizando, e, como direito português, como uma componente, embora autónoma, de avaliação do dano não patrimonial – “tem-se distinguido modernamente, na esteira da que também julgamos mais esclarecida jurisprudência em matéria de avaliação de danos corporais – a italiana – dentro do chamado dano corporal, o dano corporal em sentido estrito (o dano biológico), o dano patrimonial e o dano moral; e, ao contrário do dano biológico, que é um dano base ou um dano central, um verdadeiro dano primário, sempre presente em cada lesão da integridade físico-psíquica, sempre lesivo do bem saúde, o dano patrimonial é um dano sucessivo ou ulterior e eventual, um dano consequência, entendendo-se em tal contexto, não todas as consequências da lesão mas só as perdas económicas, danos emergentes e lucros cessantes, causadas pela lesão” (cf. S.T.J. 25/2/10 in www.dgsi.pt, pº nº 172/04.5TBOVR.S1, relator: Serra Batista; em idêntico sentido, S.T.J. 24/9/09 in www.dgsi.pt, pº nº 09B0037, relatora: Mª dos Prazeres Beleza, e S.T.J. 17/12/09 in www.dgsi.pt, pº nº 197/2002.G1.S1, relator: Serra Batista).
Trata-se basicamente, mesmo na lei e na doutrina italianas, de um conceito de “importação” médico-legal.
Enquanto conceito médico-legal por dano biológico entende-se uma forma de dano que se caracteriza pelo seu carácter “in se” (“danno evento statico”), por oposição ao dano à saúde, cujo enfoque cai sobre o direito de um concreto cidadão singular de desfrutar, naquele modo e tempo que lhe aprouver, de bem-estar psico-físico (“danno evento dinamico”).
Digamos que as duas componentes se completam, na avaliação do dano corporal, sendo uma a avaliação em abstracto, e a que a generalidade das pessoas faz jus, e outra a avaliação do dano sofrido por força de lesões à saúde quanto àquele cidadão concreto, considerados, v.g., a sua idade, trem de vida, vitalidade anterior, etc. (cf. Lodovico Molinari, Manuale per il Rissarcimento del Danno, CEDAM, Pádua, 2003, pg. 359).
A jurisprudência italiana passou a tratar esta matéria autonomamente, face precisamente às dificuldades suscitadas por aqueles casos em que o “dano” não podia ser avaliado como “dano moral” (o Código Civil previa um elenco de ressarcibilidade dos danos não patrimoniais apenas nos casos “determinados por lei” e aconteciam danos à saúde que a lei não previra), mas também não podia avaliar tais danos como “dano patrimonial”, face à ausência do que a lei considerava “um concreto prejuízo patrimonial” (figuremos a já falada figura do menor ou do retirado do mercado de trabalho).
É assim que o Tribunal de Génova começa, na conjugação dos artºs 32º da Constituição da Rep. Italiana e 2043º C.Civ.It., a construir a ressarcibilidade de um terceiro dano, precisamente o “direito à saúde”, enquanto dano injusto, ressarcível mas independente dos danos patrimonial ou moral (“moral” era a própria designação do Código italiano, ao contrário da designação portuguesa – dano “não patrimonial”, que aponta logo para uma possibilidade de mais ampla interpretação).
A decisão do Tribunal Constitucional Italiano nº 184/1986 consagrou definitivamente o “tertium genus” na ressarcibilidade dos danos em Itália.
Basicamente, aquilo que foi consagrado foi a tutela do direito à saúde como um direito fundamental, primário e absoluto, plenamente operante nas relações entre privados, caracterizado como “un danno di per se, anchorché non incidente sulla capacitá di produrre reddito ed anzi indipendentemente da quest´ultimo” (Cass. 6.6.1981, nº 3675, GC, 1981, 1903 – citado in Mauro Sella, La Quantificazione dei Danni da Sinistri Stradale, UTET, Turim, 2005, pg. 73).
Podemos assim assentar em que, para a doutrina italiana, existem de um lado um dano moral subjectivo, e um dano patrimonial, que são danos em sentido estrito, e, de outro lado, um dano biológico, resultante de um facto lesivo para a saúde “de per se” e constituindo uma categoria autónoma face aos anteriores: não apenas por referência à esfera produtiva, mas também por referência à esfera espiritual, cultural, afectiva, social, desportiva e a esfera de qualquer outro âmbito e modo em que o sujeito envolva a respectiva personalidade; como tal, em suma, todas as actividades em que a pessoa humana se realize (Corte Const., 18/7/91, nº 356, FI 1991, I/2967, cit. in Mauro Sella, op. cit., pg. 24).
Considerados estes parâmetros para o dano biológico, temos por mais coerente a doutrina que defende, em Portugal, que este chamado “dano biológico” pode ser enquadrado nos danos patrimoniais ou nos danos não-patrimoniais sofridos, visto que a jurisprudência não se encontra ligada a conceitos estanques e que propositadamente o artº 496º nº1 C.Civ. apenas limita a indemnização por estes danos à respectiva gravidade.
Aliás, poderíamos desde logo partir da noção de dano não patrimonial (ou moral) da doutrina: danos “insusceptíveis de avaliação em dinheiro” (Pessoa Jorge, Lições, 75/76, pg. 487).
Pois bem: entendemos por mais adequada, face à situação da lei e da doutrina em Portugal, a consideração daqueles que entendem o “dano biológico” como um verdadeiro dano ressarcível, mas integrado, seja numa componente do dano patrimonial, seja numa componente do dano não patrimonial, tudo dependendo das consequências do dano, respectiva relevância e, em termos jurídico-formais e práticos, da alegação das partes.
Neste sentido decidiram os Acs. S.T.J. 20/1/10 in www.dgsi.pt, pº nº 203/1999.9TBVRL.P1.S1, relatora: Isabel Pais Martins, S.T.J. 17/12/09 in www.dgsi.pt, pº nº 340/03.7TBPNH.C1.S1, relator: Custódio Montes, S.T.J. 25/11/09 in www.dgsi.pt, pº nº OGEBNV.S1, relator: Raul Borges e S.T.J. 27/11/09, in www.dgsi.pt, pº nº 560/09.0YFFLSB, relator: Sebastião Póvoas.
Tem sido este Colectivo da Relação do Porto do entendimento de que “incidindo o dano sobre a necessidade de aquisição ou produção de rendimentos, por parte do lesado, pode ser ressarcido atribuindo um capital a pagar de imediato e antecipadamente, mas que, por um lado, produza rendimentos, por outro, se venha a esgotar no final da vida do lesado (“vida do lesado”, e não apenas a respectiva “vida activa”, pois que, mesmo na situação de pensionista, existem, na normalidade da vida, trabalhos e actividades que se desenvolvem e que envolverão esforço necessariamente superior)” – escrevemos, enquanto relator no acórdão que proferimos no pº nº 344/06.8TJVNF.P1.
E é essa precisamente a situação do Autor – tendo mais alguns anos de vida, de acordo com os padrões médios de duração de vida, de indivíduos do sexo masculino em Portugal, sejam mais oito ou dez anos, o Autor verá diminuída a sua capacidade de realização e de mera actividade, em todas as tarefas do dia-a-dia, seja tratar do seu quintal, seja deslocar-se para conviver com amigos (o que deixou de fazer), seja, sobre o mais, precisar de ajuda (parcial) para tarefas básicas como vestir-se, calçar-se ou até tomar banho.
Não curando nós do dano a liquidar em execução de sentença, pensamos que a sentença recorrida se houve com notória prudência e moderação ao fixar este dano no quantitativo de € 12 500, a que francamente também aderimos nesta instância.
V
Finalmente no que concerne o quantitativo do dano não patrimonial.
Vem ele fixado, em 1ª instância, no montante de € 20 500.
O cálculo respectivo não pode dispensar o recurso à equidade, conforme disposto nos artºs 496º nº3 e 566º nº3 CCiv.
Na ausência de uma definição legal, a doutrina portuguesa acentua que o julgamento pela equidade “é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas; distingue-se do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição” (Meneses Cordeiro, O Direito, 122º/272).
Sublinha-se, a propósito da equidade, que:
a) opera, dentro da aplicação do Direito, como um mecanismo de adaptação da lei geral às circunstâncias do caso concreto;
b) só o juiz, e não a lei em abstracto, poderá adaptar a própria lei ao caso concreto;
c) a equidade opera não apenas a respeito de normas jurídicas, mas também no momento de apreciar a prova dos factos (Al. Nieto, El Arbitrio Judicial, Barcelona, 2000, pgs. 234 e 235).
O artº 496º nº3 C.Civ. manda fixar o montante da indemnização pelo dano não patrimonial por forma equitativa, tendo em conta as circunstâncias referidas no artº 494º CCiv., ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos, mais levando em conta, em todo o caso, quer os padrões geralmente adoptados na jurisprudência, quer as flutuações do valor da moeda (por todos, S.T.J. 25/6/02 Col.II/128).
Poderemos dizer de outro modo que, ao liquidar o dano não patrimonial, o juiz deve levar em conta os sofrimentos efectivamente padecidos pelo lesado, a gravidade do ilícito e os demais elementos do “fattispecie”, de modo a achar uma soma adequada ao caso concreto, a qual, em qualquer caso, deve evitar parecer mero simulacro de ressarcimento.
Os critérios jurisprudenciais constituem importante baliza para o raciocínio, posto que aplicáveis, ainda que por semelhança, ao caso concreto.
Não poderão todavia deixar de ser equacionados os factores de ponderação do dano levados em conta na sentença em crise, designadamente os demais factos apurados nos autos, pela gravidade que assumiram.
Afigurar-se-ia útil reelencar os factos provados, conforme supra, não fora a respectiva veemência se impor a qualquer repetição.
Ou seja, seguindo uma classificação doutrinal, meramente auxiliar de um raciocínio sobre os padecimentos morais, os autos patenteiam um dano elevado na vertente do “dano moral”, propriamente dito, não tanto com base na incapacidade permanente (20%), mas antes na vertente do “pretium doloris” (ressarcimento da dor física sofrida – grau 4, em 7) e na vertente do dano existencial e psíquico (o dano da vida de relação e o dano da dificuldade de “coping”, ou seja, da dificuldade em lidar com a sua actual incapacidade, bem como a dificuldade nas relações sociais, a incapacidade para o desempenho das actividades diárias, de cultivo ou agrícolas, de carpinteiro, ou outras, de utilidade permanente, e próprias do passadio de vida de qualquer cidadão e de qualquer estrato social, a dificuldade em realizar as tarefas tão simples de vestir, calçar ou tomar banho, que sempre e obviamente levou a cabo; em suma, o prejuízo de afirmação pessoal, que a perícia médico-legal fixou num grau 2 em 5).
Tais danos consubstanciam-se numa considerável lesão sofrida pelo Autor na sua integridade física (as dores físicas e as lesões determinantes da referida incapacidade) e psíquica (os sofrimentos e abalos psicológicos).
Para referirmos apenas alguns exemplos jurisprudenciais recentes, o Ac.S.T.J. 9/12/04 Col.III/137, considerou-se que, para um indivíduo de cerca de 60 anos, portador que ficou de I.P.P. de 50%, era adequada indemnização de € 32 430.
O Ac.S.T.J. 12/7/01 Col.III/27 considerou que “sofrendo o autor lesões por agressão réus a soco, pontapé, navalha e disparo com arma de fogo, que lhe determinaram 175 dias de doença com incapacidade para o trabalho (...), incapacidade total para a vida militar (era 1º cabo pára-quedista), incapacidade para a actividade escolar e prática de exercícios violentos, quando era atleta federado e com títulos nacionais e ibéricos, com 22 anos de idade, deve a indemnização por danos não patrimoniais ser fixada em 8.000.000$00”.
O Ac.S.T.J. 20/11/03 Col.III/149 ponderou que “tendo a Autora ficado em estado de coma e com gravíssimas lesões por todo o corpo e sido submetida a diversas intervenções cirúrgicas, com tratamentos prolongados, e ficando ela com profundas e desfigurantes cicatrizes por todo o corpo e, devido às sequelas de que ficou a padecer, completamente impossibilitada de exercer a sua profissão, será ajustada a verba de Esc. 7.500.000$00 (€ 37 409,84) como compensação dos danos não patrimoniais sofridos”.
Os exemplos doutrinários e jurisprudenciais supra, acrescendo as circunstâncias do caso concreto, mostram que a indemnização pelo dano não patrimonial do Autor, que foi fixado, na sentença recorrida, em € 20 500 se houve dentro dos parâmetros habitualmente utilizados em decisões judiciais, merecendo assim integral adesão.

A fundamentação poderá resumir-se por esta forma:
I – O conceito de “dano biológico”, de importação médico-legal, foi formulado, pela doutrina italiana (por necessidade própria, face às disposições do respectivo Código Civil), enquanto, de um lado, um dano moral subjectivo, e um dano patrimonial, que são danos em sentido estrito, e, de outro lado, um dano biológico, resultante de um facto lesivo para a saúde “de per se” e constituindo uma categoria autónoma face aos anteriores: não apenas por referência à esfera produtiva, mas também por referência à esfera espiritual, cultural, afectiva, social, desportiva e a esfera de qualquer outro âmbito e modo em que o sujeito envolva a respectiva personalidade; como tal, em suma, todas as actividades em que a pessoa humana se realize.
II – É mais adequada, face à situação da lei e da doutrina em Portugal, a consideração daqueles que entendem o “dano biológico” como um verdadeiro dano ressarcível, mas integrado, seja numa componente do dano patrimonial, seja numa componente do dano não patrimonial, tudo dependendo das consequências do dano, respectiva relevância e, em termos jurídico-formais e práticos, da alegação das partes.
III - Incidindo o dano sobre a necessidade de aquisição ou produção de rendimentos, por parte do lesado, pode ser ressarcido atribuindo um capital a pagar de imediato e antecipadamente, mas que, por um lado, produza rendimentos, por outro, se venha a esgotar no final da vida do lesado (“vida do lesado”, e não apenas a respectiva “vida activa”, pois que, mesmo na situação de pensionista, existem, na normalidade da vida, trabalhos e actividades que se desenvolvem e que envolverão esforço necessariamente superior) – tendo o lesado 70 anos de idade, à data do acidente, vista a respectiva incapacidade geral e permanente de 20%, decorrida do acidente, mostra-se justa e equitativa a quantia fixada, a este título, ao Autor, de € 12 500.
IV – Quanto ao dano não patrimonial, vistas a incapacidade permanente (20%), o “pretium doloris” (ressarcimento da dor física sofrida – grau 4, em 7), o dano existencial e psíquico (o dano da vida de relação e o dano da dificuldade de “coping”, ou seja, da dificuldade em lidar com a sua actual incapacidade, bem como a dificuldade nas relações sociais, a incapacidade para o desempenho das actividades diárias, de cultivo ou agrícolas, de carpinteiro, ou outras, de utilidade permanente, e próprias do passadio de vida de qualquer cidadão e de qualquer estrato social, a dificuldade em realizar as tarefas tão simples de vestir, calçar ou tomar banho, em suma, o prejuízo de afirmação pessoal, fixada num grau 2 em 5), mostra-se adequada a quantia já fixada de € 20.500.

Com os poderes que lhe são conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar improcedentes, por não provados, os recursos de apelação interpostos pelo Autor e pela Ré, e, em consequência, confirmar na íntegra a sentença recorrida.
Custas por Autor e Ré, na proporção de vencido.

Porto, 20/IV/10
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa