Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0324871
Nº Convencional: JTRP00036543
Relator: PELAYO GONÇALVES
Descritores: INVENTÁRIO
COLAÇÃO
ARROLAMENTO
Nº do Documento: RP200311110324871
Data do Acordão: 11/11/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 4 J CIV PORTO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: I - Não é possível pedir o arrolamento, por apenso a inventário, de bens sujeitos a colação face à noção do próprio instituto.
II - O regresso dos bens à herança é fictício, fazendo-se a colação pelo valor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Por apenso ao inventário que corre termos pelo -º Juízo Cível da Comarca do....., -ª Secção, vieram os interessados João....., divorciado, residente na Rua....., Miguel....., solteiro, residente na Rua..... e Tiago....., casado, residente na Rua....., todos na cidade do....., requerer o arrolamento do imóvel:
fracção autónoma, designada pelas letras AAX, correspondente ao 6º andar direito, frente, do prédio urbano sito na Rua..... e Rua....., freguesia de....., ....., descrito na -ª Conservatória do Registo Predial do..... sob o n.º..., e inscrito na matriz predial respectiva sob o art. ....
Para tanto alegaram, em síntese, que foram os requerentes do citado inventário em consequência da morte do seu pai José....., sendo a requerida irmã apenas por parte do falecido, tendo este morrido no estado de casado com Maria....., mãe dessa irmã, para partilha do seu acervo hereditário. O “de cujus” casara em primeiras núpcias com Maria J....., deixando os três requerentes como filhos desse casal. Ainda em vida, o José..... intentara acção de divórcio contra a 2ª mulher, Maria....., que pende termos no -º Juízo do Tribunal de Família e Menores do....., onde os Requerentes foram julgados habilitados para prosseguir a acção na posição do falecido pai. Porque o pai deixara bens e fizera doação à Requerida do identificado prédio, juntamente com esta Maria......, com reserva de usufruto para eles, têm sério e justo receio que a Requerida o venda ou dissipe de algum modo, o que poderá pôr em causa a legítima deles, e não tem possibilidades financeiras para conferir à partilha o valor do doado. Donde, dever ser ordenado o arrolamento desse imóvel.
Arrolaram três testemunhas, juntaram procurações forenses e quatro documentos.
No despacho de fls. 38 foi ordenada a junção de fotocópia autenticada da descrição predial do imóvel e aperfeiçoar o articulado sobre os factos de “receio de dissipação”, o que fizeram do modo que consta a fls. 40 e seguintes.
Inquiridas as testemunhas e decidida a matéria de facto foi proferida decisão que indeferiu o arrolamento requerido.
Os Requerentes recorreram e, admitido o recurso, seguiu os termos processuais devidos vindo a ser proferido douto acórdão desta Relação, datado de 18 de Março do corrente ano, que concedeu provimento ao agravo, revogou a decisão recorrida e decretou o arrolamento – v. fls. 113 a 116.
Baixando os autos à 1ª instância foi ordenado o arrolamento do imóvel e nomeada como depositária a Requerida, cabeça de casal no inventário.
Veio, então, a Requerida deduzir oposição ao arrolamento, ao abrigo do disposto no art. 388º, n.º 1, al. b) do CPC, alegando, em síntese, que o prédio foi doado por força da quota disponível, o que significa que ocorreu dispensa da colação. E a haver colação deve ser realizada por metade do valor do prédio já que foi doado por ambos os cônjuges. Por outro lado o imóvel está onerado pelo usufruto a favor da mãe, pelo que o seu valor deve ser diminuído de 30%. Atendendo ao valor dos bens já relacionados o activo da herança é superior ao passivo, pelo que não pode haver ofensa da legítima. Finaliza pedindo a revogação da decisão que decretou o arrolamento julgando o mesmo improcedente.
Vieram os Requerentes responder dizendo, também em síntese, que a venda ou dissipação desse imóvel pode pôr em causa a sua legítima, não sendo relevante, para o decretamento do arrolamento a dispensa de colação e que a circunstância de não se indicar que a doação é inoficiosa, que está sujeita a colação ou que ultrapassa o valor do quinhão hereditário da requerida não é motivo para indeferir a “providência” como decidiu o douto acórdão desta Relação. Termina pugnando pela manutenção da decisão.
Seguiu-se a prolação de nova decisão, agora sobre a oposição deduzida pela arrolada à medida decretada que finalizou por a julgar procedente e, por via disso, determinou o levantamento do arrolamento.
Foram agora os Requerentes que interpuseram recurso da decisão supra que foi recebido como de agravo e a subir imediatamente – v. fls. 198.

Nas suas alegações de recurso os Agravantes formularam as seguintes conclusões:
1) Os factos que ficaram provados em sede do presente processo implicam necessariamente uma decisão diversa da proferida pelo Meritíssimo Juiz a quo.
2) O que constitui fundamento do pedido de arrolamento nos termos do disposto no art. 421º do C.P.Civil, é a existência de um justo receio de extravio ou dissipação dos bens a arrolar, sendo o interesse na conservação dos mesmos o pressuposto da legitimidade do requerente.
3) Ora, a nosso ver, dos factos dados como provados pela decisão recorrida, resultou provada a venda do imóvel doado à Agravada, cujo arrolamento foi requerido, provando-se inequivocamente a existência do necessário justo receio de dissipação desse bem, bem como se provou o pressuposto da legitimidade dos requerentes, pelo comprometimento da sua legítima.
4) Ademais, o Tribunal a quo anteriormente na sua decisão proferida em 13/12/2002, havia considerado provado tal risco de dissipação do bem, tendo considerado provada a venda do imóvel.
5) Ora, todos os factos indiciariamente dados como provados sobre esta matéria, tanto na decisão datada de 13/12/2002, como no acórdão da Relação do Porto, como na sentença recorrida, são exactamente os mesmos, não tendo sido produzida nenhuma outra prova subsequentemente àquela decisão.
6) Assim, a nova versão apresentada sobre os mesmos factos, não pode merecer qualquer acolhimento, especialmente porque confronta com toda a prova que foi produzida, e confronta com a valoração que da mesma foi anteriormente feita, a qual não pode ser agora, por assim dizer “substituída” ou “alterada”, atento o facto de mais nenhuma prova ter sido carreada ou produzida a propósito deste assunto posteriormente à decisão datada de 13/12/2002.
7) Ao considerar que não ficou provado o justo receio de dissipação do imóvel em questão, contrariamente ao que anteriormente havia considerado, a decisão recorrida violou frontalmente o princípio da livre apreciação da prova consagrado nos artigos 655º e 659º, n.º 2 e 3 do C.P.C.
8) Não é necessário para o decretamento do arrolamento, como o Tribunal a quo, refere, a demonstração que a doação realizada estava sujeita à colação, e que o seu valor ultrapassava a quota disponível ou o quinhão hereditário da Requerida.
9) Como é solidamente entendido na jurisprudência e doutrina, estando provado que o bem arrolado faz parte da herança dum ascendente falecido, tendo esse arrolamento sido requerido por herdeiro, considera-se sempre que é manifesto o interesse deste na conservação daquele bem, de modo a que ele não saia do acervo hereditário.
10) Basta existir um justo receio de dissipação de bens, para existir fundamento para o decretamento da providência do arrolamento, o que ficou provado.
11) Apesar de ser absolutamente irrelevante para efeitos do decretamento de uma providência de arrolamento, há que dizer que a douta decisão recorrida nunca poderia ter afirmado “que não existe qualquer excesso de doação sendo o valor processualmente válido desse imóvel cerca de 5 x inferior ao da legítima da requerida” concluindo por isso que inexiste fundamento para decretar qualquer arrolamento desse bem”...
12) ...pois, além do imóvel ainda não ter sido objecto de avaliação, não tendo ainda o seu valor real sido determinado, não existe ainda qualquer decisão sobre a existência da totalidade dos bens que fazem parte do acervo hereditário e a pertinência da sua relacionação (aliás a apresentação da relação de bens modificada e a pronúncia contra a mesma ocorreram após ter sido decretada a sentença objecto de recurso)
13) A douta decisão recorrida violou o exacto entendimento do disposto no art. 421º do C.P.Civil não tendo interpretado nem aplicado correctamente as normas jurídicas correspondentes.
14) As condições e requisitos legalmente exigidas para o decretamento do arrolamento requerido verificam-se no caso em apreço.
15) Nesta conformidade deve a douta sentença recorrida ser revogada, e consequentemente ser substituída por outra decisão que decida pela manutenção da providência de arrolamento anteriormente decretada.

A Agravada contra-alegou a pugnar contra o provimento do agravo e que
fosse mantida a decisão recorrida.
Recebido o recurso nesta Relação e colhidos os vistos legais dos Ex.mos Colegas Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
* * *

Na decisão recorrida foram dados como indiciariamente provados os seguintes factos:

1) Os Requerentes vieram requerer se procedesse a inventário com vista a pôr termo à comunhão hereditária e se proceder à partilha do acervo hereditário da herança por morte do falecido José......
2) Requerentes e Requerida são irmãos e herdeiros de José....., que faleceu no dia 14 de Outubro de 2001, no estado de casado com Maria......, sem ter deixado testamento ou qualquer outra disposição de vontade (1).
3) O citado falecido deixou como seus únicos herdeiros a sua referida mulher, com quem foi casado no regime de comunhão de adquiridos, e os seguintes quatro filhos:
a) João.....,
b) Miguel.....,
c) Tiago..... e
d) Ana......
4) Os três primeiros descendentes indicados nas alíneas a) a c) do artigo anterior, são os únicos filhos do primeiro matrimónio do falecido José..... com Maria J......
5) A quarta descendente indicada na alínea d) do artigo 3) e filha do segundo matrimónio do de cujus com Maria.......
6) Corre termos sob o n.º ../.., na -ª Secção do -º Juízo do Tribunal de Família e de Menores do....., acção de divórcio litigioso entre o falecido José..... e a referida Maria......, tendo a mesma sido intentada por aquele antes da sua morte, em 19 de Maio de 2000, correndo actualmente termos ao abrigo do disposto no n.º 3 do art. 1785º do C.C., tendo os ora requerentes sido julgados habilitados para com eles na posição do Autor (falecido) prosseguir a acção.
7) Tendo a referida acção de divórcio de prosseguir para efeitos patrimoniais.
8) O falecido deixou, pelo menos, os bens constantes da relação de bens de fls. 70 a 76 dos autos principais cujo teor de dá por reproduzido (2).
9) Os Requerentes tomaram conhecimento que o seu pai juntamente com a referida Maria......, doaram à ora Requerida, com reserva de usufruto a seu favor, a nua propriedade da fracção autónoma, designada pelas letras “AAX”, correspondente ao 6º andar direito frente, do prédio urbano sito na Rua..... e Rua....., freguesia de....., ....., descrito na -ª Conservatória do Registo Predial do..... sob o n.º ...., inscrito na matriz predial respectiva sob o art......
10) Duas das testemunhas ouviram no local público desta cidade uma conversa sobre a eventual venda desse imóvel.
11) Existe a possibilidade da Requerida alienar esse imóvel.
12) A Requerida não liquidou as despesas do funeral do seu pai e parcialmente uma conta de reparação de um automóvel.
13) O valor patrimonial declarado desse imóvel é de 2.062.032$00.
14) A doação referida em ) foi realizada por “força das suas quotas disponíveis”.
1) A inexistência de qualquer testamento foi infirmada pela junção a fls. 144 que só não se considera comprovada integralmente devido a esse documento ser uma cópia simples.
2) Facto parcialmente aditado através da simples aquisição processual dessa relação de bens que foi alvo de reclamações ainda não decididas.
* * *

São, em princípio, as conclusões das alegações do recorrente que determinam o âmbito e o objecto do recurso.
Não foi posto em causa por qualquer das partes a matéria de facto que serviu de base à decisão da causa.
Com efeito, tratando-se de procedimento cautelar especificado, de arrolamento, previsto e processado nos termos do art. 421º e ss. bastam-lhe indícios da “probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão” – art. 387º, n.º 1, ex vi art. 392º, n.º 1 (os preceitos que se citam são do Código Processo Civil, excepto os que adiante se indiquem com origem noutro Diploma).
Como procedimento cautelar especificado visa evitar o extravio ou dissipação de bens ou de documentos, face ao “justo receio de extravio ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos ...” – art. 421º, n. 1.
Tratam-se de processos provisórios, em contraposição aos definitivos, simples e rápidos (summaria cognitio) – por isso menos seguros – demonstrada uma mera probabilidade séria da existência de um direito (fumus boni juris) que permite ao tribunal decretar uma composição provisória da lide, que permita esperar pela decisão definitiva.
O “receio” que haverá de ser “justo” tem-se entendido que envolve uma acepção de temor, acompanhado de incerteza, de um facto inconsumado a produzir no futuro posto que presumível – ac. STJ, de 20/01/77, BMJ 263-214.
Sendo que o imóvel a arrolar foi doado pelo inventariado e mulher, com reserva de usufruto para eles e por força das quotas disponíveis, em nada releva para que seja retirado dos bens a relacionar no inventário, pelo que sempre será computado para a determinação da legítima dos filhos.
É certo que o prédio doado e cujo arrolamento é pretendido pelos Requerentes, ora Agravantes, está sujeita à colação, ou seja, o seu valor deve ser restituído à massa da herança para igualação da partilha – art. 2104º, n.º 1 do Cód. Civil. Se a doação foi feita, ou não, por força da quota disponível, se os doadores dispensaram, ou não, a colação – art. 2104º e ss. do Cód. Civil – sempre será computada para efeitos da determinação da quota legitimária de cada herdeiro, no caso de 2/3 da herança – art. 2159º, n. 1 e 2 do mesmo Cód. Civil (independentemente do resultado da acção de divórcio pendente.
Porém, o bem doado não é susceptível de arrolamento, pelas razões exaradas no ac. do STJ, de 3/10/95, in CJ, t. III, pág. 38, que entendemos por se aplicar ao caso sub judice que passámos a reproduzir:
“O que está em causa nestes autos é a manutenção, ou não, do ordenado arrolamento que incidiu sobre bens que se dizem estarem sujeitos ao ónus da colação.
Este ónus não é mais que uma reunião fictícia dos bens doados com o fim de reconstituir o património do de cujus, de maneira a incluir nele todos aqueles bens que dele fariam parte se o autor da herança os não tivesse doado.
Para que se verifique a hipótese de colação torna-se cumulativamente necessário: que haja doação feita pelo autor da sucessão a favor de descendentes que na data da mesma sejam seus herdeiros legitimários; que não tenha havido dispensa de colação; que haja abertura da sucessão hereditária em que concorram diversos descendentes, alguns beneficiados com aquelas liberalidades.
Dissemos atrás que se estava perante uma reunião fictícia de bens. Na verdade, resulta do disposto no art. 2108º do C. Civil que o donatário não é obrigado a restituir em espécie os bens doados, mas tão só os respectivos valores. O que leva Pereira Coelho (Direito das Sucessões, 2ª 3 ed., pág. 252) a referir que a colação é uma simples operação de cálculo, salvo se todos os herdeiros acordarem em que haja uma restituição em espécie».
Assim, a regra é a de que a colação se faz em valor, imputando-se o valor da doação na quota do donatário de forma a que esta venha a receber da herança apenas a diferença entre o valor dos bens doados e da sua quota hereditária. A reposição em substância só ocorre excepcionalmente, quando todos os interessados assim acordarem. Então o donatário ficará privado da sua propriedade dos bens doados que reverterão para a massa da herança.”

É evidente que no caso dos autos não há acordo entre os herdeiros em que se proceda à reposição em substância do imóvel doado.
Se a doação foi por conta da quota disponível, ou não, em nada influi para que o prédio doada reverta para o acervo dos bens da herança a partilhar.
O que atrás reproduzimos do douto acórdão leva-nos à conclusão que o bem doado não tem de ser relacionado no inventário, mas apenas o valor do mesmo à data da abertura da herança. Como diz o mesmo acórdão não resulta para os restantes interessados o direito ao bem, mas um direito ao respectivo valor.
“E, não havendo direito aos bens, evidente é que falha um dos requisitos essenciais ao deferimento do arrolamento – arts. 421º e 423º” (do CPC).
Assim sendo, mesmo que resultasse da instrução desta providência haver indícios que a requerida pretendesse alienar, não dissipar por se tratar de bem imóvel, o prédio doado, daí não resultaria prejuízo para os restantes interessados, pois a estes só assiste o direito a relacionar o seu valor, e não à sua propriedade.
Pelo que não interessa para o cômputo da quota legitimária a manutenção do prédio doado no acervo da herança, mas apenas o seu valor. O que equivale a dizer que o bem doado pode ser alienado, com usufruto ou sem usufruto, pela donatária Recorrida.
Improcedem, por conseguinte, todas as conclusões das doutas alegações de recurso dos Agravantes.
* * *

Nestes termos, apesar de diversa fundamentação da decisão recorrida, mas pela que atrás exarámos, acorda-se em negar provimento ao agravo e manter a decisão que indefere o requerido arrolamento.
Custas pelos Agravantes.
Porto. 11 de Novembro de 2003-11-19
Rui Fernando da Silva Pelayo Gonçalves
Manuel António Gonçalves Rapazote Fernandes
António Luís Caldas Antas de Barros