Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0451356
Nº Convencional: JTRP00035946
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
JUSTO IMPEDIMENTO
Nº do Documento: RP200405100451356
Data do Acordão: 05/10/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Área Temática: .
Sumário: I - Se a parte requereu ao tribunal que as cassetes gravadas, que solicitou, fossem enviadas, pelo correio, para o escritório do mandatário - em ...... - pendendo o processo na comarca de ........ - e o tribunal não se pronunciou e não remeteu as cassetes, a parte assim impossibilitada de apresentar alegações sobre a matéria de facto, pode invocar justo impedimento.
II - A omissão do envio, nas circunstâncias referidas, exprime violação do princípio da cooperação, entre o tribunal e a parte.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1 – B.............. e mulher, C............., na acção sumária nº .../.., da comarca de ............, em que contendem com “D..............”, interpuseram o presente recurso de agravo da decisão, aí, proferida, em 04.11.03, por via da qual foi indeferida a pretensão dos, ora, agravantes de ser ordenado o envio, para o escritório do respectivo mandatário, das cassetes gravadas naquele Tribunal e que contêm a cópia da gravação áudio da prova produzida na audiência de discussão e julgamento, de cuja decisão final interpuseram recurso de apelação, como tal admitido, e em que, além do mais, se propõem impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Culminando as respectivas alegações, formularam as seguintes conclusões:
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1ª - Todo e qualquer despacho que possa prejudicar as partes deve ser comunicado às mesmas;
2ª - Todo e qualquer requerimento apresentado aos autos pelas partes deve ser objecto do competente despacho;
3ª - O Tribunal “a quo” não notificou, como devia, os recorrentes do despacho de fls. 134;
4ª - A secretaria não notificou, como devia, os recorrentes para procederem ao levantamento das cassetes, nem, de igual modo, procedeu ao envio das mesmas pelo correio;
5ª - Os recorrentes tentaram, em tempo útil, obter as aludidas cassetes e, face à inércia do Tribunal “a quo”, renovaram o seu pedido, uma semana antes de expirar o prazo para oferecerem as suas alegações;
6ª - Enquanto os recorrentes não receberam as aludidas cassetes, existe justo impedimento para praticarem o acto de oferecimento de alegações;
7ª - O Tribunal “a quo” violou o princípio da cooperação e o dever da boa fé processual;
8ª- O douto despacho recorrido violou o disposto nos arts. 145º, nº5, 146º, nº/s 1 e 3, 229º, nº1, 253º, nº1, 266º, nº1, 266º-A, 522º-B e 698º, nº6, do CPC.
Não foram apresentadas contra-alegações, tendo a decisão agravada sido objecto de tabelar sustentação.
Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2 – Eis, antes de mais, a factualidade provada e tida por relevante para a apreciação e decisão do recurso:
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a) – Os, ora, agravantes, RR. na sobredita acção, interpuseram, em 01.07.03, recurso de apelação da sentença respectiva, sendo o mesmo admitido, por douto despacho de 15.07.03, àqueles notificado através de carta registada expedida, em 16.09.03;
b) – Por requerimento entrado, em 22.09.03, os apelantes solicitaram ao Tribunal, tendo em vista a elaboração da respectiva alegação de recurso, que se dignasse mandar executar cópias da gravação áudio que documenta a audiência final, juntando, para o efeito, três cassetes virgens;
c) – Tal requerimento foi deferido, por douto despacho de 22.09.03, que não foi objecto de qualquer notificação;
d) – Por requerimento entrado, em 21.10.03, após historiarem o ocorrido e noticiarem não terem, até ao momento, recebido as cassetes, nem terem sido notificados para as levantar, impetraram os recorrentes que fosse ordenado o respectivo envio para o escritório do seu mandatário, sito em ............., devendo, ainda, ser-lhes concedido “um prazo não inferior a 10 dias, contado da recepção das cassetes, para apresentarem as suas alegações”;
e) – Sobre tal requerimento e acompanhando a “conclusão” dos autos, em 22.10.03, informou a Secção de Processos “que as cassetes se encontram gravadas desde o dia 24.09.03, aguardando-se que “alguém” as venha levantar ou as solicite através de outro meio, como, aliás, normalmente acontece...”;
f) – Após a apelada se pronunciar, em 31.10.03, pelo indeferimento da pretensão dos apelantes, foi, em 04.11.03, proferida a decisão agravada, a qual imputou à parte, exclusivamente, a não obtenção das cassetes em tempo útil e se estribou nos seguintes e essenciais fundamentos: a) – “Compulsados os autos resulta que, em momento algum, os RR. manifestaram vontade que as mesmas” (cassetes) “lhes fossem enviadas por um determinado modo ou que seriam levantadas pelas partes nas instalações do Tribunal, sendo certo que não compete aos senhores funcionários «adivinhar» se as partes irão levantar as cassetes ou, pelo contrário, pretendem que as mesmas lhes sejam enviadas; b) – Por outro lado, não se compreende como é que a parte (no caso os RR.) aguardaram cerca de um mês (desde que requereram a gravação das cassetes até ao requerimento ora apresentado) sem virem formular a presente pretensão, sendo certo que é à mesma que incumbe diligenciar pela obtenção das cassetes em causa”.
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3 – Sendo o âmbito e objecto do recurso delimitados (para além das meras razões de direito e das questões de oficioso conhecimento) pelas conclusões formuladas pelo recorrente – arts. 660º, nº2, 664º, 684º, nº3 e 690º, nº1, todos do CPC (como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados) – emerge como questão a apreciar e decidir, no âmbito do presente agravo, a de saber se, contra o decidido e na linha do propugnado pelos agravantes, pode considerar-se ter ocorrido justo impedimento determinante da não apresentação tempestiva das alegações da apelação por aqueles, previamente, interposta. Com a implícita consequência de aos mesmos vir a ser facultada (em que termos, adiante se verá) a omitida apresentação das alegações respeitantes ao recurso de apelação.
Vejamos:
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4 – I – Começar-se-á por reconhecer o melindre da questão suscitada, quer em si mesma considerada, quer pelo risco de apressada generalização da solução que vier a ser encontrada a hipóteses em tudo estranhas à debatida nos autos.
Não obstante, propendemos a considerar que a douta decisão agravada não será a que melhor se ajusta à global ponderação dos preceitos legais que lhe deverão servir de enquadramento.
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II – Conforme art. 146º, nº1, “Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto”.
Por seu turno, dispõe o art. 266º, nº1, que “Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”. Ao que se acrescenta, no respectivo nº4, que “Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo”.
Paralelamente, estipula o art. 7º do DL nº 39/95, de 15.02., que regula a “Documentação e Registo da Prova”: “Durante a audiência são gravadas simultaneamente uma fita magnética destinada ao tribunal e outra destinada às partes (1). Incumbe ao tribunal que efectuou o registo facultar, no prazo máximo de oito dias após a realização da respectiva diligência, cópia a cada um dos mandatários ou partes que a requeiram (2) O mandatário ou a parte que use da faculdade a que alude o nº anterior fornecerá ao tribunal as fitas magnéticas necessárias (3)”.
Em anotação ao sobredito art. 266º, tece o Des. Abrantes Geraldes (in “Temas da Reforma do Processo Civil”, 2ª Ed., págs. 88 a 92), designadamente, as seguintes considerações: “O realce dado a este princípio corresponde, nas intenções do legislador, à introdução de uma nova cultura judiciária que potencie o diálogo franco entre todos os sujeitos processuais...” (...) “Trata-se de uma clara evolução relativamente ao sistema anterior, uma vez que apenas as normas gerais dos arts. 265º e 519º do CPC continham um afloramento do princípio da cooperação, mas de sentido único, já que apenas previam o dever especial de colaboração das partes e seus mandatários em relação ao tribunal” (...) “O dever de cooperação não se concentra apenas na fase da condensação e do saneador, manifestando-se ainda noutros domínios, constituindo disso exemplos:...O dever de providenciar pela remoção dos obstáculos que qualquer das partes encontre quando se trata de obter algum documento ou informação (art. 266º, nº4)” (...) “Os funcionários de justiça são (é desnecessário sublinhar) elementos indispensáveis ao bom funcionamento dos tribunais e à dignificação da actividade jurisdicional, constituindo elos de toda uma cadeia necessária à definição de direitos e à sua efectivação...Dai que também esse sector deva ser movido pelos mesmos interesses que servem de orientação aos restantes intervenientes processuais, desenvolvendo o seu trabalho em estreita colaboração com os magistrados, mas acudindo igualmente às necessidades dos advogados, das partes, das testemunhas, etc.” (...) “O princípio da cooperação, previsto no art. 266º, deve orientar os comportamentos processuais dos magistrados, dos mandatários e das próprias partes, mas, por maioria de razão, deve servir de padrão de comportamento dos funcionários de justiça...Se até as pessoas que não são parte na causa estão sujeitas ao dever de cooperação, como resulta do art. 519º, é bom de ver que deve o exemplo ser dado por quem, no tribunal, exerce funções intermediárias entre o juiz e os cidadãos ou os advogados”.
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III – Transpondo as transcritas disposições legais, ensinamentos e princípio para o caso debatido nos autos, é nosso entendimento que, conquanto melindrosa, a questão suscitada deve ser encarada e resolvida por uma perspectiva diferente da que mereceu acolhimento na 1ª instância.
Na realidade, é facto que, atendendo à similar previsão constante do art. 7º, nº2 do citado DL nº 39/95, o ilustre advogado dos apelantes deveria ter como adquirido que, no máximo de oito dias após a entrada em juízo do seu requerimento de 22.09.03, o tribunal teria de facultar-lhe as solicitadas cassetes gravadas. Representando a correspondente inércia, no período compreendido entre 30.09.03 e 21.10.03, um seu menos diligente desempenho do mandato que lhe fora conferido, a consequenciar que, até esta última data, não pode considerar-se que os respectivos mandantes tenham estado impedidos da atempada prática de um acto processual (apresentação das alegações respeitantes ao recurso de apelação) por via de um evento (indisponibilidade das cassetes gravadas) que não lhes seja imputável.
Já não assim, porém, quanto ao remanescente período do prazo de que dispunham para apresentação das respectivas alegações, o qual, atento o disposto no art. 698º, nº/s 2 e 6, só findaria, em 29.10.03.
É que, ao contrário do exarado (certamente, por mero lapso) na douta decisão agravada, os apelantes, através do seu referido requerimento de 21.10.03, solicitaram que fosse ordenado o envio, pelo correio e para o escritório do seu mandatário (sito em .............), das cassetes gravadas. Sendo nosso entendimento, como resulta do exposto, que, em homenagem ao sobredito princípio da cooperação entre o tribunal (aqui representado pelos Ex.mos funcionários de justiça) e as partes processuais, tal pretensão dos apelantes deveria ter sido deferida, embora fazendo entrar, posteriormente, as correspondentes despesas de correio em regra de custas, nos termos do disposto no art. 32º, nº1, al. a), do C. C. Jud..
Sendo, pois, de considerar como procedente a invocação de justo impedimento quanto à apresentação das alegações, relativamente ao período do respectivo prazo subsequente a 21.10.03 (ou seja, oito dias de prazo normal), uma vez que, durante tal período, os apelantes estiveram impedidos de apresentar as respectivas alegações, em consequência de evento que, nos termos que ficaram descritos, não lhes pode ser imputado, mas tão só ao tribunal (aqui se fazendo consignar que tudo deve ter a sua justa medida: na linha do preceituado no art. 266º, nº4, não será a mera e infundada invocação de uma qualquer dificuldade que deverá despoletar a cooperação do tribunal, aí, prevista, que o mesmo é dizer que, utilizando o caso dos autos, não se impõe idêntico tratamento para um senhor advogado que tenha escritório em ............ – ou, “ad absurdum”, na cidade da ......... – e para outro que, v.g., o tivesse, em ............, ............ ou ...........).
Procedem, assim, parcialmente e da forma exposta, as conclusões formuladas pelos agravantes.
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5 – Em face do exposto, acorda-se em conceder parcial provimento ao agravo, revogando-se, correspondentemente, a douta decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que ordene o envio, pelo correio e para o escritório do ilustre advogado dos agravantes, das cassetes gravadas, dispondo estes, do prazo suplementar e normal de oito dias, contados da expedição das cassetes, para apresentação das alegações respeitantes ao recurso de apelação por si interposto.
Sem custas (art. 2º, nº1, al. g), do C. C. Jud.).

Porto, 10 de Maio de 2004
José Augusto Fernandes do Vale
António Manuel Martins Lopes
Rui de Sousa Pinto Ferreira