Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0433052
Nº Convencional: JTRP00037049
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
PEDIDO
Nº do Documento: RP200406170433052
Data do Acordão: 06/17/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I- Na impugnação pauliana, o pedido a formular é o de declaração de ineficácia do acto que se impugna.
II- A “restituição dos bens” de que fala o artigo 616 do Código Civil tem a ver, não com o pedido propriamente dito, mas com as consequências de se julgar ineficaz o acto impugnado.
III- Não é correcto o pedido de restituição material e jurídica dos bens ao património do devedor/alienante, pois, obtido ganho de causa, o Autor pode executar os bens no património do obrigado à restituição (artigo 616 do Código Processo Civil).
IV- A deficiente formulação - ou, antes, errada qualificação-- deste pedido de restituição (e sua eventual procedência), não constitui justificação suficiente para, por si só, inviabilizar a pretensão ajuizada, até porque é a própria lei a falar na «restituição dos bens».
V- É que, nada obsta a que o tribunal -- observado o princípio do dispositivo - qualifique de forma diferente esse pedido de restituição, por tal lhe ser permitido pelo artigo 664 e conforme ao artigo 661, n.1, ambos do Código Processo Civil, corrigindo, consequentemente, o “erro na qualificação jurídica do efeito prático” que o autor pretende obter com a acção de impugnação pauliana (a inutilização jurídica dos actos de alienação, na parte em que os mesmos atingiram o direito do autor).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I . RELATÓRIO

No .....º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira de Azeméis, A............................. instaurou acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário contra B...................... & Filhos, Ldª e C................, Ldª .

Pede:
a declaração de ineficácia das alienações pela 1ª Ré à 2ª Ré do veículo automóvel de mercadorias «Mitsubishi» matrícula VB – ... – ... e do estabelecimento comercial da 1ª Ré sito na Rua do U............, nº ...., Oliveira de Azeméis, e
seja ordenada a restituição, material e jurídica, dos bens alienados ao património da alienante, a 1ª Ré.

Alega, em síntese:
Que é credora da 1ª Ré da importância de esc. 2.000.000$00 .
Uma vez que a aludida quantia não foi paga à Autora, esta moveu a competente execução para pagamento da quantia em causa.
Na dita execução, a 1ª Ré nomeou habilidosamente à penhora o «Estabelecimento Comercial» sito na Rua S............, sendo que, esse estabelecimento não era mais do que um pequeno local destinado a armazenamento de mercadorias e integrante do verdadeiro estabelecimento comercial que possuía na Rua do U.......
A Autora opôs-se a essa nomeação e nomeou, por sua vez, o veículo e o estabelecimento acima identificados e quaisquer contas bancárias ou créditos.
Nesse seguimento, veio a apurar-se que existia apenas uma conta bancária no montante de esc. 29.451$00 e que o veículo e o estabelecimento comercial haviam sido transferidos, em 27/08/1999 e 08/11/1999, para a 2ª Ré.
Acresce, ainda, o facto dos sócios-gerentes de ambas as Rés serem os mesmos.
Nesta medida, a 1ª Ré, salvo o depósito bancário, desfez-se de todo o seu património, sendo do seu conhecimento que impossibilitava o pagamento da dívida à Autora, e bem assim, era do conhecimento da 2ª Ré qual era o montante em dívida à Autora e que as alienações da 1ª Ré à 2ª Ré causavam prejuízo à Autora em virtude da inexistência de património da 1ª Ré, após as alienações.

Citadas as Rés, deduziram contestação a fls. 32 e ss., defendendo-se por excepção peremptória impeditiva e por mera impugnação directa.

Seguidamente, procedeu-se à elaboração de despacho saneador e à selecção da matéria de facto.
Teve lugar a audiência final, com observância do formalismo legal, tendo, de seguida, o tribunal respondido à matéria de facto da base instrutória.

Por fim, foi proferida seguinte sentença:
“Pelo exposto, julgo a presente acção procedente por provada, e consequentemente, decido:
- declarar a ineficácia das alienações do veículo automóvel de mercadorias «Mitsubishi» matrícula VB-...-... e do estabelecimento comercial da 1ª Ré sito na Rua do U........, nº ..., Oliveira de Azeméis realizadas pela 1ª Ré á 2ª Ré, e
- ordenar a restituição, material e jurídica do veículo automóvel de mercadorias «Mitsubishi» matrícula VB-...-... e do estabelecimento comercial da 1ª Ré sito na Rua do ......., nº ...., Oliveira de Azeméis ao património da 1ª Ré.”

Inconformadas com esta sentença, as rés interpuseram recurso de apelação, apresentando alegações que terminam com as seguintes

“CONCLUSÕES:
I. Na decisão recorrida existe, quanto à matéria de facto, erro notório na apreciação da prova, designadamente da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, assentando ainda a resposta positiva aos quesitos essenciais em meras presunções.
II. Quanto à matéria de direito, foi incorrectamente julgada a excepção peremptória invocada pelas rés determinante da absolvição do pedido (quanto ao valor, à data da execução (1999) do trespasse do imóvel em causa, atenta a sua dimensão e localização) e foi feita uma incorrecta interpretação dos normativos constantes dos artigos 610º e ss. do Código Civil, atinentes à figura jurídica da impugnação pauliana, nomeadamente quanto à sua natureza e fundamentalmente quanto aos seus efeitos - artº 616º CC.
III. Nos actos onerosos é requisito especial da impugnação pauliana a existência de má fé psicológica por parte do devedor e por parte do terceiro, a favor de quem foi praticado o acto impugnado (artº 612.CC), ou seja exige-se que “os intervenientes no acto impugnado estejam moralmente convencidos de que esse acto vai causar prejuízo ao credor”
IV. Não foi feita prova que criasse uma situação
de mínimo de certeza tal que, mesmo em termos de extracção da correspondente presunção judiciária, permitisse dar resposta afirmativa aos quesitos 5, 7 e 8, atinentes ao predito requisito indispensável da “má fé”, revelando-se ainda a incapacidade probatória, só por si, dos elementos disponíveis nos autos.
V. Nenhum elemento positivo e concreto decorrente dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, nem qualquer outro meio probatório aponta para a “consciência por parte das rés do prejuízo que o acto causa ao credor”, faltando, por conseguinte essa prova da ideia de “fraude”, da “convicção de a conduta não ser recta,”associada à má-fé (612º do CC) - veja-se os depoimentos das testemunhas D.............. e E................., que nada disseram quanto à alegada consciência por parte das rés do prejuízo que o acto causa ao credor”, não obstante estarem indicados aos quesitos que continham tal alegação - 4º e 8º
VI. A acta da audiência de julgamento de fls. 201 e 202 dos autos contém dois manifestos erros no que concerte à indicação dos quesitos a que responderam as testemunhas D...................... e E.................., porquanto a primeira testemunha não respondeu a toda a matéria, mas apenas aos quesitos 1º a 5º, 9º e 10º e o segundo foi indicado aos quesitos 6º, 7º, 8º e 11º e não a toda a matéria, o que pode aferir-se da gravação.
VII. A resposta dada à matéria constante do quesito 3, não encontra também qualquer suporte nos depoimentos prestados em audiência, sendo ademais óbvia a contradição entre o que se perguntava no quesito - “o legal representante da Ré afirmava para quem o quisesse ouvir que a Autora jamais recebera” um tostão que fosse" e a fundamentação dada pelo MM. Juiz - a testemunha D......... é “vizinha da Autora, há largos anos, a qual ouviu o sócio gerente de ambas as rés avisar a Autora de que ela Não receberia nada”, pelo que o depoimento da referida testemunha não poderia sequer ser valorado no sentido que resulta da transcrita fundamentação.
VIII. A impugnação pauliana é uma acção pessoal, porque os seus efeitos se medem pelo interesse do credor e só a este aproveitam; julgada procedente, o acto impugnado mantém-se válido, sendo sacrificado apenas na medida do interesse do credor impugnante, ou seja, até à satisfação total do seu crédito.
IX. O credor impugnante (autora) não pode pedir a restituição material e jurídica dos bens alienados para o património do devedor (1ª ré), pois tal pedido implicaria a nulidade ou a anulação das alienações (cfr. artº 289º CC), e a satisfação de tal pedido, decorrente da sentença recorrida, implicaria condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, violando o princípio do dispositivo por condenação ultra petitum ou extra petitum.
X. Assim não se entendendo, na douta decisão de facto e na douta decisão de direito, violou-se o estabelecido nas citadas disposições legais.

Termos em que e melhores de direito pedem seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida”.

A apelada contra-alegou, concluindo pela manutenção da sentença recorrida, com a consequente improcedência da apelação.

Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO:

II.1. AS QUESTÕES:
Tendo presente que:
--O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
-- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
-- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

as questões propostas para resolução são as seguintes:
1ª- Impugnação da matéria de facto: erro na apreciação da prova, em especial no que concerne aos quesitos 3º, 5º, 7º e 8;
2ª- Erro no julgamento da excepção peremptória suscitada na matéria contida no quesito 11, atento o errado julgamento de tal matéria;
3ª- Incorrecta interpretação dos arts. 610º e segs., atinentes à impugnação pauliana, nomeadamente quanto à sua natureza e aos seus efeitos, pois o credor (autora) não pode pedir a restituição material e jurídica dos bens alienados para o património do devedor, já que tal pedido implicaria a nulidade ou anulação das alienações e a sua satisfação acarretava a condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

II. 2. OS FACTOS:

1 - Em 2/11/1998, a Autora intentou contra a 1ª Ré acção com processo ordinário nº 538/98 com fundamento em despedimento ilegítimo no Tribunal de Trabalho de Oliveira de Azeméis...
2 - ... peticionando a Autora a quantia de esc. 3.344.207$00.
3 - No aludido processo, teve lugar, em 19/05/1999 uma tentativa de conciliação onde as partes acordaram que a Autora reduziria o seu pedido para a quantia de esc. 2.000.000$00, que a 1Ç Ré aceitava pagar a mesma em 11 prestações, vencendo - se a primeira, no valor de esc. 500.000$00, em 31/07/1999 e as demais no montante de esc. 150.000$00 cada uma, no último dia de cada um dos meses subsequente ...
4 - ... tendo o acordo sido homologado pelo Meritíssimo Juiz.
5 - No termo da diligência a 1ª Ré através do seu legal representante emitiu com data de 31/07/1999 e duma conta a ela pertencente o cheque nº 1226544305, sacado sobre o Banco Portugal do Atlântico, no montante de esc. 500.000$00 á ordem da Autora ...
6 - ... destinado ao pagamento da primeira das prestações acordadas ...
7 - ... tendo dele constituído depositário o seu ilustre mandatário...
8 - ... que em tempo útil o faria chegar à Autora através do ilustre mandatário desta.
9 - Face ao não pagamento da 1ª prestação a Autora considerou vencidas todas as prestações e requereu execução.
10 - Em Setembro de 1999 a 1ª Ré subscreveu o requerimento de fls. 53 a 55 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
11 - A Autora contestou o requerimento constante do ponto 10 dos Factos Provados nos termos e com os fundamentos expostos a fls., 56 e 57 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido ...
12 - ... e nomeou á penhora por meio do requerimento de fls. 58 e 59 os bens mencionados no art.º 13º do mesmo requerimento, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
13 - Os sócios - gerentes da 1ª e 2ª Rés são os mesmos (marido e mulher).
14 - Conforme decorre de fls. 60 e 65 e o doc. de fls. 62 a 64 a 1ª Ré transferiu o veículo de mercadorias «Mitsubishi» VB-..-..45 para a 2ª Ré, em 27/08/1999 ...
15 - ... e declarou trespassar o estabelecimento comercial sito na Rua do U...., nº ..., Oliveira de Azeméis, para a 2ª Ré, em 8/11/1999.
16 - Em 31/07/1999 o cheque identificado no ponto 5) dos Factos Provados foi entregue à Autora ...
17 - ... a qual o depositou , porque traçado, numa conta da Caixa Económica Montepio Geral
18 - O Legal Representante da Ré afirmava para quem o quisesse ouvir que a Autora jamais receberia «um tostão que fosse».
19 - Em consequência das alienações aludidas nos pontos 14) e 15) dos Factos Provados, as quais se dão aqui por reproduzidas a 1ª Ré desfez - se de todo o seu património com excepção do saldo bancário no valor de esc. 29.000$00.
20 - ... tendo a 1ª Ré consciência de que ficava impossibilitada de pagar a divida de esc. 2.000.000$00 á Autora.
21 - O estabelecimento comercial nomeado á penhora pela 1ª Ré através do requerimento constante do ponto era um pequeno local destinado a armazenamento de mercadorias e integrante do estabelecimento comercial sito na Rua do U.......... nº ...., em Oliveira de Azeméis identificado no requerimento de nomeação de bens á penhora de fls. 58 e 59.
22 - Aquando das alienações aludidas nos pontos 14) e 15) dos Factos Provados, as quais se dão aqui por reproduzidas a 2ª Ré conhecia da divida no valor de esc. 2.000.000$00 da 1ª Ré para com a Autora ...
23 - ... e que as alienações aludidas nos pontos 14) e 15) dos Factos Provados causavam prejuízo à Autora uma vez que a 1ª Ré ficava sem bens susceptíveis de liquidarem a aludida divida, com excepção do saldo bancário no valor de esc. 29.000$00.
24. O cheque aludido no ponto 5 dos Factos Provados veio devolvido com a menção de «extravio».

III. APRECIANDO E DECIDINDO:

Quanto à impugnação da matéria de facto:
Entendem as apelantes que os quesitos 3º, 5º, 7º e 8º-- além do 11º, mas que apreciaremos mais à frente face à alegada “excepção peremptória”-- foram incorrectamente julgados.
Impugnam, desta forma, a matéria de facto.

Como é sabido, fixada a matéria de facto, através da regra da livre apreciação das provas consagrada no artº 655º nº 1 do CPCivil, em princípio essa matéria de facto é inalterável.
Como resulta dos autos, a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento foi gravada.
Por outro lado, os apelantes deram - embora de forma um tanto dispersa e confusa - suficiente cumprimento ao preceituado nos arts. 690º-A, nºs 1 e 2 e 522º-C, ambos do CPC, na redacção (aqui aplicável) emergente do DL nº 183/2000, de 10.08.
Como tal, nada obsta ao conhecimento do recurso quanto à matéria de facto.

Dir-se-á, no entanto, ainda, o seguinte:
A apreciação da prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais “elevado” que na 1ª instância, onde são observados os princípios da imediação, da concentração e da oralidade.
Quando o juiz tem diante de si a testemunha ou o depoente de parte, pode apreciar as suas reacções, apercebe-se da sua convicção e da espontaneidade, ou não, do depoimento, do perfil psicológico de quem depõe: em suma, daqueles factores que são decisivos para a convicção de quem julga, que, afinal, é fundada no juízo que faz acerca da credibilidade dos depoimentos.
Conforme ensina, a propósito da imediação, o Prof. Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil, 2ª Ed., págs. 657”). Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar”.
No domínio da prova testemunhal, vigora o princípio da livre apreciação das provas - art. 396º do CC - segundo a convicção que o julgador tenha formado acerca de cada facto - art. 655º, nº1 - sem embargo do dever de as analisar criticamente e especificar os fundamentos decisivos para a convicção adquirida - art. 653º, nº 2, do CPC.
A alteração das respostas, atento o principio da aquisição processual consagrado no art. 515º, poderia basear-se, inclusivamente, em material probatório não carreado pela parte discordante.
Segundo o Prof. Manuel de Andrade (in "Noções Elementares de Processo Civil, 1963, págs. 357), "Os materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo. São atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária..."
Entendemos que a Relação só deverá alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, reapreciada a mesma, for evidente a grosseira apreciação e valoração que foi feita na instância recorrida, isto pelo facto de o julgador da 1ª instância dispor de um universo de elementos (não apreensíveis na mera gravação áudio dos depoimentos) que são decisivos para o processo íntimo de formação da convicção, que se não satisfaz com a, diríamos, insípida audição daquela gravação, não tendo a 2ª instância possibilidade de intuir ou de apreciar para lá daquilo que se mostra gravado, o que é deveras redutor no processo de formação da convicção.

Lendo a decisão da 1ª instância sobre a fundamentação das respostas à matéria de facto (fls. 204 s 205), parece-nos poder dizer que em tal peça se analisou criticamente as provas e especificou, de forma racional e coerente e com respeito por toda (incluindo a documental) a prova produzida, os fundamentos que foram decisivos para a respectiva convicção.

Assim, cremos que de forma alguma se pode afirmar a prova que emerge dos depoimentos gravados está em oposição com as respostas que o tribunal a quo deu aos quesitos da base instrutória, designadamente aos supra referidos postos em crise no recurso, por forma a poder-se afirmar que se está em face de uma “evidente e grosseira apreciação e valoração” da prova pela instância recorrida.
Efectivamente, analisando, de forma nua - dada a escassez de elementos para ir mais além--, a gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, podemos ficar com algumas dúvidas sobre a bondade ou absoluta segurança acerca da matéria factual contida nas respostas dadas pelo tribunal a quo relativamente aos aludidos quesitos da base instrutória, nos precisos termos em que vinham formulados.
Ou seja, poder-se-á ficar com alguma insegurança ou dúvida sobre se as coisas teriam, de facto, acontecido da forma precisa respondida pelo tribunal naquela base instrutória.
No entanto, cremos que os depoimentos prestados, mesmo na nudez da gravação já indiciam uma forte probabilidade de as coisas se terem, efectivamente, passado da forma como retrata a decisão recorrida.
As falhas, dúvida ou incertezas que tal nudez nos possam trazer são, seguramente, compensadas ou preenchidas pela riqueza que a aludida imediação e oralidade da prova forneceram ao tribunal a quo e de que esta Relação não dispõe.
O Mmº Juiz fez fé nos depoimentos das testemunhas referidas pelos apelantes (a D.............. e E................. e a F..................), interpretou-os no seu todo - maxime em conjugação com os demais elementos probatórios-- e não alvejamos razões sérias para duvidar da sua convicção, pois a prova gravada, por si só, não nos permite afirmar que as aludidas respostas do tribunal a quo aos quesitos supra citados da base instrutória consubstanciam uma “evidente e grosseira apreciação e valoração” da prova pela instância recorrida.
Como tal, resta-nos a apreciação feita pelo Mmº Juiz a quo.

Não vemos, por noutro lado, que a decisão de facto deva ser modificada ao abrigo do disposto no artº 712º do CPC, dada a manifesta não verificação dos respectivos pressupostos ou requisitos.

Improcede, como tal, a primeira questão suscitada pelos apelantes.

Quanto à segunda questão: erro no julgamento da excepção peremptória suscitada na matéria contida no quesito 11, atento a errado julgamento desta mesma matéria;

Alegam, de seguida, os apelantes que, tendo invocado “uma excepção peremptória impeditiva, alegando que à data da execução (1999) o trespasse do imóvel em causa valia sempre mais do que 3.000.000$00 (três milhões de escudos), atenta a sua localização, pelo que a nomeação efectuada pela 1ª ré acautelava o crédito da autora-(artº 611º, C.C.)” e tendo o Tribunal, na resposta a esse quesito, tão somente dado como provado o que consta da resposta ao quesito 6º, esta resposta - negativa à matéria da aludida excepção peremptória-- traduziu um erro no julgamento da excepção.

Nada de especial se nos afigura dizer a este respeito, além do que supra já dissemos a respeito da 1ª questão.
É certo que a matéria contida no aludido quesito 11º integrava um facto impeditivo do direito da autora, pois, provado esse quesito, provado ficava que “o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor” (artº 611º, CC), atento o montante do crédito da autora, que assim ficava devidamente acautelado.
No entanto, as rés não provaram - como lhes competia (cit. artº 611º) - a matéria desse quesito. E não alvejamos que tenha havido erro de julgamento, também no que concerne à matéria do referido artº 11º e não vemos, também, que a decisão de facto relativamente a esse quesito mereça modificação ao abrigo do disposto no artº 712º do CPC.

Improcede, assim, esta segunda questão suscitada.

Quanto à terceira questão: incorrecta interpretação dos arts. 610º e segs., atinentes à impugnação pauliana, nomeadamente quanto à sua natureza e aos seus efeitos, já que o credor (autora) não pode pedir a restituição material e jurídica dos bens alienados para o património do devedor, uma vez que tal pedido implicaria a nulidade ou anulação das alienações e a sua satisfação acarretava a condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Vejamos.

Nos actuais Direitos das Obrigações, o património do devedor responde, perante o credor, pelo cumprimento das obrigações: o património em causa é a garantia geral dos seus débitos.
Por vezes acontece que um devedor, visando frustrar a garantia geral dos seus credores - ou de alguns deles - faça sair do seu património determinados bens, nomeadamente, através de combinação feita com terceiros que comunguem, também, de tal intuito.
Assim, já no Direito Romano se instituiu a actio pauliana (que retiraria o seu nome de PAULUS , que a teria criado por via edital--cfr. Paulo Cunha, Da Garantia nas Obrigações, 1º vol., 323) como esquema destinado a enfrentar essa eventualidade, isto é, como forma de atacar essas retiradas de bens do alcance executório do credor, permitindo-lhe pagar o seu crédito pelo valor dos mesmos bens, no património do obrigado à restituição.
O Código Civil Português, recebendo a tradição românica, prevê essa actio nos artigos 610º a 618º.

Face aos factos provados, parece manifesto que se verificam os requisitos para a procedência da impugnação pauliana pretendida ou formulada pela autora nesta demanda.
Veio, efectivamente, a autora peticionar a ineficácia dos actos de alienação, pela 1ª ré à 2ª ré, do veículo automóvel e do estabelecimento que identifica, bem assim que as rés fossem condenadas a restituir ao património da devedora - a alienante, 1ª ré - dos bens alienados.
Está-se, portanto, sem margem para dúvidas, em face de uma acção pauliana.

Dispõe o artigo 610º do Cód. Civil:
“Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:
a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade”.
Por seu turno, o artigo 612º acrescenta a estes requisitos um outro o requisito da má fé, como a “consciência do prejuízo que o acto causa ao credor”. Cumpre realçar que este requisito é dispensável para a impugnação relativa a actos gratuitos, como, por exemplo, a doação - o que está fora do âmbito da presente demanda.

São, portanto, três os requisitos da impugnação pauliana.
São eles:
O da anterioridade do crédito (requisito exigido pelo art.
Anote-se, a este respeito, que, “não é necessário que o crédito já se encontre vencido para que o credor possa reagir contra os actos (de impugnação da garantia patrimonial) anteriores ao vencimento, contanto que a constituição do crédito seja anterior ao acto” (Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 4ª ed., vol. II, pág. 438, nota 1) - sublinhado nosso.
Já Paulo Cunha, in Da Garantia nas Obrigações, tomo I, págs. 349-450, escreveu: “Se...o crédito estava já constituído quando o acto se praticou, então -- tendo em atenção que o crédito foi constituído em consideração dos bens que estavam no património responsável--, a lei prefere atender ao interesse do credor, e permite a rescisão do acto” - sublinhado nosso.
O da existência de acto lesivo da garantia patrimonial (eventus damni).
Trata-se do prejuízo causado pelo acto (impugnado) à garantia patrimonial. Provou-o a autora (cfr., v.g., nº 19 da relação de factos provados constantes da sentença). Mas nem tinha de fazer essa prova.
Na verdade, é sobre o devedor que incide o ónus da prova deste requisito - artº 611º do C. Civil (cfr. Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, II, pág. 492).
Como escrevem Pires e Lima e Antunes Varela, Anotado, I, 4ª ed., pág. 627, “Em princípio numa acção de impugnação devia caber inteiramente ao Autor fazer a prova dos requisitos necessários à procedência do pedido (cfr. artº 342º) e, portanto, devia caber-lhe não só a prova do montante da dívida e da anterioridade do crédito, como da diminuição da garantia patrimonial nos termos da alínea b) do artº 610º. No entanto, por razões compreensivas - dificuldade ou mesmo impossibilidade de provar que o devedor não tem bens (o artº (611º) - atribui a este o encargo de provar que possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao das dívidas”.
Neste sentido ver, ainda, o Ac. do S.T.J. de 29/09/1993, in Col. Jur., Acs. STJ, ano I, tomo III, 1993, pág. 34 e o já citado Ac. da Rel. do Porto de 19/05/1997, in Col. Jur. ano XXII, tomo III, pág. 188.
In casu, não lograram as rés provar-- como lhes competia, portanto-- que, não obstante as referidas alienações do estabelecimento e veículo automóvel, continuaram a possuir bens penhoráveis de valor igual ou superior ao das dívidas das rés à autora.
O designado “requisito da má fé” (artº 612º do C. Civil).
Trata-se do requisito tradicional do consilium fraudis, o qual tem sido tratado de modo diverso nos vários ordenamentos, dependendo os seus exactos contornos do direito positivo concretamente vigente.
Quanto à má fé nos actos a título oneroso, há que dizer que não basta que o devedor e o terceiro, partes no acto realizado, tenham conhecimento da situação precária do devedor, porque podem eles ter até fundadas razões para crer que o acto virá a provocar uma melhoria dessa situação. Essencial é que o devedor e terceiro tenham consciência do prejuízo que a operação causa aos credores.
A lei não se basta com a simples negligência inconsciente como fundamento da impugnação pauliana.
Antes de mais, diga-se que a lei (artº 612º, nº1, do C.C.) exige a má fé bilateral (do vendedor e do comprador no contrato de compra e venda, que é um contrato oneroso --ver Ac. S.T.J., in Actualidade Jurídica, nº6). Não basta, assim, a má fé de um dos contraentes. Exige-se a má fé de ambos os contraentes, consistente na consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.
Tal requisito - tal como os restantes-- ficou claramente demonstrado, ou seja, provado ficou que as rés, ao procederem às referidas alienações, tinham plena consciência de que dessas alienações resultava a impossibilidade do pagamento da dívida à autora por banda da 1ª ré - sintomático é, desde logo, o facto de os sócios-gerentes das duas rés serem .... os mesmos!

O que se questiona nesta questão é, então, não já a verificação ou preenchimento in casu dos aludidos requisitos da impugnação pauliana, mas saber se podia ser formulado o pedido nos precisos termos em que o foi e se podia o Mmº Juiz decidir a acção nos termos desse peticionado.
Vejamos.

Alegam as apelantes que a autora não podia peticionar - e, logo, não lhe podia ter sido deferido tal pedido - a restituição dos bens alienados para o património do devedor (1ª ré), pois isso implicava a nulidade ou anulação das alienações.

Diga-se, antes de mais, que as rés só em vias de recurso se preocupam com esta questão (!), pois na instância recorrida nenhuma observação fizeram a tal respeito - o que, porém, nos não impede de tomar dela conhecimento, atenta a sua natureza, ut artº 664º do CPC, como melhor se verá.

Sobre a acção pauliana, designadamente no que concerne ao pedido e aos efeitos da acção, escreveu o Prof. Meneses Cordeiro em parecer publicado na Col. Jur., Ano XVII (1992), T. III, a págs. 55 e segs.
Assim, no que concerne ao pedido, como ali se refere, o Tribunal não está minimamente vinculado às considerações de Direito feitas pelas partes. E assim sendo, por maioria de razão, ele não está adstrito a lapsos de qualificação jurídica: por exemplo, “se o autor chamar «anulação» à eficácia da acção pauliana, o Tribunal ignorará o erro, decidindo quanto ao fundo. Isto é, embora a anulação seja materialmente diferente dos efeitos da pauliana, tendo o autor feito referência ao artº 610º do CC, isso permitiria considerar que o autor, ao dizer, v.g., «anulada a venda» queria dizer «considerada ineficaz a venda em relação ao credor».
“Situação completamente diferente é aquela em que o Autor, porventura assente num lapso de qualificação, formula um pedido materialmente desconforme com o direito aplicável. Já não há, aqui, um mero problema de qualificação mas, antes, uma questão de pedido substancial. E aí, o Tribunal fica adstrito ao artº 661º/1 do Código de Processo Civil:
«a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir»
Bem se compreende esta medida, que corresponde a dois princípios basilares do processo civil: o do dispositivo e o do contraditório» (autor e loc. cits).
A violação do citado artº 661º-1, do CPC determina a nulidade da sentença (artº 668º-1-e), do CPC).

No caso sub judice, pediu a autora fossem “declarados ineficazes os actos que envolveram a alienação, pela 1ª Ré, à 2ª Ré, do veículo automóvel [,...................], e, por trespasse, do estabelecimento comercial da 1ª Ré,...........” - sublinhado nosso.
Nada a censurar, sobre tal pedido formulado.
Efectivamente, é mais que pacífico na doutrina e jurisprudência que, não obstante a procedência da pauliana, o acto atacado por ela é em si totalmente válido (Paulo Cunha, Da garantia das obrigações, tomo I, § 5). O acto impugnado com êxito mantém-se válido e eficaz. Apenas incorre num certo enfraquecimento: os bens transmitidos respondem pelas dívidas do alienante, na medida do interesse do credor. Isto é, ocorre uma ineficácia em relação ao credor, ineficácia essa que traduz a natureza relativa ou creditícia do direito à restituição: apenas o impugnante a pode questionar, embora, fazendo-o com êxito, todos os credores possam concorrer.
Portanto, pedindo a autora, como vimos, a declaração de ineficácia das alienações - obviamente em relação a ela, a credora--, nada há a censurar no que concerne à formulação de tal pedido.

- DO PEDIDO DE RESTITUIÇÃO DOS BENS AO PATRIMÓNIO DA ALIENANTE, 1ª RÉ:

Pergunta-se: será que no caso sub judice tal “pedido” da autora é “materialmente desconforme com o direito aplicável”? Ou haverá erro na formulação do pedido que possa ser corrigido pelo tribunal por se tratar de mero lapso de qualificação jurídica?
Estamos, no fundo, em face dos efeitos da acção pauliana.

Dispõe o artº 616º do CC:
“Julgada procedente a impugnação, o redor tem direito à restituição dos bens na mediada do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”.
Face à letra e espírito da lei, será que se impõe a «restituição» dos bens alienados ao património do devedor (mesmo que apenas na medida do necessário para garantir o crédito do credor)?
Diferentemente do que reza o Cód. Civil actual, o Código Civil de 1867, no seu artº 1044º, mandava reverter os valores alienados ao cúmulo dos bens do devedor em benefício dos seus credores.
O Prof. Anselmo de Castro (Acção Executiva, singular, comum e especial, pág. 77) diz que «os bens respectivos mantêm-se no património do devedor, onde responderão pela obrigação, devendo demandar-se, por isso, para a execução o adquirente».
Face à redacção do artº 616º, nº1, CC, é-se, porém, tentado a afirmar que na pauliana os bens não devem regressar ao património do devedor, podendo conservar-se no património de terceiro onde o credor poderá executá-los ou praticar os actos conservatórios autorizados por lei aos credores.

Mas significará isto que o pedido de restituição formulado pela autora é incorrecto? E que igualmente incorrecta foi a decisão recorrida ao ordenar a aludida restituição dos bens alienados ao património da 1ª ré, devedora?
Vejamos.

Como se sumariou no Ac. da Rel. de Coimbra de 26.06.90, Bol. M.J. 398, a págs. 589, os efeitos da impugnação pauliana são:
a) o direito à restituição na medida do interesse do credor;
b) o direito a praticar actos de conservação da garantia patrimonial;
c) o direito de execução no património do obrigado à restituição.

Pode-se, desde já, perguntar: será que tem algum interesse essa restituição dos bens ao património do devedor?
Os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Cód. Civil Anotado, 2ª ed., em anotação ao artº 616º, dizem que sim: “A restituição efectiva dos bens não tem, pois, na generalidade dos casos, interesse. Mas pode tê-lo, se a execução ainda não é possível ou se há falência ou insolvência, caso em que os bens revertem para a massa falida....”.
Cremos, porém, resultar da letra e espirito da lei que o pedido a formular não deve ser o da restituição material e efectiva dos bens ao património do devedor.

Efectivamente, deve dizer-se, antes de mais, que o acto que se pretende atacar não está afectado por qualquer vício intrínseco capaz de gerar a sua nulidade, pois se mantém de pé, como acto válido, em tudo quanto excede a medida daquele interesse (Vaz Serra, Ver. Leg. Jur., ano 100º-206 e Prof. Ant. Varela, na mesma Revista, ano 91º-349 ss).
Destinando-se a acção pauliana a fazer valer o direito de eliminação do prejuízo causado pelo acto ou de restabelecimento da possibilidade de satisfação sobre os bens objecto desse acto, cremos que, para lograr tal desiderato, não se torna necessária a efectiva restituição dos bens ao património do devedor na medida da satisfação da garantia do credor.
Sobre a natureza da acção pauliana, dizia Vaz Serra (Responsabilidade Contratual, Bol. M.J., nº 75, a págs. 280 a 288) que “pode dizer-se que a acção pauliana é uma acção restituitória, no sentido de que o réu deve assegurar ao autor, na medida exigida pelo interesse deste, a reposição das coisas no estado anterior”.
Já, porém, sobre os efeitos da acção, o modo de operar esta restituição, escreveu o mesmo autor, in loc. cit.:
“Temos que a restituição se não faz sempre da mesma maneira, devendo adaptar-se às condições especiais de casa caso. Mas é sempre uma restituição: mesmo quando, na hipótese de acção pauliana individual, o réu se limita a tolerar que o autor execute os bens no seu património, pode dizer-se que há restituição, entendida esta palavra num sentido lato, pois, mediante aquela tolerância [.....] consegue-se a restituição de determinado valor ao autor. Esta forma de restituição é bastante para que se alcance a finalidade da acção e, portanto, não deverá ir mais longe” - negrito e sublinhados nossos.
Nas palavras de Antunes Varela, a “restituição” significa duas coisas:
O impugnante pode executar os bens alienados como se eles não tivessem saído do património do devedor, mas sem a concorrência dos demais credores, uma vez que a procedência da acção pauliana só ao impugnante aproveita.
Executando os bens alienados, como se eles tivessem retornado ao património do devedor e não se mantivessem na titularidade do adquirente, o impugnante pode executá-los na medida do necessário para satisfação do seu crédito, sem sofrer a competição dos credores do adquirente (Das Obrigações em Geral, vol. II, 6ª ed., pág. 455).
“Como se... não tivessem saído”, quer significar que, efectivamente, saíram do património do devedor; “Como se eles tivessem retornado”, quer significar que, efectivamente, não retornaram ao património do devedor.
De todo o explanado parece resultar, portanto, que a lei, ao falar em “restituição”, obviamente que se não refere à restituição material e efectiva dos bens ao património do alienante. Antes, e apenas, se refere a uma restituição “no sentido de que o réu deve assegurar ao autor, na medida exigida pelo interesse deste ,a reposição das coisas no estado anterior” (Vaz Serra, local supra cit.), sendo tal restituição entendida com o sentido e significado de o réu (adquirente) se limitar “a tolerar que o autor execute os bens no seu património” , o que nada tem a ver com qualquer imposição de efectivo regresso dos bens ao património do devedor.
Neste aspecto - e apenas neste--, razão assiste ao recorrente.
Efectivamente, cremos ser doutrina dominante a de que a procedência da impugnação pauliana mantém todos os efeitos jurídicos do negócio impugnado, designadamente os translativos da propriedade, excepto no respeitante ao impugnante e somente na medida da satisfação dos créditos invocados e reconhecidos, sem contudo sai do património do adquirente impugnado (cfr. Acs. TRL de 06.04.95, Proc. 0093572; Ac. STJ de 12.06.97, Proc. 96B961; Ac. TRL de 30.11.99, Proc. 0028807; Ac. TRC de 06.06.2000, Proc. 424/2000).
Em suma, portanto, o pedido de restituição efectiva (material e jurídica) dos bens alienados ao património da devedora, 1ª ré, não se nos afigura correctamente formulado, o mesmo acontecendo com a decisão que o sufragou.

Mas já não cremos que razão assista aos apelantes quando sustentam que tal formulação do pedido acarreta ou implica a nulidade das alienações.
De forma alguma.
Efectivamente, como vimos, as alienações mantêm-se válidas, somente não sendo eficazes em relação ao credor na medida do necessário para garantir a satisfação do seu crédito.
Por outro lado, como igualmente vimos, o termo restituição deve ser visto em termos hábeis, supra esclarecidos, isto é, com o sentido e significado de o réu se limitar “a tolerar que o autor execute os bens no seu património”.

Como quer que seja, de forma alguma se nos afigura que o apontado erro-- diríamos, meramente formal - na forma de pedir (e de decidir), “implicaria condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, violando o princípio do dispositivo por condenação ultra petitum ou extra petitum” (conclusão IX das alegações dos apelantes).
A questão tem sido tratada, mas a respeito da situação em que se peticiona a nulidade ou anulação.
Assim, diz o Prof. Henrique Mesquita (Ver. Leg. Jur., ano 120º, págs. 210 e 251) que «se o pedido tiver sido de declaração de nulidade e nenhum efeito do contrato [.......] a acção terá de improceder, dado não se poder condenar “em objecto diverso do que se pediu”».
Já o Prof. Antunes Varela entende que não há violação do arº 661º, nº1, do CPC se o autor tiver requerido, na acção de impugnação pauliana (que é um caso típico de ineficácia do acto jurídico, diferente da figura da nulidade), a declaração de nulidade do acto jurídico e o tribunal decretar (como deve decretar) a ineficácia do acto.
Explica este autor que não há violação do citado artº 661º-1, na medida em que o erro na qualificação jurídica do efeito prático que o autor pretende obter com a acção de impugnação pauliana (que é a inutilização jurídica do acto, na parte em que a mesma atinge o direito do autor) deve ser corrigido pelo juiz sem a mais ligeira ofensa do princípio dispositivo, tal como o artº 664º do Cód. Proc. Civil o concebe e o define (Ver. Leg. Jur., ano 122º, págs. 252 a 255).
Assim sendo, no caso sub judice, aliás, nunca se poderia dizer que o tribunal condenou em quantidade superior ou objecto diferente do pedido, na simples medida em que a condenação foi feita nos mesmíssimos termos do peticionado (declaração de ineficácia dos actos de alienação e restituição dos bens ao património da devedora).
Coisa bem diferente é saber se o pedido de restituição, material e jurídica, dos bens ao património da devedora foi correcto e, por consequência, a sua procedência, decretada na sentença recorrida.
Não foi, como vimos.
Mas - até porque está em causa matéria atinente ao mero efeito da procedência de acção pauliana - nada obsta a que o tribunal corrija o “erro na qualificação jurídica do efeito prático” (Antunes Varela, cit.) que a autora pretende obter com a acção de impugnação pauliana, que é - repetimos-- a inutilização jurídica dos actos de alienação, na parte em que os mesmos atingiram o direito da autora.
Trata-se de lapso - da autora e do julgador - que deve ser corrigido pelo juiz sem condenação ultra petitum, e, como tal, sem qualquer ofensa do princípio dispositivo referido no artº 664º do Cód. Proc. Civil.

Efectivamente, o que do artº 664º,CPC, resulta é o seguinte:
No que respeita aos factos, a actividade do juiz está vinculada: tão somente se pode servir dos factos constitutivos, impeditivos ou extintivos das pretensões formuladas pelas partes; pelo que respeita ao direito, a acção do juiz é livre na indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (Antunes Varela, Manual de Proc. Civil, 2ª ed., págs. 676 e 677).
Como igualmente ensina o saudoso prof. Alberto dos Reis, Cód. Proc. Civil Anotado, vol. V, a pág. 93, o autor ou o réu invoca determinada disposição legal; se o juiz entende que tal disposição não existe, ou que, apesar de existir, não é a que mais se ajusta ao caso concreto em litígio, põe completamente de parte a indicação feita pela parte e vai buscar a regar de direito que, em seu modo de ver, regula a espécie de que se trata (cfr., ainda, Ac. STJ de 17.06.92, Bol. M.J. 418-710).

Em suma, diremos que:
- O pedido de declaração de ineficácia das alienações, bem assim a condenação no mesmo pedido foi correcta;
- já incorrecta foi, quer a formulação de “pedido” de restituição, material e jurídica, dos bens alienados ao património da (1ª) ré alienante, quer a sentenciação nesse mesmo “pedido”.
É que este segundo “pedido”, em bom rigor mais não é do que as consequências de se julgar ineficaz a alienação, ou seja, os efeitos da procedência da alienação.
Ora, tais consequências da ineficácia da alienação não vinculam o julgador o julgador, pois apenas se encontrava vinculado ao objecto da acção - identificado pelo pedido (este correctamente formulado) e pela causa de pedir.
Na primeira instância foram consideradas impugnadas as alienações (do automóvel e do estabelecimento comercial da primeira ré), isto é, considerou a procedência da acção atentos os fundamentos invocados (a causa petendi) e apontou os efeitos dessa procedência, na sua interpretação do artº 616º do CC.; nesta instância, confirma-se a correcção do pedido e apenas se corrige a interpretação dada pelo tribunal a quo ao mesmo artº 616º-- isto é, os efeitos da procedência da impugnação pauliana.

O facto de a autora ter formulado o aludido pedido de restituição (material e jurídica) dos bens e de assim ter sido decidido-- consequências, repete-se, do correcto pedido de ineficácia deduzido e procedente--, de forma alguma seria motivo para a improcedência da acção.
Anote-se que mesmo em caso de ter sido pedida a declaração de nulidade do acto - por erro na qualificação jurídica do efeito prático que pretendia obter -, não havia motivo para a improcedência da acção, antes devia o juiz corrigir tal erro.
Na verdade, ensina o Prof. Antunes Varela (Ver. Leg. Jur. Ano 122º, a pág. 255) que “obrigar a autora, num caso destes, a sofrer a improcedência da acção, para vir de seguida (dando o nome certo aos bois) requerer a declaração de ineficácia do acto (...) seria uma violência e a clara negação prática de tudo quanto se deve ao moderno direito processual, na supremacia relativa do direito substantivo, que os autores se não cansam de apregoar, sobre os puros ritos do direito adjectivo”
Como tal, por maioria de razão assim deve ser no caso sub judice em que foi formulado (correctamente) o pedido de declaração de ineficácia das alienações, apenas tendo sido incorrectamente vistas as consequências de tal declaração de ineficácia.

Aliás, sempre se diga que, embora a autora tenha formulado de forma incorrecta a sua aludida pretensão, as rés contestantes perceberam bem o que a autora pretendia: por via da ineficácia das alienações, garantir o pagamento da sua dívida através dos bens alienados, pouco importanto se a sua execução se faz no património da 1ª ré (alienante), se no património da 2ª ré, desde que o aludido desiderato seja conseguido.
É motivo para dizer, assim, que a aludida irregularidade se assume como simples pecadilho ao qual - como alguém já disse - se não justificaria nem tranquiliza que se aplicasse a «pena que se diz ser a correspondente aos pecados mortais».

Face ao explanado, improcede a apelação, claudicando as conclusões das alegações dos apelantes - sem embargo de a final se alterar a aludida qualificação jurídica dos efeitos da procedência da acção pauliana, por estar no âmbito dos poderes (e deveres) do tribunal, como supra explicitado.

CONCLUINDO:
Na acção pauliana, o pedido a formular é o de declaração de ineficácia do acto que se impugna.
A “restituição dos bens” de que fala o artº 616º do CC tem a ver, não com o pedido propriamente dito, mas com as consequências de se julgar ineficaz o acto impugnado.
Não é correcto o pedido de restituição material e jurídica dos bens ao património do devedor/alienante, pois, obtido ganho de causa, o Autor pode executar os bens no património do obrigado à restituição (artº 616º do Cód. Proc. Civil).
A deficiente formulação - ou, antes, errada qualificação-- deste pedido de restituição (e sua eventual procedência), não constitui justificação suficiente para, por si só, inviabilizar a pretensão ajuizada, até porque é a própria lei a falar na «restituição dos bens».
É que, nada obsta a que o tribunal -- observado o princípio do dispositivo - qualifique de forma diferente esse pedido de restituição, por tal lhe ser permitido pelo artº 664º e conforme ao artº 661º, nº1, ambos do Cód. Proc. Civil, corrigindo, consequentemente, o “erro na qualificação jurídica do efeito prático” que o autor pretende obter com a acção de impugnação pauliana (a inutilização jurídica dos actos de alienação, na parte em que os mesmos atingiram o direito do autor).

IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os Juizes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida -- sendo que, como consequência da declaração de ineficácia das alienações, ali decidida, se condenam as rés à restituição dos bens alienados, na medida do interesse da autora, podendo esta executá-los no património da obrigada à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.

Custas pelas rés/apelantes.

Porto, 17 de Junho de 2004
Fernando Baptista Oliveira
Manuel Dias Ramos Pereira Ramalho
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha