Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0514697
Nº Convencional: JTRP00038632
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: INTERNAMENTO
Nº do Documento: RP200512210514697
Data do Acordão: 12/21/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: É legal o internamento compulsivo de quem, padecendo de tuberculose pulmonar, recusa tratar-se e deambula pelas vias públicas, podendo assim afectar outras pessoas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
O MINISTÉRIO PÚBLICO, inconformado com o despacho (proferido no processo n.º .../05.7TBRT) que rejeitou liminarmente o seu requerimento inicial, onde peticionava o internamento compulsivo de B......., recorreu para esta Relação, concluindo, em síntese:

a) A Lei 2036, de 9 de Agosto de 1949, constitui o fundamento legal que permite internar compulsivamente quem, padecendo de tuberculose, recusa o tratamento e, desse modo, cria uma situação de perigo para a saúde pública;

b) A Lei 2036, de 9 de Agosto de 1949, não é materialmente inconstitucional;

c) O procedimento a adoptar não deve, contudo, ser o previsto na Lei n.º 2036, de 9 de Agosto de 1949, o qual é supervenientemente inconstitucional, mas sim o que resulta da aplicação analógica da parte procedimental consagrada no Dec. Lei 547/76, de 10 de Julho (relativo à Doença de Hansen) e na Lei 36/98, de 24 de Julho (Lei de Saúde Mental).

Nesta Relação, o Ex.º Procurador-geral Adjunto foi de parecer que o recurso merece provimento.

Por despacho da Relatora, foi ordenada a baixa do processo à 1ª instância, a fim de aí ser nomeado defensor oficioso ao requerido e cumprido o disposto no art. 411º,5 CPP.

Notificado da interposição do recurso, o requerido defendeu a manutenção do despacho recorrido.

O Ex.º Procurador-geral Adjunto manteve a posição assumida no parecer já emitido.

Deu-se cumprimento ao disposto no art. 417º, 2 do Cód. Proc. Penal.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
O despacho recorrido baseou-se na seguinte matéria de facto, alegada oportunamente pelo M.P, no requerimento onde formulara a pretensão de Internamento Compulsivo de B........:

a) O requerido é seguido desde Dezembro de 1996 no Serviço de Doenças Infecto-Contagiosas, por se encontrar infectado pelo vírus VIH-1 e VHC;

b) Em Maio/03 foi-lhe diagnosticada tuberculose pulmonar activa e ganglionar;

c) Em 9-10-03, o requerido efectuou análises à expectoração, as quais revelaram ser portador de “Micobacterium Tuberculose Complex”;

d) Em 4-06-03, o requerido foi orientado para o Centro de Diagnóstico Pneumológico (CDP) para tratamento da tuberculose pulmonar, tendo nesse dia iniciado a medicação, a qual só fez por 5 dias, após o que recusou continuar a terapêutica;

e) Em 18/9/03, o requerido reiniciou o tratamento, tendo retomado a medicação de forma regular pelo menos até 20-10-03, altura em que foi novamente observado no CDP;

f) À consulta marcada para 12-11-03, o requerido não compareceu, tendo abandonado, a partir de então e de forma definitiva, o tratamento anti-bacilar;

g) O requerido abandonou o tratamento da doença em fase muito precoce, em situação de eliminação de bacilos da tuberculose;

h) O requerido oferece perigo de contágio de terceiros, já que a doença é transmissível por via aérea;

i) O requerido está a criar condições para tornar o bacilo da tuberculose resistente à medicação disponível;

j) A tuberculose pulmonar é uma doença de elevado potencial de infecciosidade;

k) O tratamento só se mostra viável se for efectuado em condições de internamento hospitalar, atenta a recusa sistemática do requerido em se sujeitar ao necessário tratamento.

2.2. Matéria de Direito
O despacho recorrido indeferiu liminarmente a pretensão formulada pelo M.P, por entender no essencial que o nosso ordenamento jurídico não contempla expressamente a possibilidade de internamento compulsivo, sendo inadmissível o recurso à analogia. “Apesar de a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (argumenta o despacho recorrido) no seu art. 5º, n.º 1, al. e) prever a restrição do direito à liberdade com fundamento na necessidade de preservar a saúde pública, nomeadamente perante doenças contagiosas, o legislador constitucional português não adoptou aquela restrição, pelo que não é legalmente possível a condução daquele doente “susceptível de propagar doença contagiosa” a um estabelecimento hospitalar, a retenção do mesmo nesse estabelecimento e a imposição do tratamento que seja necessário. Estamos, pois, perante uma lacuna legal que, em nosso entender, não pode ser integrada com o recurso à analogia” – cfr. fls. 32.

O M.P insurge-se contra este entendimento, invocando para tanto o Acórdão desta Relação, de 6 de Fevereiro de 2002, Colectânea de Jurisprudência, 2002, T I, pág. 232/233, a anotação de ANDRÉ PEREIRA a esse mesmo Acórdão, in “Lex Medicinae”, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano I, n.º 1, 2004, pág. 135 e seguintes. O referido Acórdão foi ainda publicado na Revista Maia Jurídica, Ano II. N.º1, Janeiro-Julho 2004, pág. 179 e seguintes e mereceu anotação concordante de SÓNIA FIDALGO, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano I, n.º 2, pág. 87 e seguintes.

Dado estarmos perante um caso idêntico ao reportado no citado Acórdão desta Relação, de 6 de Fevereiro de 2002 e porque concordarmos inteiramente com a análise aí feita, a qual foi bem recebida na comunidade jurídica, como decorre da publicidade e anotações concordantes de que foi objecto, limitar-nos-emos a transcrever os respectivos fundamentos.

“(…) A questão que se coloca cinge-se a saber se há fundamento legal para o internamento compulsivo de quem, padecendo de tuberculose pulmonar, recusa tratar-se e deambula pelas vias públicas, podendo assim afectar outras pessoas.

Antecipando, diremos que se crê que a resposta não pode deixar de ser afirmativa.

Debatem-se aqui dois interesses que se dirão opostos, ambos constitucionalmente protegidos: por um lado, o direito do requerido à liberdade (art.º 27º, nº 1, da Constituição), pelo outro, o direito dos cidadãos em geral à protecção da sua saúde, direito este a que, em complemento, corresponde o dever de todos de a defender e promover (art.º 64º, nº 1).

Mas, é patente que o direito dos cidadãos à liberdade não é absoluto, como se alcança logo do nº 2 desse art.º 27, onde se dispõe que “ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória... ou de aplicação judicial de medida de segurança” (sublinhado nosso).

Assim, à luz do diploma fundamental, uma das situações de lícita privação da liberdade é precisamente a que se traduz na aplicação, por decisão judicial, de uma medida de segurança, assim, de uma medida que, à partida, é dirigida a proteger a sociedade contra a perigosidade do indivíduo a quem é aplicada, mas que, do mesmo passo, também não perde de vista a protecção do próprio indivíduo.

E, com o Exmº Procurador-Geral Adjunto, também pensamos que essas medidas de segurança não serão apenas medidas de natureza penal, isto é, que tenham na sua base uma perigosidade justificada num crime, abarcando ainda as medidas que visem prevenir outras situações de perigosidade que não tenham essa etiologia, como logo se intui do nº 3 do preceito - que, excepcionando ao princípio definido no nº 2, prevê situações de possível limitação da liberdade sem prévia decisão judicial -, ao incluir na al. h) o “internamento de portador de anomalia psíquica”; situação em que a perigosidade, justificativa do internamento, decorre da anomalia psíquica em si mesma, não tendo, necessariamente, como suporte o cometimento pelo agente de um facto “objectivamente criminoso”.

Similarmente, também quanto à tuberculose ou quanto à doença de Hansen (lepra), não se trata de situações de perigosidade fundada em crime (ou em facto objectivamente criminoso), mas de perigosidade decorrente da própria natureza dessas doenças que, pela sua reconhecida gravidade e sendo altamente contagiosas, justificam, por si sós, a aplicação de medidas de defesa da sociedade (e também do próprio doente), que o mesmo é dizer, medidas de segurança de natureza não criminal, designadamente a de internamento para tratamento do portador de tais doenças. Nos exactos termos consentidos pelo supra aludido nº 2 do artº 27º da Constituição que, assim, a nosso ver, não é obstáculo ao pretendido internamento do requerido.

Ancorada assim a questão na lei fundamental, vejamos a lei ordinária.

Liminarmente, dir-se-á que, não tendo essas medidas natureza penal, se crê correcto o entendimento do Ex.º Procurador-Geral Adjunto, recusando o obstáculo da proibição da analogia que o nº 3 do art.º 1º do C. Penal estabelece e a que, como vimos, o despacho recorrido se arrimou para justificar a decisão aí acolhida.

Porém, essa via apenas será de seguir se não houver lei directamente aplicável.

O que não será o caso, pois se tem como certo que não pode deixar de relevar aqui a Lei nº 2.036, de 9/8/1949 - Lei de Bases da Luta contra as Doenças Contagiosas -, cuja Base I logo enquadra a tuberculose e a lepra nessa categoria das “doenças contagiosas”; e com tal relevo as considerou o legislador - certamente, pela difusão que então haviam alcançado e facilidade da sua propagação, a exigir específicas medidas de combate - que houve por bem remeter para diplomas especiais a regulamentação dessa luta.

Mas isso não significa que aquela Lei, como lei-quadro da luta contra as doenças contagiosas, não lhes seja desde logo aplicável e deva de ser ignorada.
Ora, dispondo em termos genéricos para as doenças contagiosas, englobando, pois, a tuberculose, a Base III, onde se definem as competências da Direcção-Geral de Saúde, estabelece, na al. d), que compete àquela entidade “determinar o internamento, que será obrigatório, dos doentes contagiosos sempre que haja grave perigo de contágio ...”, prosseguindo no nº 1 da Base V que “os indivíduos afectados ou suspeitos de doença contagiosa serão objecto de vigilância sanitária e submetidos, conforme os casos, a um dos regimes seguintes: a) Observação e tratamento ambulatório ou domiciliário; b) Internamento em estabelecimento adequado” e reiterando, no nº 3, a obrigatoriedade de internamento dos doentes e suspeitos que, oferecendo perigo imediato e grave de contágio, não possam ser tratados na residência ou os que recusem iniciar ou prosseguir o tratamento.

Na mesma linha e já no domínio do actual quadro constitucional, se posicionou a Lei nº 48/90, de 24 de Agosto - Lei de Bases da Saúde -, em cuja Base XIX, sob a epígrafe “Autoridades de Saúde”, se dispõe no nº 3 que “cabe ainda especialmente às autoridades de saúde: ... c) Desencadear, de acordo com a Constituição e a lei, o internamento ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde a indivíduos em situação de prejudicarem a saúde pública”.

Ora, não oferecendo dúvida que os que sofrem de tuberculose, doença altamente contagiosa, e recusam tratamento se colocam em situação de prejudicar a saúde pública, aliás gravemente, dada a exponencial propagação da doença que propiciam, pensa-se, em conclusão, que a legislação apontada confere base bastante para que, a uma situação como a que a petição desenha, se possa fazer corresponder a pedida medida de segurança de internamento compulsivo.

Deste modo, resta apenas o aspecto formal do procedimento a seguir, sendo seguro que, nesse particular, a Lei nº 2.036 não pode valer, por isso que atribuía à Direcção-Geral de Saúde a competência para determinar o internamento compulsivo, o que, significando necessariamente uma privação da liberdade, colidiria com a Constituição que, como se viu, ressalvadas as situações excepcionais nela consignadas, só por decisão judicial admite a possibilidade de limitação desse direito fundamental; competência que, de resto, a também acima referida Lei de Bases da Saúde (Lei nº 48/90) claramente rejeitou - como não podia deixar de ser -, apenas conferindo às autoridades de saúde o poder/dever de, de acordo com a Constituição e a lei, desencadear esse internamento e já não o poder de o determinar.

Mas, como também se julga seguro, exigindo-se uma decisão judicial e estando em causa o interesse público da preservação e defesa da saúde pública, cabe naturalmente nos poderes do Ministério Público promover o necessário para atingir tal fim, nada obstando a que, para tanto, no desenho do iter a seguir e dos limites em que a medida se deva confinar, se lance mão das normas pertinentes do Dec. Lei nº 547/76, de 10 de Julho, relativo à Doença de Hansen (lepra) ou da Lei nº 36/98, de 24 de Julho (Lei de Saúde Mental) (…)”.

É esta a doutrina que aqui se reitera, devendo, pelos motivos expostos, conceder-se provimento ao recurso.

3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro, acolhendo o requerimento do M P.
Sem custas.

Porto, 21 de Dezembro de 2005
Èlia Costa de Mendonça São Pedro
António Augusto de Carvalho
António Guerra Banha