Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0716447
Nº Convencional: JTRP00041395
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: PECULATO
Nº do Documento: RP200805280716447
Data do Acordão: 05/28/2008
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 532 - FLS 21.
Área Temática: .
Sumário: No crime de peculato previsto no art. 20º da Lei34/87, de 16 de Julho, para haver dolo é necessário que o agente saiba que a apropriação acarreta uma contradição com o ordenamento jurídico geral da propriedade e queira, apesar disso, realizar o tipo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 6447/07-1


Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
No Tribunal Judicial de Montalegre foi julgado em processo comum e perante Tribunal Singular, o arguido B………., devidamente identificado nos autos, tendo a final sido proferida decisão que o condenou pela prática de um crime de peculato, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 1º, 3º, alínea i) e 20º, n.º 1, todos da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro, por referência aos artigos 375º e 386º, n.º 1 e n.º 3, ambos do Código Penal) na pena de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão e na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 4,00 (quatro), num total de € 240,00 (duzentos e quarenta).

Inconformado com tal decisão, o arguido recorreu para esta Relação, formulando, em síntese, as seguintes conclusões (transcrição):

“1ª – A matéria de facto dada como provada, apesar de não corresponder à realidade, não é suficiente para justificar a existência de um crime de peculato, previsto no art. 20º, n.º 1 da Lei 34/87, de 16 e Julho, alterada pela Lei 108/2001, de 28 de Novembro, nem no art. 375º, n.º 1 do Código Penal, pois não se provou que o arguido, tendo-lhe sido emprestado, se apropriou ilicitamente ou ilegitimamente do cheque dos autos, que a importância nele aposta se destinasse ao pagamento de quaisquer materiais ou obras realizadas ou a realizar pela Junta de Freguesia de C………., ou por virtude das funções que exercia como Secretário da referida autarquia, se tivesse, antes do empréstimo, assenhoreado, quer do cheque, quer do dinheiro nele expresso e que não tivesse intenção de pagar essa quantia. Estes factos que constam da participação e da acusação não foram considerado provados, e só com base na existência deles se poderia valida o que foi decidido.

2ª – Conforme se verifica a fls. 193 e seguintes, a convicção do Tribunal resultou daquilo que disse o arguido e a testemunha D………. . Tanto um como outro mereceram o maior crédito. Isso leva a que a confissão do arguido tenha de ser aceite e valorada na íntegra. Como ele afirmou que o dinheiro lhe tinha sido emprestado pelo Presidente e pelo Tesoureiro e só não o pagou porque não lhe foi aprovado um crédito que havia solicitado a um banco, mas sempre teve intenção de pagar dívida, acrescentando que nunca o cheque lhe fora confiado para, usando a qualidade de Secretário, procedesse ao pagamento de materiais e obras a Junta, tais afirmações estão em contradição com o sentido vertido nas alíneas c), d), e) e f), ode se conclui que ele se apropriou dessa importância e que a teve à sua disposição a fim de, na referida função, a destinar a despesas da Junta.
Igualmente não estão conformes ao conteúdo da alínea k), onde se diz que só o cheque foi pedido de empréstimo e que o arguido teve necessidade de recorrer a esse meio porque o empréstimo bancário que ele solicitara não fora aprovado.
A testemunha D………. informou, com toda a clareza, que o Presidente da Junta lhe dissera que emprestara o dinheiro em discussão ao arguido.
Por outro lado, as duas testemunhas de acusação, o Presidente o Tesoureiro, as únicas pessoas que participaram nos factos, depuseram de modo tão ilógico e incoerente que não foi possível acreditar neles, concluindo-se que faltaram nitidamente à verdade.

3ª – Fazendo o confronto entre as referidas provas e a decisão, nota-se, com a maior clareza, que não houve uma apropriação ilícita ou ilegítima do dinheiro em causa, mas sim um mútuo do mesmo, não tendo havido, de modo algum, o crime de peculato.

4ª – Se alguma actividade criminosa se atribui ao arguido, não é peculato puro, mas antes um peculato de uso, pois o dinheiro foi-lhe emprestado e ele usou-o, mas não quis ficar com ele definitivamente, sendo sempre sua intenção restituí-lo, tanto assim que, por transacção entre a Junta e ele, foi acordado pagar em 30 do corrente mês, com juros, todos os danos causados (fls. 12), cujo comprovativo protesta juntar oportunamente aos autos.

5ª – A confissão do arguido, sobretudo nos pontos (…) porque se encontram confirmados pela testemunha D………. e pela informação da E………. e não foram contrariados por nada constante no processo e nem por qualquer outra pessoa inquirida e ainda o depoimento da referida testemunha D……… (…) não estão correctamente julgados, exigindo decisão diversa, ou seja, a absolvição do crime de peculato e a condenação, se tal for possível, pelo crime de peculato de uso, ou absolvê-lo do primeiro e mandá-lo acusar e pronunciar pelo segundo, nos termos do art. 359º do C. P. Penal.

6ª – Mesmo admitindo, por mera hipótese, que o arguido cometeu o crime de peculato, deverá valorizar-se devidamente a confissão, o pagamento correspondente, o facto de ser este o primeiro crime que praticou, estar socialmente integrado, não se ter apercebido aquando da prática dos factos, da gravidade do acto, já terem decorrido seis anos após o dia dos acto, e, consequentemente, a pena, que peca por excesso, ser reduzida para menos do limite mínimo, ou seja, para menos de três anos e, assim reduzida, suspensa na sua execução.

7ª – A douta sentença recorrida, ao decidir como decidiu, aplicou erradamente os artigos citados na 1ª Conclusão, devendo antes aplicar os princípios “in dubio pro reo” e “quid on est in autis non est in mundo”, absolvendo o arguido, ou nos termos da 4ª Conclusão, enquadrar, sendo isso possível, o acto no art. 376º, n.º1 do C. Penal, aplicando uma pena de multa ou, optando pela de prisão, ser a mesma suspensa. Considerando haver crime de peculato puro, fazendo uso das circunstâncias invocadas na clausula 6ª deverá aplicar-se também o previsto no art. 50º e seguintes e 72º do C. Penal, condenando o arguido em pena de prisão inferior a 3 anos, suspendendo-se a sua execução”.

A JUNTA DE FREGUESIA DE C………., demandante civil, requereu a fls. 239 que ficasse a constar dos autos “que o arguido não cumpriu nem pagou o estipulado em transacção, pelo que se encontra assim prejudicada e não ressarcida a Junta de Freguesia de C………. (…)”.

O MP junto do Tribunal “a quo” não respondeu à motivação apresentada.

Nesta Relação, o Ex.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da absolvição do arguido do crime por que foi condenado, nos seguintes termos: “É pois manifesto, a nosso ver, que os factos provados não preenchem os elementos objectivos do tipo legal de crime pelo qual o arguido foi condenado, devendo, por isso, ser absolvido do crime”.

Colhidos os vistos legais, procedeu-se à audiência.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto

A sentença recorrida deu como assente a seguinte matéria de facto:

Factos Provados

a) Em data não concretamente apurada, mas em finais do mês de Agosto de 2001, F………. e G………., respectivamente presidente e tesoureiro da Junta de Freguesia de C………., durante o mandato de 1997 a 2001, assinaram o cheque n.º ………., da conta n.º ……….., de que a Junta de Freguesia de C………. é titular.

b) De seguida, e uma vez que o arguido exercia as funções de secretário dessa mesma Junta de Freguesia, F………. e G………. entregaram o referido cheque ao arguido, para que este preenchesse os demais elementos (valor, data, local de emissão e à ordem de quem era passado).

c) No dia 30 de Agosto de 2001, o arguido depositou na E………., na conta titulada pela sua mulher, o cheque n.º ……….., sacado sobre a conta n.º ……….., de que a Junta de Freguesia de C………. é titular, no valor de novecentos e cinquenta mil escudos, fazendo sua essa quantia e gastando-a em proveito próprio.

d) Actuou o arguido com o propósito de fazer sua tal importância monetária, bem sabendo que a mesma pertencia à Junta de Freguesia de C………. .

e) Aproveitou-se das funções de secretário que, na altura, desempenhava naquela Junta de Freguesia e depositou aquela quantia na conta de que a sua mulher era titular, integrando-a na sua esfera patrimonial e gastando-a em proveito próprio, apesar de bem saber que tinha disponibilidade da mesma para satisfazer interesses colectivos e não pessoais.

g) Agiu sempre livre e conscientemente, bem sabendo que toda a sua conduta era proibida e punida por lei.

h) O arguido é casado; tem 6 filhos, todos maiores à excepção de um filho que é menor; é funcionário público, desempenhando as funções de técnico de acção escolar e aufere o salário mensal de € 800,00; a mulher do arguido trabalha como auxiliar de acção educativa e aufere o salário mensal de € 450,00; vivem em casa própria; tem uma despesa média mensal de € 100,00 com electricidade, gás e água; tem as despesas correntes com alimentação e vestuário; tem um automóvel de marca Golf; paga de prestação mensal concernente à contracção de um empréstimo para a habitação no montante de € 330,00; paga de prestação mensal concernente à contracção de um empréstimo na E………. a quantia de € 110,00 e tem o 9.º ano de escolaridade.

i) O arguido tem os seguintes antecedentes criminais: o arguido foi condenado em 19/04/2002, pelo crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punível pelo disposto no artigo 292º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 2,00 e na pena acessória de inibição de condução de veículos motorizados pelo período de 3 meses e 15 dias, praticado em 04/04/2002; o arguido foi condenado em 03/02/2003, pelo crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punível pelo disposto no artigo 292º, n.º 1, do Código Penal; na pena de 110 dias de multa à taxa diária de € 3,00 e na pena acessória de inibição de condução de veículos motorizados pelo período de 12 meses, praticado em 25/01/2003; o arguido foi condenado em 07/02/2003, pelo crime de desobediência, previsto e punível pelo disposto no artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de € 3,00, praticado em 24/05/2002; o arguido foi condenado em 04/10/2002, pelo crime de dano com violência, previsto e punível, pelo disposto no artigo 214.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão suspensa pelo período de 2 anos, praticado em 04/10/2001; o arguido foi condenado em 15/05/2006, pelo crime de desobediência, previsto e punível pelo disposto no artigo 348.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na pena de 5 meses de prisão, suspensa por 1 ano, praticado em 23/04/2006.

j) A partir de finais de Setembro de 2001 deu-se início ao arranjo do ………., na aldeia de C………. e o tanque a que se referem os autos foi construído em finais de Abril ou princípios de Maio de 2002 (artigo 4.º da contestação apresentada pelo arguido à acusação pública).

k) O arguido/demandado e a ofendida/demandante realizaram a transacção que consta da acta de fls. 182 a fls. 184, homologada por sentença, na qual o arguido/demandado se comprometeu a pagar a quantia de € 5.984,00 à ofendida/demandada até ao dia 30 de Setembro de 2007.

Factos que resultaram provados, invocados pelo arguido em sede de audiência de discussão e julgamento através das declarações prestadas por si:

k) O cheque referido na acusação pública foi pedido por empréstimo, pelo arguido ao então presidente da Junta de Freguesia de C………., F………. e ao tesoureiro G………. porque o arguido tinha solicitado um empréstimo ao banco e esse empréstimo não foi aprovado.

l) O presidente da Junta de Freguesia de C………., F………. e o tesoureiro da Junta de Freguesia de C………. em 2001, permitiram que o arguido, Secretário da referida Junta de Freguesia utilizasse o montante aposto no cheque identificado na acusação pública para uso particular do mesmo.

m) O arguido não tem dúvidas que o dinheiro que depositou na conta titulada pela sua mulher através do cheque identificado na acusação pública é dinheiro público.

n) O arguido utilizou o montante aposto no cheque identificado na acusação pública e depositado na conta da sua mulher para pagar à H………. uma dívida que se vencia em 31 de Agosto de 2001.

o) O cheque identificado na acusação pública tinha aposto o selo branco da Junta de Freguesia de C………. .

Factos Não Provados.
Da audiência de discussão e julgamento não resultou provado que:
O cheque identificado na acusação pública se destinasse ao pagamento das obras de construção de um tanque público para a povoação de C………. e o …………., obras essas que já se tivessem iniciado.
O arguido tivesse levantado na E………., o cheque identificado na acusação pública.
O cheque se destinasse ao pagamento de obras públicas.

Convicção do Tribunal.
Para decidir a matéria de facto nos termos sobreditos o Tribunal procedeu à análise crítica e conjunta da prova, nomeadamente das declarações do arguido prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, dos depoimentos das testemunhas e dos documentos juntos aos autos.
Concretizando.
No que concerne aos factos a), b), c), d), e) e f), o Tribunal formou a sua convicção nas declarações do arguido que explicou ao Tribunal que o cheque lhe foi entregue pelo presidente e pelo tesoureiro, da altura da Junta de Freguesia de C………., porque aquele tinha pedido dinheiro da junta, emprestado para poder depositar na conta da sua mulher, a fim de haver fundos necessários para que fosse descontado um outro cheque subscrito pela sua mulher. O arguido contava com o dinheiro de um empréstimo que tinha solicitado ao banco, mas tal empréstimo foi recusado.
Por seu turno, referiu a testemunha G………. que assinou o cheque identificado na acusação pública e, que tal cheque seria utilizado para negócios da junta, mas não referiu quais. Mais esclareceu que quem fez o último pagamento da construção do referido tanque foi o posterior presidente da Junta de Freguesia de C………. porquanto as obras se prolongaram. Depois acaba por referir que deixava sempre cheques assinados porque ia para a América e, como tal, era necessário que os cheques ficassem prontos para os negócios da junta. Mas também elucidou o Tribunal que nesse ano não foi para a América no dia 31 de Agosto mas em Outubro. Termina negando que o cheque identificado na acusação pública tivesse por destino um empréstimo ao arguido mas diz que não sabe para que foi assinado o cheque e que confiava no presidente da junta. Já a testemunha F………., presidente da Junta de Freguesia de C………., na altura dos factos descritos na acusação pública, referiu ao Tribunal que o arguido era o secretário da junta e que fazia a escrita, esclareceu o Tribunal que os cheques ficavam assinados em branco sem selo branco nem nada e os cheques ficavam no livro de contas e quem tinha acesso ao livro de contas era o secretário (o arguido).
Os cheques ficavam assim para o que fizesse falta, nomeadamente, para pagar materiais ou obras. Mais referiu que o cheque ficou em Agosto e que ficou para as obras no ………., mas que não houve autorização para o arguido utilizar o dinheiro. Que em Dezembro de 2001 não rectificaram as contas porque tinham confiança uns nos outros.
Ora destes depoimentos e, fazendo uso do critério imposto pelo artigo 127.º, do Código de Processo Penal não se afigura verosímil que o cheque descrito na acusação pública tivesse sido deixado assinado em branco sem qualquer destino. Acresce que a testemunha F………. afirmou que o cheque referido na acusação pública não tinha o selo branco da junta de freguesia, mas apurou-se precisamente o contrário, como resulta da informação da E………. de fls. 172. Esta testemunha confrontada com este facto apenas respondeu que tinham deixado um cheque assinado por si e pelo tesoureiro, da altura, com selo branco e um outro cheque também assinado nos termos acima descritos sem selo branco.
Ora, não se entende esta versão.
Acresce que a testemunha D………. depôs no sentido que o F………. a procurou para que o seu filho (o arguido) lhe pagasse o dinheiro que lhe tinha emprestado, que era dinheiro do povo. Esta testemunha mereceu a credibilidade do Tribunal, pois depôs de forma segura e coerente. Em suma, as testemunhas G………. e F………. negam que tenham feito qualquer empréstimo ao arguido e, este nas suas declarações afirma que estes lhe emprestaram o dinheiro, não obstante saber que era dinheiro público.
Ora da prova produzida em audiência de discussão e julgamento o Tribunal ficou convencido que o presidente da junta e o tesoureiro na altura acederam ao pedido do arguido e deixaram-no utilizar o dinheiro aposto no cheque descrito na acusação pública para uso particular. Pois o depoimento dos mesmos não se afiguram credíveis, desde logo porque deixam um cheque assinado em branco, com o selo da junta de freguesia sem um destino específico e, nem sequer colhe o argumento que o tesoureiro assinava os cheques e os deixava em branco para o que fosse necessário porque se deslocava para a América porque foi a própria testemunha G………., tesoureiro, na altura da prática dos factos, a esclarecer o Tribunal que nesse ano só foi para a América em Outubro, sendo certo que o cheque foi assinado em Agosto do mesmo ano; acresce que nem o presidente de então, nem o tesoureiro que deixaram um cheque assinado, com o selo da junta de freguesia se preocuparam com o que foi feito a esse cheque, do mesmo modo, que não se preocuparam com as contas que teriam de ser realizadas em Dezembro de 2001 e, ambos sabiam que as obras referidas na acusação pública foram pagas pelo posterior presidente, logo, nunca poderiam ter sido pagas através do referido cheque. Em contrapartida, a versão do arguido é corroborada pelo depoimento da testemunha D………. e pela informação da E………. de fls. 172. Relativamente ao facto a) e c), o Tribunal teve, ainda, em consideração a cópia do cheque junto aos autos a fls. 4 e, os documentos juntos aos autos a fls. 51 e a fls. 62, que retratam a transacção do cheque e a apresentação do mesmo a pagamento. E, face ao facto b), o Tribunal também se estribou nos documentos de fls. 142 a fls. 147, que atestam a qualidade do arguido como secretário da Junta de Freguesia de C………. . Cumpre ainda, referir que no facto b), considerou-se provado que o arguido depositou o valor aposto no cheque identificado na acusação pública na conta da sua mulher, porque foi o próprio arguido a afirmar tal facto em audiência de discussão e julgamento. Ou seja, o arguido apropriou-se do dinheiro aposto no cheque mediante depósito do mesmo e, não porque tenha procedido logo ao seu levantamento como vem na acusação pública. O tribunal ao abrigo do disposto no artigo 58.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pode proceder a esta alteração factual, em virtude de tal alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
Quanto ao facto g), o Tribunal baseou-se nas declarações do arguido quanto aos seus elementos pessoais.
Relativamente ao facto h), o Tribunal teve em consideração o C.R.C. do arguido junto aos autos de fls. 133 a fls. 137.
No que concerne ao facto i) e aos factos não provados, o Tribunal baseou-se na maioria dos depoimentos das testemunhas que confirmaram que as obras descritas na acusação pública foram realizadas mais tarde e, ainda no depoimento da testemunha G………. que referiu que não sabia para que se destinava o cheque.
No que tange aos factos k), l), m), n), e o), já se encontram devidamente fundamentados, pelo que não se repetirá à sua fundamentação.
Finalmente, não resultou provado que o arguido tivesse procedido ao levantamento do cheque descrito na acusação pública na E………., mas sim ao seu depósito na conta da sua mulher, como o arguido confessou e resulta dos documentos juntos aos autos de fls. 51 e 62. Resta, ainda referir que se considerou como não provado que o cheque se destinava ao pagamento de obras públicas, mas às obras descritas na acusação pública. Como é evidente, o dinheiro da Junta de Freguesia de C………. destina-se ao pagamento de obras públicas e ao que seja necessário para os interesses da colectividade, mas não se destinará certamente a ser depositado na conta da mulher do arguido para que este se aproprie dele e o utilize em proveito próprio.

2.2. Matéria de direito
O arguido insurge-se contra a sentença recorrida, pondo não só em causa a matéria de facto dada como provada, mas também a sua qualificação jurídica, bem como a medida da pena encontrada, que considera excessiva.

Nesta Relação, o Ex.º Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, na parte relativa à qualificação jurídico-penal dos factos provados, concluindo ser “manifesto (…) que os factos provados não preenchem os elementos do tipo legal de crime pelo qual o arguido foi condenado, devendo, por isso, ser absolvido do crime.” – Fls. 259.

Apreciaremos desde logo a questão da qualificação jurídica dos factos dados como provados, uma vez que se tais factos não integrarem a prática do crime imputado ao arguido, o mesmo deve ser absolvido, ficando necessariamente prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso.

i) Crime de peculato
A decisão recorrida condenou o arguido como autor material de um crime de peculato, p. e p. pelos artigos 1º, 3º, alínea i) e 20º, n.º 1, todos da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 108/2001, de 28/11, por referência aos artigos 375º e 386º, n.º 1 e n.º 3, ambos do Cód. Penal).

O artigo 20º da referida Lei 34/87, de 16/07, (Crimes da responsabilidade de titular de cargo político) tem a seguinte redacção:
“Artigo 20.º
(Peculato)
1. O titular de cargo político que no exercício das suas funções ilicitamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer outra coisa móvel que lhe tiver sido entregue, estiver na sua posse ou lhe for acessível em razão das suas funções, será punido com prisão de três a oito anos e multa até 150 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2. Se o infractor der de empréstimo, empenhar ou, de qualquer forma, onerar quaisquer objectos referidos no número anterior, com a consciência de prejudicar ou poder prejudicar o Estado ou o seu proprietário, será punido com prisão de um a quatro anos e multa até 80 dias.”

São assim elementos objectivos do tipo: (i) a qualidade de titular de cargo político; (ii) a prática dos factos no exercício das suas funções; (iii) a ilícita apropriação, em proveito próprio ou de terceiro, (iv) de dinheiro ou coisa móvel (v) que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse, ou lhe seja acessível em razão das suas funções.

A ilicitude da apropriação, de modo idêntico à ilegitimidade da apropriação no crime de abuso de confiança, é elemento objectivo do tipo (“no furto o que tem de ser ilegítima é a intenção de apropriação” – FIGEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense, Tomo II, pág. 105).

O dolo (elemento subjectivo do tipo) é necessário relativamente à totalidade dos elementos do tipo objectivo (ob. cit. pág. 107). Daí que também tenha que haver dolo quanto à ilicitude da apropriação, o que equivale a dizer que o agente deve saber que a apropriação acarreta uma contradição com o ordenamento jurídico geral da propriedade e querer, apesar disso, realizar o tipo (ob. cit. pág. 105). Assim, o dolo está excluído se a pessoa julga que tem o direito de dispor da coisa, sendo essencial a inversão do título pela própria essência do abuso de confiança, e isso implica que a consciência da ilicitude seja elemento do tipo – SOUSA E BRITO, Direito Penal II, Capítulo I, A Parte Especial do Direito Penal, Edição policopiada da Faculdade de Direito de Lisboa, pág. 87.

O que caracteriza o tipo – em confronto com o furto, onde também há uma apropriação, – é que no abuso de confiança e no peculato (este último, uma forma qualificada do primeiro) não há subtracção. No abuso de confiança há detenção da coisa por parte do próprio agente; o crime ocorre depois da detenção da coisa, quando o agente, invertendo o título jurídico que legitima essa detenção (precária), se arroga dono da mesma.

No caso dos autos, há apenas um elemento do tipo de verificação óbvia: a qualidade de titular de cargo político (o arguido exercia as funções de Secretário da Junta de Freguesia de C……….). Todos os demais requisitos não se verificam, como facilmente se mostrará.

A matéria de facto dada como provada foi muito diferente da que constava da acusação. Na acusação, em termos sintéticos, imputava-se ao arguido o seguinte: em data não concretamente apurada de finais de Agosto de 2001, o Presidente e o Tesoureiro da Junta de Freguesia de C………. assinaram e entregaram ao arguido (Secretário da Junta) um cheque para que este preenchesse os demais elementos e procedesse ao pagamento de obras a cargo da Freguesia. Com o cheque em seu poder, o arguido levantou-o e gastou o dinheiro em proveito próprio.
Porém, o que se provou em audiência de julgamento foi um conjunto de factos completamente diferente:
“ (…)
k) O cheque referido na acusação pública foi pedido por empréstimo pelo arguido ao então presidente da Junta de Freguesia de C………., F………. e ao tesoureiro G………., porque o arguido tinha solicitado um empréstimo ao banco e esse empréstimo não foi aprovado.

l) O presidente da Junta de Freguesia de C………., F………. e o tesoureiro da Junta de Freguesia de C………. em 2001, permitiram que o arguido, Secretário da referida Junta de Freguesia, utilizasse o montante aposto no cheque identificado na acusação pública para uso particular do mesmo.

m) O arguido não tem dúvidas que o dinheiro que depositou na conta titulada pela sua mulher, através do cheque identificado na acusação pública, é dinheiro público.

n) O arguido utilizou o montante aposto no cheque identificado na acusação pública e depositado na conta da sua mulher para pagar à H………. uma dívida que se vencia em 31 de Agosto de 2001.

o) O cheque identificado na acusação pública tinha aposto o selo branco da Junta de Freguesia de C………. .
(…)”

Como claramente decore dos factos dados como provados, o Presidente da Junta de Freguesia e o respectivo Tesoureiro, a pedido do arguido, cederam-lhe o cheque em causa nos autos, para que ele o usasse em proveito próprio. “O cheque foi pedido por empréstimo pelo arguido” (al. k) e o Presidente e o Tesoureiro permitiram que o arguido utilizasse o montante aposto no cheque para uso particular do mesmo (al. l), tendo sido desse modo que se deu a “aquisição” (do cheque e do montante que o mesmo titulava). Ora, pedir um empréstimo e receber um cheque, nessas condições, não é uma “ilícita apropriação”. O “mútuo” é um negócio jurídico lícito e corrente no giro civil e comercial.

Ainda que o arguido tivesse pedido o “dinheiro” (titulado pelo cheque) com intenção de não pagar, ainda assim tal não implicava a prática do crime de peculato. O que caracteriza este crime (tal como o abuso de confiança) é uma especial forma de desviar a coisa dos fins a que estava legalmente afecta quando foi entregue ao agente, ou se lhe tornou acessível. Ora o arguido só teve acesso ao cheque depois de este lhe ter sido entregue, com a finalidade de o levantar em proveito próprio. A desafectação dos fins a que se destinava o dinheiro – despesas da Junta de Freguesia – ocorreu antes da entrega ao arguido. A haver crime de peculato, o mesmo só poderia ter ocorrido quando o Presidente e o Tesoureiro decidiram emprestar o dinheiro (da Junta de Freguesia), pois só nessa ocasião poderia ter ocorrido a “ilícita apropriação”.

Nesta perspectiva, a conduta do arguido (e só essa está em causa nos autos) só seria ilícita na medida em que tivesse contribuído para a sua ocorrência (empréstimo), como co-autor ou cúmplice. Porém, a matéria de facto provada não permite tal enquadramento. Provou-se apenas que o arguido pediu um empréstimo e que o mesmo lhe foi concedido, mas já não se provou que o arguido, de algum modo, determinou o referido empréstimo. Na verdade, nada consta na matéria provada que indicie que o Presidente e o Tesoureiro não agiram com total liberdade de acção, com possibilidade de lhe terem recusado o empréstimo.

Deste modo, é manifesto que os factos dados como provados não podem subsumir-se no tipo de ilícito por que foi condenado o arguido (peculato), impondo-se a sua absolvição.

3. Decisão
Face ao exposto, os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a sentença recorrida, absolvendo o arguido B………. do crime por que foi condenado.
Sem custas.

Porto, 28 de Maio de 2008
Élia Costa de Mendonça São Pedro
Pedro Álvaro de Sousa Donas Botto Fernando
José Manuel Baião Papão (vencido, conforme declaração de voto que junto)


________________________
DECLARAÇÃO DE VOTO
(Recurso nº 6447/07)

Decidiria pelo reenvio total ao abrigo do nº 1 do art. 426º do Cód. Proc. Penal, para serem supridos os seguintes vícios que na minha perspectiva são detectáveis na sentença recorrida:
I – Contradição insanável da fundamentação das alíneas b) e e) da enumeração de factos provados decorre que o Presidente e o Tesoureiro assinaram e entregaram o referido cheque ao arguido para este completar o seu preenchimento inclusivé quanto ao valor, uma vez que o arguido exercia as funções de Secretário dessa mesma Junta de Freguesia, e que este se aproveitou das funções de Secretário que na altura desempenhava para efectuar o depósito – da quantia – na conta de que era titular sua mulher, apesar de bem saber que tinha disponibilidade da mesma para satisfazer interesses colectivos e não pessoais, com o que se coloca o circuito do cheque desde, inclusive, a sua assinatura e entrega ao arguido, no âmbito do seu exercício funcional na Junta de Freguesia e no contexto das finalidades próprias desta.
Já nas alíneas k) e l) se afirma que o cheque foi pelo arguido pedido por empréstimo e que o Presidente e o Tesoureiro permitiram que ele o utilizasse para uso particular.
Ou seja, totalmente fora do âmbito do seu exercício de funções e das finalidades próprias da Junta.
E se porventura fossemos tentados a harmonizar estas duas proposições fácticas pela consideração de que a segunda poderia ter sido subsequente à primeira – ou seja que o pedido de empréstimo do cheque foi subsequente à sua entrega -, é a própria motivação da sentença que não deixa margem para tal harmonização, ao reportar a convicção do Mº Juiz «a quo», sobre a verificação do empréstimo, ao momento da assinatura e entrega do cheque ao arguido.
II – Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Na alínea l) dos factos provados diz-se que o Presidente e o Tesoureiro permitiram que o arguido utilizasse o montante aposto no cheque, quando é certo que, segundo a aliena b), o montante só veio a ser aposto pelo arguido já depois da entrega do cheque por aqueles.
Ficou por averiguar a razão por que foi relegada para o arguido a aposição do valor no cheque e não foram os próprios signatários - Presidente e Tesoureiro – a fazê-lo, pondo assim a conta bancária da Junta de Freguesia ao abrigo de qualquer risco ou imprevisto, tanto mais que o Mº Juiz refere na motivação que estes não mais “se preocuparam com o que foi feito a esse cheque”.
Trata-se aqui de uma questão que é subsidiária da colocada no ponto “I”, mas que temos por relevante para sindicar substantivamente a formação da convicção pelo Tribunal «a quo».
Ressalvo a entrelinha “do cheque”.

Porto, 28 de Maio de 2008
José Manuel Baião Papão