Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1028/09.0PRPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: CRIME DE FURTO
CRIME DE DANO
CONCURSO APARENTE
CRIME MEIO
Nº do Documento: RP201011101028/09.0PRPRT.P1
Data do Acordão: 11/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I- O critério do bem jurídico tutelado pelas normas violadas permite afastar a relação de concurso sempre que o agente vai praticando vários ilícitos numa sucessão de etapas com vista à obtenção de um resultado criminoso não contemplado nas acções já realizadas.
II- Numa tal situação, o concurso aparente só deverá ser equacionado no caso da indispensabilidade dos crimes instrumentais para o cometimento do “crime fim”: sem a verificação dessa indispensabilidade instrumental, os crimes que antecedem o crime fundamentalmente visado pelo agente conservam a sua autonomia, devendo ser punidos no âmbito do concurso real de infracções.
III- O agente que, para se apoderar de bens que estavam no interior de um veículo automóvel, forçou o vidro da porta com um ferro, causando estragos no valor de 30 €, comete (apenas) um crime de Furto qualificado (art. 204.º, n.º 1, al. b), do CP).
IV- A indispensabilidade do crime de Dano [“crime meio”] relativamente ao almejado crime de Furto [“crime fim”] retira-lhe autonomia, podendo passar a funcionar como circunstância qualificativa deste.
V- O significado do “crime meio” desaparece nos casos em que é tido por secundário em relação ao “crime fim” e desde que se mostre associado a este através de uma forma de aparição regular, ou forçosamente necessária: mas se a gravidade do “crime meio” não for mínima, do excesso resultará um concurso efectivo com o “crime fim”.
VI- Se, por força do disposto no n.º 4 do art. 204.º, do CP, não houver lugar à qualificação do crime de Furto, então existirá concurso efectivo entre o crime de Dano e o crime de Furto (simples).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1028/09.0PRPRT.P1
1ª secção
Relatora: Eduarda Lobo
Adjunta: Des. Lígia Figueiredo
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
O Ministério Público deduziu acusação em processo comum e com intervenção do Tribunal Colectivo contra o arguido B…….., imputando-lhe a prática, em concurso real e como reincidente, de um crime de furto qualificado p. e p. no artº 204º nº 1 al. a) e um crime de dano p. e p. no artº 212º, ambos do Cód. Penal.
O processo veio a ser distribuído à 1ª Vara Criminal do Porto.
Entendendo que os factos imputados ao arguido integravam apenas a prática pelo arguido, em autoria material e como reincidente, de um crime de furto qualificado p. e p. no artº 204º nº 1 al. a), 75º e 76º, todos do Cód. Penal, o Sr. Juiz daquela Vara Criminal declarou a incompetência desse Tribunal, em razão da espécie e determinou a remessa dos autos aos Juízos Criminais do Porto.
É dessa decisão que o Ministério Público, inconformado, interpõe o presente recurso, extraindo das respectivas motivações as seguintes conclusões:
1. Os factos imputados ao arguido na acusação integram a previsão do crime de furto qualificado p. e p. pelo artº 204º nº 1 al. b) do Cód. Penal, e do crime de dano, p. e p. pelo artº 212º nº 1 do mesmo diploma legal;
2. Por seu lado, o artº 30º nº 1 do Cód. Penal consagra o critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se assim ao número de tipos legais de crimes efectivamente preenchidos pela conduta do agente, ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime, como, aliás, tem sido entendimento da nossa jurisprudência dominante, só não sendo assim nos casos de concurso legal ou aparente de crimes (veja-se o acórdão do STJ de 19-02-1992, publicado no DR, I Série-A, de 09-04-1992, que fixou jurisprudência no sentido de se verificar concurso real entre os crimes de falsificação e burla, e cuja doutrina foi confirmada pelo Assento nº 8/2000, de 04-05-2000, publicado no DR, I Série-A, de 23-05-2000);
3. Ora, o arguido encontra-se acusado de, com um ferro, ter forçado o vidro da porta do veículo Smart, de matrícula ..-FX-.., pertença de C…….., provocando, por esta forma, estragos na porta de cerca de € 30,00, após o que retirou do seu interior os objectos discriminados na acusação, no valor total de € 220,00, deles se apoderando, pelo que entre o crime de dano e o crime de furto, qualificado pela alínea b) do nº 1 do artº 204º do Cód. Penal, imputados ao mesmo não se verifica qualquer relação de especialidade, consunção ou subsidiariedade, nem se está perante um facto posterior não punível, pelo que não se consubstancia qualquer situação de concurso aparente de crimes;
4. Na verdade, o objecto material do crime de dano é diferente do do crime de furto, pelo que o entendimento vertido no douto despacho recorrido de que se está apenas perante um crime de furto deixa sem qualquer protecção jurídica os danos causados no veículo, o que só não aconteceria se o objecto da apropriação fosse o próprio veículo, caso em que, efectivamente, o crime de furto consumia o de dano;
5. Assim, no caso de o crime de furto ser cometido através de arrombamento, a nossa jurisprudência largamente maioritária tem vindo a considerar que o crime de dano só é consumido por aquele quando o arrombamento qualifica o crime de furto, como acontece nos casos da alínea e) do nº 1 e da alínea e) do nº 2 do artº 204º do Cód. Penal (Veja-se, entre outros, o acórdão do STJ de 04-10-2007, Proc. nº 07P0805, www.dgsi.pt/jstj);
6. Pelo exposto, o douto despacho recorrido, ao alterar a qualificação jurídica dos factos operada na acusação deduzida pelo Ministério Público, determinando que o arguido fosse julgado apenas pela prática, como autor material e enquanto reincidente (artºs. 75º e 76º do Cód. Penal), de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artº 204º nº 1 al. b) do Cód. Penal, violou o disposto nos artºs. 212º nº 1 e 30º nº 1, ambos do Cód. Penal.
Conclui pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que recebendo a acusação pelos crimes de furto e dano, designe dia para julgamento.
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O arguido não respondeu ao recurso.
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A fls. 137 foi admitido o despacho recorrido, sustentado de forma tabelar.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer concordante com as motivações apresentados pelo Mº Público em 1ª instância.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
É do seguinte teor o despacho recorrido: (transcrição)
«A factualidade imputada ao arguido na douta acusação é susceptível de integrar a prática pelo mesmo de um crime de furto qualificado p. e p. pelo artº 204º nº 1 al. b) do C.P. e não, como ali se refere (certamente por lapso), da al. a) de tal normativo legal.
Acresce que, salvo o devido respeito por diverso entendimento, temos para nós que a mesma factualidade não permite a imputação autónoma ao arguido de um crime de dano, nos termos que este, em concurso efectivo, também vem imputado ao arguido.
Na verdade, entendemos que estamos, no caso dos autos, perante uma situação de concurso aparente de crimes, encontrando-se o imputado crime de dano consumido pelo crime de furto qualificado.
A esta conclusão se chega lançando mão dos critérios da unidade de sentido do facto ilícito global-final e, particularmente, dos critérios do crime instrumental ou crime-meio e da unidade de desígnio criminoso.
Como refere o Professor Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, p. 1016, “Critério de primacial relevo para a conclusão para a tendencial unidade substancial do facto – apesar da pluralidade de tipos legais violados pelo comportamento global – é o da unidade, segundo o sentido social assumido por aquele comportamento, do sucesso ou acontecimento (hoc sensu, do “evento” ou “resultado”) ilícito global-final”; “o que se passa é que, nestes casos, o agente se propôs uma realização típica de certa espécie – v.g. alcançar a posse de certa coisa furtando-a – e, para lograr o desiderato, se serviu, com dolo necessário ou eventual, de métodos, de processos ou de meios já em si mesmos puníveis”; “nestes comportamentos globais se lobriga, cremos que com suficiente clareza, a existência de um sentido de ilícito absolutamente dominante e “autónomo”, a par de outro ou outros sentidos dominados e “dependentes”.
E adianta tal insigne autor como exemplo de concurso aparente o caso de alguém que furta coisa móvel alheia colocada em lugar destinado ao depósito de objectos (artº 204º nº 1 al. b) do C. P. aqui na redacção anterior à conferida pela Lei 59/2007, de 04.09, que agora comporta expressamente o furto de coisa móvel alheia colocada em veículo), cometendo eventual dano ao proprietário (artº 212º) – ob. cit., p. 1017.
O predito critério abrange, assim, todos aqueles casos de relacionamento entre um ilícito puramente instrumental (crime-meio) e o crime-fim correspondente, ou seja, “aqueles casos em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos (ob. cit., p. 1018).
Uma valoração autónoma e integral do crime-meio representaria uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração.
Ademais, a unidade de desígnio criminoso pode conferir a uma pluralidade de resoluções típicas um sentido fundamentalmente unitário do ilícito (ob. cit., p. 1020).
Ora, no caso vertente, como decorre do próprio libelo acusatório, o que o arguido visou com a sua conduta criminalmente típica foi subtrair objectos que se encontravam no interior do veículo automóvel de matrícula ..-FX-.., pertença de C……., sendo que para o efeito teve de, com recurso a um ferro, forçar o vidro da porta do lado esquerdo do mesmo para lograr abrir esta porta e assim aceder ao interior da viatura. Desse modo, causou estragos na porta do veículo, cuja reparação importou para a dona um dispêndio de € 30.
Ou seja: para perpetrar o furto a que se propôs, o arguido teve necessariamente de produzir o mencionado dano; mas não quis “autonomamente” tal resultado.
Donde, a provar-se tal dano, esta circunstância deverá apenas funcionar como agravante geral, nos termos da al. a) do nº 2 do artº 71º do C.P. (quanto às consequências do facto ilícito).
Pelo exposto, alterando a qualificação jurídica dos factos operada na douta acusação resulta que o arguido deverá ser julgado apenas pela prática, como autor material e enquanto reincidente (artºs. 75º e 76º do C.P.), de um crime de furto qualificado p. e p. pelo artº 204º nº 1 al. b) do C.P.
Face ao supra decidido, temos que a moldura penal abstractamente aplicável ao crime (já contando com a verificação da imputada situação de reincidência) alegadamente perpetrado pelo arguido é de prisão de 1 ano e 4 meses a 5 anos – cfr. artºs. 76º nº 1 e 204º nº 1 al. b), ambos do C.P.
Assim sendo, a competência para o julgamento dos autos cabe ao tribunal singular e não ao tribunal colectivo – artºs. 14º nº 2 al. b) e 16º nº 2 al. b) do C.P.P.
Pelo exposto, decide-se, nos termos conjugados dos artºs. 32º nº 1 e 33º nº 1, ambos do C.P.P.:
a) Declarar aqui a incompetência do tribunal colectivo que compõe esta Vara Criminal, em razão da espécie, para a realização do julgamento, a qual cabe ao tribunal singular; e
b) Ordenar a remessa dos autos para distribuição aos Juízos Criminais do Porto.
Notifique e, após trânsito, proceda à supra mencionada remessa dos autos para julgamento nos Juízos Criminais do Porto.»
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III – O DIREITO
A questão que se coloca no presente recurso consiste, antes de mais, na qualificação jurídico-penal dos factos imputados ao arguido na acusação pública deduzida, na medida em que dela depende a atribuição ou não da competência do tribunal recorrido para o julgamento daqueles factos.
De acordo com a acusação, os factos que imputa ao arguido integram os elementos objectivos e subjectivos da autoria material e em concurso real de um crime de dano e de um crime de furto qualificado p. e p., respectivamente, nos artºs. 212º nº 1 e 204º nº 1 al. b) do Cód. Penal (na redacção introduzida pela Lei nº 59/2007 de 05.09).
Entende, por outro lado, a decisão recorrida, que não se verifica uma situação de concurso, devendo o arguido ser julgado apenas pela prática de um crime de furto qualificado p. e p. no artº 204º nº 1 al. b) do Cód. Penal, pese embora como reincidente.
Ou seja, importa determinar se existe um mero concurso de normas por existir pluralidade aparente de infracções ou antes uma violação efectiva de diferentes ilícitos criminais.
Estabelecendo o quadro teórico dentro do qual nos iremos movimentar, estabeleçamos um breve esboço definidor do conceito de concurso em direito penal.
Por regra, a actuação do agente traduz-se na violação de uma só norma jurídica mediante a prática de um só acto, estando nós, então, perante um caso de unidade de infracção. Casos existem, todavia em que ocorre violação de diferentes normas legais, realizada mediante acções separadas, ocorrendo, então um concurso real. Outros existem em que uma só acção é objecto de várias apreciações jurídico-criminais, por violar várias vezes o mesmo preceito, falando-se, então, em concurso ideal homogéneo; se não obstante a unidade da acção ocorre violação de uma pluralidade de normas, estamos perante um concurso ideal heterogéneo.
Ocorre concurso aparente se a acumulação de normas aplicáveis à mesma acção é tão-só «aparente», não se estando face a um concurso ideal mas a um mero concurso legal, de normas ou de leis.
Entre outras definições, cuja análise agora não importa fazer, e sempre dentro deste último conceito de pluralidade aparente de infracções, estamos perante uma relação de consumpção (entre as normas em concurso aparente) se se apresentam ao mesmo tempo, para se aplicarem a uma determinada situação de facto, diversos tipos de crime, encontrando-se os respectivos bens jurídicos, uns relativamente aos outros, em tais relações que pode suceder que a reacção contra a violação concreta do bem jurídico realizada pelo tipo enformado pelo valor menos vasto se efective já pela aplicação do preceito que tem em vista a defesa de bens jurídicos mais extensos. A eficácia da consumpção não só está dependente da circunstância de, efectivamente, concorrerem dois preceitos cujos bens jurídicos se encontrem numa relação de mais para menos, mas também de que, no caso concreto, a protecção visada por um seja esgotada, consumida pelo outro (como exemplo, habitualmente, refere-se que os crimes de dano consomem os de perigo, os crimes de resultado consomem os crimes formais, etc.).
Da breve resenha a que atrás procedemos, logo se vislumbra que a aplicação deste regime está dependente da apreciação concreta do âmbito de protecção da norma, sendo então determinante a averiguação dos interesses protegidos pela incriminação (determinação do bem jurídico protegido), pois que só deste modo se verá se os interesses protegidos pelo tipo de ilícito com previsão mais ampla contém em si, ou não, os protegidos pela norma de previsão mais singela. Isto sem esquecer que a norma legal definidora (artº 30º nº 1 do CP) estabelece que o número de crimes se determina «pelo número de tipos efectivamente cometidos, ou pelo numero de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».
Foi partindo desta apreciação que a jurisprudência mais avisada tem vindo a estabelecer como critério diferenciador o referido critério: «o número de crimes vai determinar-se pelo número de valorações que correspondem a uma certa conduta no plano jurídico-penal; se só um bem jurídico é negado, só é cometido um crime, se há uma pluralidade de bens jurídicos negados há pluralidade de crimes»[1].
A lei não consagra expressamente as categorias do concurso real e do concurso aparente, ainda que resulte da letra do art. 30º nº 1 do Código Penal, que a distinção entre unidade e pluralidade de crimes há-de assentar num critério racional ou teleológico, reportado ao fim ou objectivo visado pela norma.
Desde há muito que a doutrina vem reconhecendo a existência de situações que, fruto de um específico condicionalismo da acção, impõem um tratamento uniformizado da violação plúrima do mesmo ou de diversos bens jurídicos, com punição conjunta por um só crime, em regra, o crime dominante. A problemática envolvida nesta questão está longe de ser simples, ao ponto de Eduardo Correia, referindo-se-lhe, ter afirmado que “se a distinção entre unidade e pluralidade de delitos parece, à primeira vista, fácil e clara, logo a um mais íntimo contacto revela ter um tão vasto objecto e ligar-se a um tão largo número de questões, que se transforma num dos mais torturantes problemas de toda a ciência do direito criminal”[2].
O critério do crime instrumental ou crime-meio, constitui apenas um dos critérios correntemente apontados como modo de resolver o problema do concurso. A questão não se esgota nesse critério, que só por si não tem a virtualidade de abranger todas as situações em que há que equacionar a verificação do concurso meramente aparente.
É comummente aceite pela jurisprudência que existe concurso aparente quando uma só conduta ou acção do agente preenche uma pluralidade de infracções penais do mesmo tipo (concurso homogéneo) ou de tipos diversos (concurso heterogéneo).
O concurso aparente verificar-se-á, em princípio, nas situações de consumpção.
A doutrina vem distinguindo entre consumpção por especialidade e consumpção por subsidiariedade. A primeira, verifica-se quando entre duas normas intercede uma relação de especialização, decorrente da circunstância de uma dessas normas conter todos os elementos da outra, acrescendo-lhe ainda um elemento adicional, reservando o respectivo funcionamento para situações específicas em que esse elemento complementar se verifica. É, nomeadamente, o caso da relação que intercede entre o tipo geral de crime e o correspondente tipo agravado, qualificado ou privilegiado. A segunda, tem lugar quando um tipo legal de crime deva funcionar apenas a título subsidiário, quando não existir outro tipo legal abstractamente aplicável que comine pena mais grave (é, verdadeiramente, uma relação de sobreposição).
De um modo mais abrangente, poderá afirmar-se que o concurso aparente ocorre quando a conduta do agente apenas formalmente preenche vários tipos de crime, na medida em que é totalmente abrangida por um dos tipos violados, devendo ser excluída a aplicação dos demais[3].
Em contraponto, no concurso efectivo, as diversas normas aplicáveis oferecem-se como concorrentes na sua aplicação concreta, por não interceder qualquer circunstância que obste à aplicação de todas elas.
A complexidade da questão posta não se basta, no entanto, com os enunciados formais apontados, pelo que em último caso será sempre através do critério teleológico a que nos referimos inicialmente, e por recurso ao bem jurídico efectivamente tutelado por cada uma das normas em presença, que se aferirá a relação de concurso.
Com efeito, o bem jurídico constitui a base da estrutura e da interpretação dos tipos e tem de entender-se como um valor abstracto e juridicamente protegido da ordem social, em cuja manutenção a comunidade tem interesse e que pode atribuir-se, como titular, a pessoa individual ou a colectividade[4].
Por outro lado, o bem jurídico é ainda o critério decisivo da classificação e agrupamento dos tipos (p.ex. crimes contra as pessoas, crimes contra o património, crimes contra a vida em sociedade, etc.).
Assim, tratando-se em ambos os casos de crimes que visam tutelar o mesmo bem jurídico (o património) poder-se-ia defender, como Germano Marques da Silva que estamos perante o chamado “facto anterior não punível”. Poder-se-ia defender que um “crime meio” “ou crime instrumento”, fosse deixado impune, desde que se tratasse de crime menos grave e que protegesse o mesmo bem jurídico do “crime fim”[5].
No caso vertente, o critério do bem jurídico tutelado pelas normas violadas, permite afastar a relação de concurso, como sucederá sempre que o agente vai praticando vários ilícitos numa sucessão de etapas com vista à obtenção de um resultado criminoso não contemplado nas acções já realizadas. Numa tal situação, o concurso aparente só deverá ser equacionado no caso da indispensabilidade dos crimes instrumentais para o cometimento do crime fim. Sem a verificação dessa indispensabilidade instrumental, os crimes que antecedem o crime fundamentalmente visado pelo agente conservam a sua autonomia, devendo ser punidos no âmbito do concurso real de infracções.
No caso em apreço, resulta da acusação que o arguido abeirou-se do veículo de matrícula ..-FX-.. e, munido de um ferro, forçou o vidro da porta do lado esquerdo, conseguindo abri-la e entrar no veículo, de cujo interior retirou e fez seus um auto-radio Sony no valor de € 180,00 e um par de botas de trabalho no valor de € 40,00.
Considerando que o arguido só conseguiu introduzir-se no veículo após ter forçado o vidro da porta, causando estragos no valor de € 30,00, é apodíctico concluir que o veículo se encontrava fechado. Assim sendo, verifica-se o aludido critério de indispensabilidade do crime de dano [crime-meio] (p. e p. no artº 212º do C.P.) relativamente ao almejado crime de furto [crime-fim] (p. e p. no artº 204º nº 1 al. b) do C.P.), que permite retirar autonomia ao crime instrumental (ou crime-meio), funcionando o crime de dano, eventualmente, como circunstância modificativa da penalidade. Ou seja, por força da relação de instrumentalidade necessária entre ambos os crimes, a situação terá de ser resolvida a favor da incriminação exclusiva pelo crime-fim, por aplicação das regras da consunção impura.
Efectivamente, o significado do crime-meio desaparece, nos casos em que é tido por secundário em relação a outro, o crime-fim, e desde que se mostre associado a este através de uma forma de aparição regular, ou forçosamente necessária. Mas, se no caso concreto a gravidade do crime-meio não for mínima, do excesso resultará um concurso efectivo com o crime-fim. Discorre-se, no entanto, assim, no contexto do efectivo preenchimento do crime de furto qualificado[6], uma vez que, se por força do disposto no nº 4 do artº 204º do Cód. Penal, não houver lugar à qualificação do furto, já poderá haver concurso efectivo entre o crime de dano seguido do crime de furto simples[7].
Feitas estas considerações e volvendo ao caso sub judice e aos factos que ao arguido são imputados na acusação, necessário se torna concluir que os mesmos integram todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de furto qualificado p. e p. no artº 204º nº 1 al. b) do Cód. Penal, cujo elemento volitivo do dolo (apropriação dos bens que se encontrassem no interior do veículo - resultado almejado pelo arguido), retira autonomia ao crime instrumental de dano p. e p. no artº 212º nº 1 do Cód. Penal, relativamente ao qual não se invoca, na acusação pública, o respectivo elemento subjectivo, designadamente na modalidade de dolo eventual (possivelmente, por se reconhecer a sua instrumentalidade relativamente ao, efectivamente pretendido, resultado da acção).
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Atendendo a que a moldura abstracta da pena prevista no artº 204º nº 1 do Cód. Penal corresponde a pena de prisão até cinco anos ou multa, importa agora determinar qual o tribunal competente para o respectivo julgamento.
As normas em confronto para a resolução da questão sob recurso, são as seguintes:
Artº 14º Cód. Proc. Penal:
«1., compete ao tribunal colectivo, em matéria penal, julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal do júri, respeitarem a crimes previstos no título III e no capítulo I do título V do livro II do Código Penal;
2. compete ainda ao tribunal colectivo julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal singular, respeitarem a crimes:
a) dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa, ou
b) cuja pena máxima, abstractamente aplicável, for superior a 5 anos de prisão, mesmo quando, no caso de concurso de infracções, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime.»
Artº 16º Cód. Proc. Penal:
«1. compete ao tribunal singular, em matéria penal, julgar os processos que por lei não couberem na competência dos tribunais de outra espécie;
2. compete também a tribunal singular, em matéria penal, julgar os processos que respeitarem a crimes:
a) previstos no capítulo II do título V do livro II do C Penal;
b) cuja pena máxima, abstractamente aplicável, seja igual ou inferior a 5 anos de prisão;
3. compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos na alínea b) do nº 2 do artigo 14º, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o MP, na acusação, ou em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos.
4. (…)»
Pela sistematização contida no C. P. Penal, podemos concluir que, em termos de competência em matéria penal, o regime legal vigente, estruturou a sua atribuição, pelas várias hipóteses, definindo-as, no artigo 13º, quanto ao tribunal de júri, que ao caso não interessa, no artigo 14º, quanto ao tribunal colectivo e no artigo 16º, quanto ao tribunal singular.
Por sua vez, o artigo 15º dispõe que para o efeito do disposto nos artigos 13º e 14º (que definem a competência dos tribunais de júri e colectivo), na determinação da pena abstractamente aplicável são levadas em conta todas as circunstâncias que possam elevar o máximo legal da pena a aplicar no processo. Donde se tem que levar em consideração, no caso, a circunstância modificativa agravante, que constitui o concurso de crimes a que alude o artº 77º nº1 do Cód. Penal.
Assim, nos termos do referido artigo 15º, não há que atender apenas ao máximo legal da pena a aplicar ao crime, mas ao máximo legal da pena que pode ser aplicada ao arguido no processo. Pois que o mesmo processo pode ter por objecto vários crimes e do concurso de crimes resulta que a pena a aplicar há-de ter como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas a cada um dos crimes, em concurso (artº 77º nº 2 do Cód. Penal).
A competência do tribunal singular surge, então, definida de forma residual.
Compete ao tribunal singular julgar todos os processos que não couberem na competência dos tribunais de outra espécie, de júri ou colectivo.
As regras sobre a competência, digamos funcional, dos tribunais judiciais, em matéria penal, está definida, em regra, para o caso de unidade criminosa, seja de um único crime, a ser julgado em cada processo. Para o caso de concurso de crimes, regem apenas as regras contidas nos artºs. 14º nº2 alínea b), 15º e 16º nº3, únicas daquele universo, onde a situação está prevista.
Assim, da interpretação conjugada destas 3 normas resulta que, no caso concreto, por força do critério quantitativo previsto na al. b) do nº 2 do artº 16º do C.P.Penal que atende à gravidade da pena aplicável, compete ao tribunal singular o julgamento dos presentes autos.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Mº Público, mantendo consequentemente a decisão recorrida, pelo que os autos deverão ser remetidos aos Juízos Criminais do Porto para julgamento.
Sem tributação.
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Porto, 10 de Novembro de 2010
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
Lígia Ferreira Sarmento Figueiredo
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[1] V., neste sentido, entre outros, Ac. desta Relação do Porto de 05.02.2003, in CJ, Tomo I, pág. 218.
[2] In “A Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Reimpressão, 1983, pág. 13.
[3] V., neste sentido, Ac. do STJ de 01/10/91 in BMJ 410/268.
[4] Cfr. Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal – Parte General – 4ª Ed., pág.231/232.
[5] In “Direito Penal Português, Tomo 1, pág. 339; diferentemente, v.g. Palma Herrera in “Los actos Copenados”, Madrid Dykinson, pag. 184.
[6] Cfr. Jackobs, “Derecho Penal, Parte General”, Madrid, Marcial Pons, pág. 1061, ou Jescheck, “Derecho Penal, Parte General”, Valencia, Comares, pág.794).
[7] V. Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 212.