Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0531717
Nº Convencional: JTRP00038023
Relator: ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: DIVÓRCIO
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
Nº do Documento: RP200505050531717
Data do Acordão: 05/05/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: Em acção de divórcio tendo as partes fixado um prazo, por acordo, durante o qual a casa de morada de família é atribuída a uma delas e não tendo decorrido ainda o dito prazo, é prematuro o pedido formulado de atribuição de casa de morada de família, não existindo, por ora, interesse em agir por parte da requerente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

B.......... deduziu incidente de atribuição de casa de morada de família contra o seu ex-marido C.........., alegando ter necessidade da mesma para sua habitação.
Frustrada a tentativa de conciliação, veio o requerido deduzir oposição, formulando também pedido reconvencional.

Foi proferida decisão que julgou improcedente o pedido formulado pela requerente B.......... por falta de pressuposto processual de interesse em agir, absolvendo o requerido da instância, e rejeitando liminarmente o pedido reconvencional, porque processualmente inadmissível.

Inconformada, veio a requerente interpor recurso de agravo, oferecendo as suas alegações, que terminam com as seguintes conclusões:

A - Sendo o interesse em agir pressuposto processual, autónomo do da legitimidade, tradutível na “necessidade, aferida pelas circunstâncias concretas, de recorrer à tutela judiciária”,
basta-se com a existência de “risco para o credor, quando a conduta do devedor tal crie, no momento da sua exigibilidade, e mesmo que sobre a boa fé dessa oposição”

Outro entendimento é violação da regra do artigo 8º do CC e art. 384º nº1 in fine, e art. 472º nº 2 ou 662º nº 1 do CPC.

B – Se, relativamente à atribuição de “casa de morada de família” passa a haver litígio, mesmo quando – mas porque se aproxima do termo – subsiste ainda acordo extrajudicial,
Verificam-se os requisitos de “interesse em agir”, que subjazem a situações como a dos art. 472º nº 2 ou 662º nº 1 do CPC;

C – Tratando-se de definição de uma situação fáctica, que exige antecipação, quando está em causa a convivência com menores e a satisfação de direitos fundamentais, como a “solidariedade” – art. 1º in fine-, a “manutenção dos filhos” – nº 6 do art. 36º - e “habitação para a família” – art. 65º, todos da C. Rep.,
Considerar prematura tal discussão, porque a situação está formalmente – que não realmente! – tutelada, e porque não ocorreu ainda a partilha, é fazer errada interpretação do art. 1739º do CC, como dos art. 20º nº 5 (ameaças desses direitos) e 9º al. b) da C. Rep.

Revogando – reparando – a douta decisão, para que se defina a obrigação – ou o direito – quanto à casa de morada de família, numa situação em que o comportamento das partes prenuncia o que de controvérsia sobrevirá quando a exigibilidade se equacionar, no momento do termo do contrato que a suporta,
é fazer JUSTIÇA comutativa e distributiva.

Não foram oferecidas contra-alegações pelo requerido.

O Senhor Juiz sustentou o despacho recorrido.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Apontemos as questões objecto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas se não encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (art. 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

As questões a decidir:
Tem a requerente interesse em agir, no caso concreto?
Haverá, ou foram alegados factos (supervenientes) determinantes da alteração da decisão quanto à atribuição da casa de morada de família?

I.
O interesse em agir constitui pressuposto de natureza processual, e traduz-se na necessidade objectivamente justificada de recorrer à acção judicial, para satisfação de um direito, em relação a cuja existência existe incerteza objectiva e grave [Vide Ac. RP de 19.11.2002, processo nº 0221100; de 15.10.2002, processo nº 0220986; de 7.10.96, processo nº 9640416; de 18.1.96, processo nº 9531102].

Distingue-se da legitimidade, baseada esta na posição (subjectiva) da pessoa perante a relação controvertida.

A pessoa pode ser o titular incontestável de certo direito e, nessa condição, ser parte ilegítima para discutir em juízo a validade ou o conteúdo da relação constituída, mas carecer de interesse em agir se, por exemplo, ninguém contestar a existência de tal direito, ele próprio propuser uma acção (de mera apreciação) destinada a declarar a existência dele. [Antunes Varela, J.M. Bezerra, e Sampaio e Nora, in Manuel de Processo Civil, 2ª ed., p. 134]

Pode haver direito e não haver interesse em fazê-lo valer juridicamente [Isabel Magalhães Colaço, in Da Legitimidade no acto jurídico, BMJ 10, p. 27].

In Casu, nos autos de divórcio por mútuo consentimento (em que fora convolado o processo inicialmente litigioso), foi acordado entre a requerente e requerido que “A casa de morada de família é atribuída à Ré até à partilha sem qualquer contrapartida”.
Tal acordo foi homologado judicialmente por sentença que transitou em julgado.

No entender do despacho recorrido, “tendo a parte fixado um prazo, por acordo, durante o qual a casa de morada de família é atribuída à requerente e não tendo decorrido ainda o dito prazo, é prematuro o pedido formulado, não existindo, por ora, interesse em agir por parte da requerente”.

Será mesmo assim? Será que a questão se compagina em sede de interesse em agir?

A questão deve ser aferida em relação ao momento a partir do qual pretende a requerente que lhe seja atribuído o direito à casa de morada de família, momento este que a mesma, em bom rigor, não especificou, porquanto não peticiona que aquele direito lhe seja concedido no imediato, antes da partilha, ou que seja para vigorar após esta.
Assim, não sendo possível, em rigor, antever o momento em que a dita partilha se virá a verificar, nem fazendo a requerente, no requerimento inicial, a mínima alusão à vigência da sua pretensão tão-só após aquela, tem de se entender que a pretensão deduzida pela requerente tem o sentido da actualidade que a sua instauração lhe confere, nesse preciso momento histórico e processual.

Neste contexto, é manifesta a falta de interesse em agir, porquanto, uma vez que ninguém contesta o direito que a requerente tem à casa de morada de família até ao momento da partilha, inexiste qualquer necessidade (objectivamente justificada) de recorrer à acção judicial para satisfação desse mesmo direito, cuja existência é para a requerente e para todos, inclusivamente para o requerido, inequívoca, não podendo a requerente considerá-la incerta, muito menos de forma objectiva e grave.
Haverá pois que registar o acerto da decisão recorrida.

2.
Mas, mesmo que se não colocasse a questão da falta de interesse em agir, diríamos que não poderia proceder a pretensão da requerente, uma vez que o acordo quanto à utilização da casa de morada de família obsta a que a requerente venha agora instaurar acção a modificar o mesmo, porquanto existe trânsito em julgado da sentença judicial homologatória daquele acordo. [Ac. STJ de 19.3.2002, ver. nº D2B555, in www.dgsi.pt]

Vem sendo entendido que o acordo sobre o destino da casa de morada de família, outorgado na acção de divórcio por mútuo consentimento, nos termos do art. 1419º nº 1 al. f) do CPC, não é susceptível de ser alterado com fundamento em circunstâncias supervenientes, ao abrigo do art. 1411º do mesmo diploma. [Neste sentido o Ac. RP de 2.5.95, in CJ XX, III, p.197, e demais jurisprudência que vem indicada por Aragão Seia, in Arrendamento Urbano, 6ª ed., p. 546]

E compreende-se esta posição. É que tratando-se dum caso julgado material com decisão do mérito, nos termos do acordo, as partes não o podem alterar sem violação da sentença homologatória (art. 1248º do CC. e art. 673º do CPC). Seria de todo inseguro para as partes ou terceiros, quer no caso da constituição do direito ao arrendamento, quer no caso do direito à habitação, que ele fosse alterado a todo o tempo, face ao art. 1411 do CPC, perante a modificação das circunstâncias da vida dos ex-cônjuges.
Além disso nenhum argumento se pode retirar do art. 1793º n.º 2 no sentido da modificabilidade do acordo quando aí se diz que o arrendamento pode caducar quando as circunstâncias supervenientes o justifiquem. Uma coisa é a caducidade e outra a modificabilidade do direito atribuído. E bem se compreende a caducidade se se tiver em conta que a constituição do direito ao arrendamento tem uma natureza injuntiva, como resulta do sentido que lhe atribui Antunes Varela, ao referir que no caso do art. 1793º do C. Civil "por imposição do Estado (ou seja, do Tribunal) é constituído um novo arrendamento com um dos cônjuges, quer a casa de morada de família seja comum, quer própria do outro cônjuge". "Há .... uma verdadeira expropriação prévia, embora limitada dos poderes do contitular ou do proprietário singelo, para, com base neles, celebrar o contrato de arrendamento" [Código Civil anotado, IV, 570].
Com esta atribuição pretende a lei que a casa fique a ser habitada pelo cônjuge a quem for mais justo atribuí-la por mais necessitar dela.
Assim, haverá que aguardar a partilha para, face ao que nela se decidir, se apreciar da nova situação, também por esta via sendo manifesta a improcedência do pedido.

3.
Acrescerá referir que, mesmo que aceitássemos a orientação jurisprudencial segundo a qual “em acção de divórcio por mútuo consentimento, o acordo relativo á casa de morada de família, que for bem comum do casal, pode ser objecto de alteração, com fundamento em circunstâncias supervenientes, em incidente requerido mesmo depois do trânsito da sentença que tiver decretado o divórcio e homologado os acordos estabelecidos pelos ex-cônjuges” [Ac. RP de 30.9.2002, proc. nº D250994, in www.dgsi.pt], diremos que a requerente não alegou quaisquer factos ou circunstâncias supervenientes, de ocorrência posterior àquela sentença que, a serem provadas, fossem susceptíveis de impor aquela alteração.
De facto, do requerimento inicial, nenhum facto resulta com tal natureza de superveniência, antes pelo contrário – todos são anteriores ou contemporâneos do acordo celebrado e concomitante sentença homologatória, pelo que o mecanismo inserto no art. 1411º não pode de alguma forma funcionar.

Nas suas alegações de recurso, vem a requerente afirmar que a conduta do requerido cria risco o direito da requerente na a situação pós-partilha, sustentando ser evidente que, “logo que termine o período para que foi obtido consenso para a atribuição da casa de morada de família, se gerará conflito”.
Só aqui a requerente recorrente é clara quanto á configuração temporal da sua pretensão, ao invocar a “situação pós-partilha”
Só agora, em sede de recurso, a requerente “fala” que se exige “antecipação da definição da situação de facto, que está em risco a convivência com menores e a satisfação de direitos fundamentais, como a “solidariedade”, a “manutenção dos filhos” e a “habitação para a família”, sem dizer porque motivos concretos e objectivos existe tal risco, só agora diz que “o comportamento das partes prenuncia o que de controvérsia sobrevirá quando a exigibilidade se equacionar, no momento do termo do contrato que a suporta”, sem especificar os ditos comportamentos.

Como acima dissemos, os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

Ora, as afirmações ora aduzidas pela recorrente, para além de o serem em tom manifestamente conclusivo, sem apoio factual, sempre constituiriam matéria nova que não foi afirmada no articulado ou requerimento inicial, não tendo sido sujeita a contraditório, não foi submetida à apreciação do tribunal recorrido (art. 664º do CPC), e, por isso, não pode ser atendida em recurso para qualquer efeito, muito menos para censurar a decisão recorrida, quanto mais, para agora, tardiamente, procurar demonstrar a oportunidade da pretensão deduzida.

Improcedem, assim, in totum, as conclusões da recorrente, não merecendo censura o despacho recorrido, não obstante demasiado sintético e lacónico.

DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao agravo, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas pela recorrente.

Porto, 5 de Maio de 2005
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha