Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0453441
Nº Convencional: JTRP00037161
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
PRESTAÇÕES DEVIDAS
INCUMPRIMENTO
SEGURANÇA SOCIAL
Nº do Documento: RP200409210453441
Data do Acordão: 09/21/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I - O Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, como garante legal do devedor principal - o progenitor condenado a pagar alimentos - é responsável pelo incumprimento deste, desde que os débitos acumulados sejam posteriores à data da entrada em vigor da Lei do Orçamento de Estado para o Ano de 2000.
II - Sendo a obrigação do Fundo uma prestação social de carácter substitutivo, ela nasce no momento em que o devedor entra em situação de incumprimento, judicialmente reconhecido, tornando-se, então, responsável como garante, pelo pagamento dos débitos acumulados, desde que ocorram nas circunstâncias temporárias em I.
III - Quando está em causa a interpretação de diploma que conferem direitos constitucionalmente garantidos, a interpretação normativa deve acolher o sentido que melhor se compagine com os fins visados; na dúvida os direitos prevalecem sobre as restrições.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B.............., mãe do menor C............. a quem o pai – D.............. – no âmbito de Processo de Regulação do Poder Paternal ficou obrigado a prestação de alimentos, veio requerer, em 18.12.2002, pelo Tribunal de Família e Menores da Comarca de ..........., o pagamento daquela prestação alimentícia, [agora a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos], contra:

Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.

Nos termos e com os seguintes fundamentos:

- conforme decorre dos autos de regulação do exercício do poder paternal, o pai do menor, D............, ficou obrigado a pagar a quantia mensal de € 100, a título de alimentos, para o seu filho C.............., nesta data, com 12 anos;

- ficou determinado que esse pagamento seria efectuado até ao dia 8 do mês a que respeita, a remeter à requerente, mãe do menor, através de vale postal;

- sucede que o obrigado à prestação de alimentos não procedeu ao pagamento de qualquer quantia a título de alimentos, estando em dívida as prestações dos meses de Junho a Dezembro de 2002, que totalizam a quantia de € 700;

- o obrigado à prestação alimentar é trolha, trabalhando ao dia, não tendo uma entidade patronal estável;

- não é, deste modo, possível proceder ao desconto no seu vencimento, ordenado ou salário, das quantias por si devidas, nos termos do art.189°, nº1, alíneas a) e b), da O.T.M.;

- o menor, actualmente, com 12 anos de idade, frequenta o 5° (quinto) ano de escolaridade;

- de prestações sociais recebe (abono de família), mensalmente, a quantia de € 25, não tendo qualquer outro rendimento;

- a mãe do menor apenas recebe ordenado mensal, no montante de € 196,99, ao serviço da empresa “E............., S.A.”, como empregada de limpeza, não sendo auxiliada por familiares.

Requereu a fixação do montante mensal da prestação mensal de alimentos, a cargo do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, no valor correspondente a € 150, e a notificação do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social para que providencie, junto do Centro Regional de Segurança Social da residência do menor, com vista a iniciar o respectivo pagamento.

Antes, por decisão de 9.5.2002, transitada em julgado, fora o progenitor do menor obrigado a prestar-lhe alimentos, no montante mensal de € 100, sendo que nunca cumpriu tal obrigação.

Após averiguações sobre a situação económica do requerido, considerou-se, por despacho de 4.4.2003, que era incobrável a referida prestação alimentar, nos termos do art. 3º, nº1, da Lei 75/98, de 19.11, tendo-se procedido a inquérito social urgente versando sobre as necessidades do menor e a situação sócio-económica do agregado em que se insere – arts. 2°, nºs2 e 3°, nº3 da Lei nº75/98 e art. 4°, nºs l e 2, do Dec-Lei 164/99, de 13 de Maio.
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A final por despacho de 19.9.2003 foi decidido do seguinte modo:

“a) Fixo em € 100 o montante da prestação alimentar substitutiva.

b) Condeno o Estado, através do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menor, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social a pagar o referido montante mensal.

c) No montante a suportar pelo FG devem ser abrangidas as prestações já vencidas desde Junho de 2002 e não pagas pelo progenitor (judicialmente obrigado a prestar alimentos)” (sublinhámos).
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Inconformado recorreu o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social que, alegando, concluiu do seguinte modo:

1) - Não foi intenção do legislador da Lei nº75/98, de 19 de Novembro e do Decreto-Lei nº164/99, de 13 de Maio, prever o pagamento pelo Estado do débito acumulado pelo obrigado a alimentos.

2) - Foi preocupação dominante, nomeadamente do Grupo Parlamentar que apresentou o projecto de diploma o evitar o agravamento excessivo da despesa pública, um aumento do peso do Estado na sociedade portuguesa.

3) - Tendo presente o disposto no artigo 9° do Código Civil ressalta ter sido intenção do legislador, expressamente consagrada, ficar a cargo do Estado apenas o pagamento de uma nova prestação de alimentos a fixar pelo tribunal dentro de determinados parâmetros, artigo 3°, nº3, e artigo 4°, nº1, do DL 164/99 de 13/5 e artigo 2° da Lei 75/98 de 19/11.

4) - O débito acumulado do devedor não será assim da responsabilidade do Estado.

5) - O legislador não teve em vista uma situação que a médio prazo se tornasse insustentável para a despesa pública, face à conjuntura socio-económica já então perfeitamente delineada.

6) - A decisão violou assim, o artigo 2° da Lei nº75/98, de 19 de Novembro e o artigo 3° e 4° do Decreto-Lei n°164/99, de 13 de Maio.

7) - Os diplomas em apreço só se aplicam para o futuro, não tendo eficácia retroactiva, cf. artigo 12° do Código Civil.

8) - E isto, independentemente de os seus efeitos se produzirem na data da entrada em vigor da Lei do Orçamento para o ano 2000.

9) - Na verdade, o pagamento das prestações de alimentos sai das verbas do Orçamento.

10) - O pagamento das prestações de alimentos terá início no mês seguinte à notificação ao organismo da Segurança Social, cfr., nº5 do artigo 4° do Decreto-Lei nº164/99, de 13 de Maio.

11) - O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra – Agravo 1386/01 de 26-06-01, que bem decidiu no sentido de o Estado não responder pelo débito acumulado do obrigado a alimentos, tratando-se de prestações de diversa natureza.

12) - No mesmo sentido, os Acórdãos:

Tribunal da Relação do Porto nº599/02 de 30-04-02 da 2ª Secção; Tribunal da Relação do Porto nº905/02 de 11-06-02 da 2ª Secção; Tribunal da Relação de Évora n°1144/02 de 23-05-02 da 3ª Secção; Tribunal da Relação de Lisboa n°7742/01 de 25-10-01 da 2ª Secção; Tribunal da Relação de Coimbra n°1386/01 de 26-06-01; Tribunal da Relação do Porto n°657/02 de 04-07-02 da 3ª Secção; Tribunal da Relação de Évora n°638/02 de 23-05-02 da 3ª Secção; Tribunal da Relação do Porto n°2094/02 de 28-11-02 da 3ª Secção; Tribunal da Relação do Porto n°871/03.3 de 13-03-03 da 3ª Secção.

13) - Não poderá aplicar-se por analogia o regime do artigo 2006° do Código Civil.

Termos em que se deverá dar provimento ao Recurso, assim se fazendo Justiça.
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Contra-alegaram, a requerida B............. e a Ex.ma Procuradora-Adjunta no Tribunal recorrido, pugnando ambas pela manutenção da decisão recorrida.

A Senhor Juíza sustentou o seu despacho.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
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Releva a matéria de facto antes referida no relatório.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões do recorrente que se delimita o âmbito do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores – FGADM – está obrigado ao pagamento das prestações alimentares, acumuladas desde Junho de 2002.

Antes de mais é objectável que o recorrente, a quem competem atribuições de cariz social do Estado, esgrima argumentos de pendor meramente economicista, obliterando que se trata de prestações sociais que incumbe ao Estado de Direito realizar, não só dentro dos princípios constitucionais da igualdade, como também da protecção dos direitos dos menores – arts. 13º e 69º da Constituição da República.

Por isso, e com o devido respeito, brandir tais argumentos é totalmente irrazoável.

Já o Ministério Público a quem, além da defesa dos direitos dos menores, incumbe igualmente representar o Estado, assume posição bem mais compaginável com a ponderação dos interesses em questão.

Não é novidade para ninguém que, a par dos clássicos direitos fundamentais, que constituem categorias jurídico-constitucionais, outras categorias de direitos fundados na dignidade humana se afirmam como “expressão da soberania do Estado” – traduzindo “direitos a prestações” que são deveres fundamentais.

“Os direitos a prestações significam, em sentido estrito, direito do particular a obter algo através do Estado (saúde, educação, segurança social)…
[…] A função de prestação dos direitos fundamentais anda associada a três núcleos problemáticos dos direitos sociais, económicos e culturais: ao problema dos direitos sociais originários, ou seja, se os particulares podem derivar directamente das normas constitucionais pretensões prestacionais (ex: derivar da norma consagradora do direito à habitação uma pretensão traduzida no “direito de exigir” uma casa); ao problema dos direitos sociais derivados que se reconduz ao direito de exigir uma actuação legislativa concretizadora das “normas constitucionais sociais” (sob pena de omissão inconstitucional) e no direito de exigir e obter a participação igual nas prestações criadas (ex: prestações médicas e hospitalares existentes); ao problema de saber se as normas consagradoras de direitos fundamentais sociais tem uma dimensão objectiva juridicamente vinculativa dos poderes públicos no sentido de estes (independentemente de direitos subjectivos ou pretensões subjectivas dos indivíduos) a políticas sociais activas conducentes à criação de instituições (ex: hospitais, escolas), serviços (ex: serviços de segurança social) e fornecimento de prestações (ex: rendimento mínimo, subsídio de desemprego, bolsas de estudo, habitações económicas).
A resposta aos dois primeiros problemas é discutível.
Relativamente à última questão, é líquido que as normas consagradoras de direitos sociais, económicos e culturais da Constituição Portuguesa de 1976 individualizam e impõem políticas públicas socialmente activas”.
[…] Uma das funções dos direitos fundamentais ultimamente mais acentuada pela doutrina (sobretudo a doutrina norte-americana) é a que se pode chamar função de não discriminação.
A partir do princípio da igualdade e dos direitos de igualdade específicos consagrados na constituição, a doutrina deriva esta função primária e básica dos direitos fundamentais: assegurar que o Estado trate os seus cidadãos como cidadãos fundamentalmente iguais [...]”. – “Direito Constitucional e Teoria da Constituição” – Gomes Canotilho, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição” 6ª edição, págs.408 e 409.

Temos, assim, que a Constituição da República impõe a realização de políticas públicas socialmente activas, destinadas a proteger titulares de direitos fundamentais.

Neste âmbito, a nosso ver, entronca a questão que nos ocupa, a dos alimentos devidos a menores, familiarmente carenciados e, daí, a Lei de Garantia de Alimentos – Lei 75/98, de 19.11. e o DL. 164/99, de 13 de Maio.

No Preâmbulo deste último diploma, que regulamentou aquela Lei, pode ler-se:

“A Constituição da República Portuguesa consagra expressamente o direito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral (artigo 69º).

Ainda que assumindo uma dimensão programática, este direito impõe ao Estado os deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção. Desta concepção resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressuposto necessário dos demais e decorrência, ele mesmo, do direito à vida (artigo 24º).

Este direito traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas, o que em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade, e em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que, proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna”.

Depois de afirmar que o diploma cria uma nova prestação social, atribui-se ao Fundo de Garantia “assegurar o pagamento das prestações de alimentos em caso de incumprimento da obrigação pelo respectivo devedor”.

Não está em causa que se verifica a necessidade de alimentos pelo menor e que a pessoa judicialmente obrigada os não pode prestar – art.1º da Lei 75/98, de 19.11.

O art.5º do DL.164/99, de 13.5, estabelece no seu nº1 – “O Fundo fica sub-rogado em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso”.

O art.11º estabelece que o diploma entra em vigor no dia imediato ao da sua publicação e “produz efeitos na data de entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para o ano 2000”.

Ora este normativo parece-nos decisivo quanto a saber se o pagamento dos débitos acumulados é ou não devido irrestritamente.

Parece-nos evidente que, antes da entrada em vigor da Lei do Orçamento para o ano 2000, não está o Fundo obrigado a pagar débitos acumulados, desde logo, porque a lei não tem eficácia retroactiva, mas depois daí – ano 2000 – os débitos acumulados são da responsabilidade do Fundo, não só porque, [e pegando no argumento economicista do recorrente], o Instituto que gere o Fundo tem que aprovisionar o seu orçamento, contando com o seu dever social e legal de garantir o pagamento de prestações alimentares, como, também, tratando-se de uma prestação substitutiva, o Fundo deve as prestações que ao substituído – o devedor de alimentos – incumbia satisfazer.

Invocando argumento tirado do nº5 do art. 4º do DL citado, o recorrente recusa o pagamento dos débitos acumulados desde Junho de 2002.

Tal normativo estatui:

“O centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal”.

Com o devido respeito, de modo algum o preceito em causa baliza o momento em que nasce a obrigação do Fundo, sob o ponto de vista substancial, antes se reportando ao momento em que o CRSS está obrigado a cumprir a decisão do Tribunal.

Estabelecendo o art. 5º, nº1, do DL referido, que o Fundo fica sub-rogado em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações, não só não discrimina o momento em que tal direito nasce, como, tratando-se duma prestação social ligada a um direito fundamental, tem de se considerar que a sub-rogação abrange todas as prestações que ao devedor principal competia prestar, desde que não anteriores a 2000 [Cfr. neste sentido Ac. do STJ, de 31.1.2002, de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Duarte Soares, Proc.01B4160, in www.dsi.pt].

Para haver sub-rogação legal tem haver um terceiro que cumpre a prestação que a outro incumbia e porque sub-rogação legal:
“Nela não há, ou não se exige acordo entre o terceiro que paga e o credor, ou entre aquele e o devedor; pelo simples facto do pagamento efectuado por terceiro, dadas certas circunstâncias, é a lei que considera este sub-rogado, nos direitos do credor” – Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, nota 1, ao art.592º.

Afirmar que o Estado, com os referidos diplomas legais, não se quis substituir ao devedor para garantir o pagamento das prestações devidas é afirmação que apenas deve ter como limite temporal o acima definido no art. 11º do DL. 164/99, de 13.5; de outro modo, como se entenderia o cariz necessariamente substitutivo e de garantia do Fundo em relação às prestações já devidas, mas que não puderam ser coercivamente cobradas?

A natureza social do direito em causa postula interpretação que salvaguarde o direito do menor a uma prestação social já existente, mas não satisfeita, sendo que a intervenção do Fundo de Garantia é supletiva e só ocorre, na veste de garante, porque o devedor principal a incumpriu.

O momento em que opera essa intervenção de garantia deve reportar-se ao momento em que nasce o direito para o seu titular, no caso, como as prestações devidas são-no, desde Junho de 2002, não se verifica impedimento legal a que sejam pagas pelo Fundo de Garantia as prestações vencidas e não pagas desde aí.

Sinal de que o DL citado admite algum grau de retroactividade, se assim nos podemos expressar, é o facto do o preâmbulo aludir ao “enfraquecimento no cumprimento dos deveres inerentes ao poder paternal, nomeadamente ao que se refere à prestação de alimentos”, o que evidencia que o legislador quis atalhar a situações de incumprimento já existentes, editando a Lei.

Ademais, parece ser esse o entendimento de Remédio Marques quando, na obra “Algumas Notas sobre Alimentos…”, na pág. 220, escreve:

“Constatado o elevado número de situações de incumprimento de pensões de alimentos devidos a menores, já judicialmente decretados, aliado à circunstância de o art. 189º da OTM só prever uma medida pré-executiva relativamente aos devedores que trabalhem por conta própria ou que aufiram rendimentos certos e periódicos, a Lei nº75/98, de 19 de Novembro, instituiu recentemente um mecanismo de garantia de alimentos, a suportar pelo Estado sendo os pagamentos efectivamente assegurados pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores”.

O art. 2006º do Código Civil estabelece:

“Os alimentos são devidos desde a proposição da acção ou, estando já fixados pelo tribunal ou por acordo, desde o momento em que o devedor se constituiu em mora”.

Se os alimentos em dívida se reportam a período posterior ao ano de entrada em vigor da Lei 75/98 e do DL que a regulamentou, o Fundo é garante das prestações, desde a data em que o direito em relação a ele entrou na esfera jurídica do menor credor [“I- A intervenção do Fundo de Garantia tem natureza subsidiária, sendo seu pressuposto a não realização coactiva da prestação já fixada através das formas previstas no art.189º da OTM. II – Na fixação da prestação a suportar pelo referido Fundo de Garantia podem ser abrangidas as prestações já vencidas e não pagas pela pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos”.- Ac. desta Relação, de 19.2.2002, in CJ, 2002, IV,180], com a verificada impossibilidade de obter o pagamento do devedor originário.

Agindo o Fundo em substituição do devedor, age, autonomamente, mas tendo por base uma obrigação de garantia, que nasce no momento em que o devedor entra em situação de incumprimento, tornando-se, então responsável pelo pagamento dos débitos acumulados, pois, de outro modo, não cumpriria a sua função de garante, que é, por definição, supletiva, substitutiva.

Como vimos, o momento genético da obrigação do FG, nada tem que ver com o momento que a lei estipula como termo inicial do pagamento a seu cargo, que deve iniciar-se, no mês seguinte ao da notificação pelo tribunal – nº5 do art.5º do referido DL.

O diploma não diz que as prestações são devidas pelo Fundo a partir daquele momento, afirma, antes, que o pagamento se inicia no mês seguinte àquela notificação.

O momento em que a prestação é devida só pode ser, na nossa perspectiva, o definido no art.2006º do Código Civil, conjugado com a evidência, judicialmente declarada, do estado de incumprimento definitivo da prestação pelo progenitor obrigado a alimentos.

Sendo a responsabilidade do FG definida pela extensão da dívida do obrigado a prestar alimentos, demonstrada esta impossibilidade, nasce a obrigação do garante.

Estando em causa a interpretação de diplomas que conferem direitos socais, constitucionalmente garantidos, a interpretação deve acolher um sentido que melhor se compagine com os fins que a norma visa.

Recusar ao menor o pagamento de dívidas alimentares vencidas é, pura e simplesmente, recusar-lhe um direito social derivado, com matriz constitucional relacionado com direitos fundamentais.

Na dúvida, os direitos devem prevalecer sobre restrições – “in dubio pro libertate.”

“O princípio da interpretação conforme a constituição é um instrumento hermenêutico de conhecimento das normas constitucionais que impõe o recurso a estas para determinar e apreciar o conteúdo intrínseco da lei.

Desta forma, o princípio da interpretação conforme a Constituição é mais um princípio de prevalência normativo-vertical ou de integração hierárquico-normativa de que um simples princípio de conservação de normas”. – Gomes Canotilho, obra citada, pág.1294.

Interpretar os diplomas em questão, conformemente à Constituição da República, e tendo sido, no caso em apreço, intenção expressa do legislador ordinário, criar uma nova prestação social, a cargo do Estado, importa que se afirme a prevalência de interpretação que não esvazie de conteúdo a defesa de direitos fundamentais/direitos a prestações, como é o direito de protecção da criança, na vertente do direito a alimentos, que engloba o direito à saúde e à educação, sem dúvida merecedores da mais elevada protecção.

Decisão:

Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se o despacho recorrido.

Sem custas.

Porto, 21 de Setembro de 2004
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale