Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
634/07.2GAVCD.P1
Nº Convencional: JTRP00042860
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: DANO QUALIFICADO
Nº do Documento: RP20090909634/07.2GAVCD.P1
Data do Acordão: 09/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO - LIVRO 385 - FLS 103.
Área Temática: .
Sumário: I - O tipo legal do dano com violência compreende quer a violência física, quer a psíquica.
II – Para a verificação do crime exige-se a comprovação de um nexo de imputação entre o dano e os meios utilizados e que estes tenham provocado directamente uma lesão de bens eminentemente pessoais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 634-07-05.
Vila do Conde.


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
Findo o inquérito o Ministério Público acusou o arguido imputando-lhe a prática de um crime de dano com violência, p. e p. pelo art.º 214º n.º1 al. A) do Código Penal.
Inconformado o arguido requereu a abertura da instrução visando a sua não pronúncia, porquanto, alegou, não se verificava qualquer dos pressupostos – a) com violência contra uma pessoa; b) ameaça com perigo eminente para a vida ou integridade física; ou pondo-a na impossibilidade de resistir – do tipo legal de crime de cuja prática foi acusado.

Realizada a instrução, foi proferida decisão instrutória de não pronúncia.

Inconformado recorre o Ministério Público apresentando as seguintes conclusões:
I - A fórmula utilizada pelo legislador para definir o conceito de violência, como qualificadora do crime de dano é idêntica à adoptada para descrever a conduta típica do crime de roubo, do art. 210.º, do Código Penal e tal conceito abrange não só a violência física, mas igualmente a psíquica.
II – Encontram-se, assim, três condutas distintas aptas a integrarem o conceito de violência – A violência propriamente dita (física), a ameaça com perigo iminente para a vida ou integridade física ou a colocação da vítima na impossibilidade de resistir.
III – E tal entendimento tem sido pacífico da doutrina e na jurisprudência.
IV - O arguido introduziu-se na casa dos ofendidos de madrugada (entre as duas e a quatro da manhã) e fez-se acompanhar de dois indivíduos cuja identidade não foi possível apurar.
V – Os ofendidos encontravam-se a dormir e que o arguido e os dois indivíduos que o acompanhavam, a seu mando, ao soco e pontapé, destruíram portas, janelas e mobiliário.
VI - derivado do barulho da acção do arguido e seus acompanhantes, os ofendidos acordaram sobressaltados, temeram pela sua integridade física e solicitaram ao arguido que parasse com aquela conduta.
VII - O arguido quis com a sua conduta danificar coisa móvel alheia, o que conseguiu, e quis ainda causar medo nos ofendidos e coloca-los na impossibilidade de resistir, o que conseguiu.
VIII – Verificam-se, pois, os elementos objectivos e subjectivos do crime de dano com violência.
IX – Pois, embora o arguido não tenha de usado de violência física directa sobre os ofendidos os factos integram o conceito de violência psíquica, pois o arguido quis deixa-los na impossibilidade de resistir.
X – Sendo essa uma situação de constrangimento para os ofendidos que, embora não preencha o conceito de violência física ou de ameaça, enquadra-se naquelas situações que o legislador entendeu, ainda assim, proteger com o tipo legal de dano com violência.
XI – Se o arguido não actuasse da forma descrita (colocando os ofendidos na impossibilidade de resistir), não teria logrado atingir o fim danoso a que se propôs, o que equivale por dizer que se encontra preenchido o nexo de imputação entre o fim danoso e os meios utilizados.
XII – Por outro lado o modo de execução dos factos, por banda do arguido leva-nos a concluir o crime de dano que praticou, foi-o através da dita violência.

O despacho recorrido sustenta no essencial que:
As condutas danosas caracterizadas nos art.º 212º e 213º hão-de ser levadas a cabo mediante o emprego de tal violência contra uma pessoa, violência que, assim, constitui um meio de execução do facto danoso, sendo, pois, prévia ou, ao menos, simultânea da acção lesiva. Por outro lado, fazendo essa violência parte integrante da conduta danosa, também em relação a ela se há-de verificar o dolo do agente, em qualquer das suas modalidades, exigindo-se, pois, que também essa circunstância se possa imputar a esse título ao arguido.
(…)
Conjugando os elementos colhidos e os factos vertidos na acusação, resulta indiciado que os estragos causados em casa dos ofendidos, não foram levados a cabo através do uso de violência física ou em virtude de os mesmos terem sido colocados na impossibilidade de resistir, pois e tal como todas as testemunhas afirmaram as mesmas não contactaram fisicamente com o arguido, o qual, aliás, terá parado com a destruição quando soube que o B………. não estaria em casa e também, de acordo com o depoimento da testemunha C………., quando o mesmo lhe disse que teria uma filha grávida em casa.
Por outro lado, o medo que os ofendidos afirmaram ter sentido, não foi um meio utilizado pelo arguido para produzir o dano, mas apenas uma mera consequência, ocasional, da própria acção danosa. E relativamente ao elemento subjectivo da conduta do arguido D………., o dolo apenas se reporta ao dano que causou em casa dos ofendidos e já não ao medo ao receio que, ao produzir esse dano, concomitantemente produziu naqueles. Por todo o exposto e na medida em que não se verificam indiciariamente preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime imputado ao arguido, nunca poderia o mesmo vir a ser condenado em julgamento, circunstância que conduz à sua não pronúncia – artigo 308º, nº1, do Código de Processo Penal.

O Direito:
A questão a decidir é a de saber se os factos descritos no despacho acusatório são integradores de um crime de dano com violência, previsto e punível pelo art. 214, n.º 1, al. a, do Código Penal.
*
Dispõe o art.º 308º n.º do Código Processo Penal:
Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronuncia.

Adianta o legislador, art.º 283º n.º 2 do Código Processo Penal, que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena ou uma medida de segurança.
Tem entendido a doutrina e a jurisprudência, que os indícios se consideram suficientes quando dos elementos probatórios carreados para os autos resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança, ou seja, quando, a partir de tais elementos, se crie a convicção de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido, ou que haja uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Na tarefa da concordância prática das finalidades também em jogo nesta fase processual, finalidades conflituantes como se sabe – a realização da justiça e a descoberta da verdade material; a protecção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas e o restabelecimento, tão rápido quanto possível, da paz jurídica posta em causa pelo crime e a consequente reafirmação da validade da norma violada [1] – importa ter presente, parafraseando F Dias[2], que o acto de levar alguém a julgamento representa já um ataque ao bom nome e reputação do acusado. Daí que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.

O art. 212.º do Código Penal, tipifica o crime de dano nos seguintes termos:
1 — Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
(…).”
Dispõe o artigo 214.º, n.º 1, al. a) do Código Penal[3], sob a epígrafe «Dano com violência»:
“1 — Se os factos descritos nos artigos 212.º e 213.º forem praticados com violência contra uma pessoa, ou ameaça com perigo iminente para a vida ou a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, o agente é punido:
a) No caso do artigo 212.º, com pena de prisão de um a oito anos;
(...)”

Que a conduta do arguido, descrita no despacho de acusação, integra, pelo menos, um crime de dano, previsto e punível pelo art. 212.º, n.º 1, do Código Penal, é questão pacífica e indiscutível. Que essa conduta colhe abundante suporte indiciário nos autos de inquérito, também não sofre contestação. Todos estão de acordo que o arguido e acompanhantes não identificados destruíram portas, janelas e móveis da habitação onde os ofendidos dormiam. A única questão que se coloca é a de saber se está indiciada conduta que configure o tipo qualificado de dano com violência do art.º 214º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

Resulta do tipo de ilícito do artigo 212° que as condutas típicas previstas correspondem a formas diferenciadas de lesão à propriedade, tendo como elemento objectivo o destruir, no todo ou em parte; danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia. Costa Andrade[4] comenta o preceito deste modo: O crime de dano com violência configura uma forma dependente e qualificada das infracções previstas nos artºs 212° e 213°. Entre dano com violência e estas últimas medeia uma relação de continuidade quanto aos elementos estruturais da factualidade típica. O que impõe uma remissão, de princípio, para a disciplina daqueles preceitos e para os respectivos comentários. Trata-se, por outro lado, de uma qualificação ditada pela especificidade da conduta, sobreponível, à acção típica do roubo. Por isso, cabe também remeter para o regime e o comentário ao crime de roubo para acertar o sentido, o alcance e as implicações práticas da expressão "violência contra uma pessoa, ou ameaça com perigo iminente para a vida ou a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade resistir".
Os artigos 210º, n.º 1 e 214°do Código Penal, apresentam grande similitude de expressão, repetindo-se as palavras supra referidas e inclusive sendo iguais as penalidades previstas num e noutro dos preceitos para as diferentes formas de lesão: prisão de 1 a 8, de 3 a 15 e de 8 a 16 anos de prisão.
Sendo o roubo um crime complexo e pluriofensivo, pois os valores jurídicos tutelados são de ordem patrimonial – direito de propriedade e de detenção de coisas móveis – abrangendo bens jurídicos eminentemente pessoais, como a liberdade individual de decisão e acção, integridade física e até a própria vida alheia, o mesmo se passará com o tipo agravado de dano, em que a lesão ao bem jurídico propriedade, se alcança já não através de uma apropriação de coisa móvel, mas pela destruição, que pode ser parcial, desfiguração de coisa móvel (abrangendo animais) ou imóvel alheia, mas em que a componente de lesão de bens eminentemente pessoais é alcançada pelas condutas descritas com os mesmos termos nos dois tipos, sendo o mesmo o modo de comissão do crime que o qualifica.
A propósito de violência no âmbito do Código Penal de 1982, que previa este tipo no artigo 309°, decidiu o STJ[5] que as violências pressupostas no artigo 309º, nº 1, para além de deverem ser relevantemente violentas para com as pessoas, tinham de ser dirigidas por forma tal que se pudesse dizer que as pessoas foram violentadas directamente com os danos causados. Posteriormente ponderou o Supremo Tribunal de Justiça que a violência contra as pessoas, não tem de ser produto de contacto físico directo com o ofendido, podendo sê-lo por outras maneiras. A lei não exige expressamente esse contacto directo e, por outro, a tranquilidade e a integridade física das pessoas são o bem jurídico protegido conjuntamente com a propriedade. Ora a integridade física, tanto pode ser atingida com contacto directo como indirecto, e daí que não haja razão para exigir, como se fez na decisão recorrida, o contacto directo, já que, repete-se, esse modo específico não é exigido pelo tipo legal para que se verifique a sua violação[6]. No mesmo sentido, neste sentido mais abrangente, decidiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 Janeiro 2003, reafirmando que «o conceito de violência contemplado no art. 214° do Código Penal abrange tanto a violência física, como psíquica sobre certa pessoa, como também a intervenção física directa sobre coisas, do visado ou de terceiro, que atinjam por via indirecta as pessoas[7].
Podemos assim assentar que este tipo legal (dano com violência), compreende quer a violência física (sobre o corpo de outrem), quer a psíquica[8].
Está indiciado nos autos que o arguido e acompanhantes não identificados ao levaram a cabo a acção delituosa impediram o livre exercício ou gozo de direitos individuais dos ofendidos, alguns crianças e uma mulher grávida que após os factos e como consequência sentiu necessidade de ir ao hospital. Querendo o arguido «resgatar» uns motores que se encontravam «guardados» na garagem daquela habitação, neutralizou à partida a possível reacção dos ofendidos. Assim, a violência contra as coisas é apenas o meio violento de pôr os ofendidos em «sentido», um modo explícito de lhes dizer para não interferirem na recuperação dos motores. Um acto que vale mais que mil palavras.
Tal vendaval de violência gratuita, pela madrugada numa casa de habitação quando os seus habitantes dormiam, intimida, constrange e inibe qualquer reacção por parte das vítimas que ficam impossibilitadas de resistir. Tanto é assim que tolhidos de medo não saíram do recolhimento dos quartos.
O que o arguido quis e conseguiu foi que os ofendidos ficassem impossibilitados de resistir. Criou uma situação de constrangimento para os ofendidos que, pese embora não preencha o conceito de violência física ou de ameaça, enquadra-se naquelas situações que o legislador entendeu, ainda assim, proteger com o tipo legal em análise, nas situações referidas por Conceição Ferreira da Cunha[9], como sendo de duvidoso enquadramento enquanto ameaça ou violência física, mas que, ainda assim o legislador quis inserir no conceito de violência (impossibilidade de reacção).
De qualquer modo a actuação do arguido integra o conceito de violência psíquica, que é, como vimos, típica.

Para que se verifique o crime de dano com violência não basta o emprego de violência, ameaça ou colocação de outrem na impossibilidade de resistir, exige-se, como refere o Supremo Tribunal de Justiça[10], e é necessário que se possa afirmar um nexo de imputação entre a destruição, total ou parcial da coisa alheia e os meios utilizados e que esses meios tenham provocado directamente uma lesão de bens eminentemente pessoais.
Ora isso ocorre no caso. A actuação do arguido e acompanhantes intimidou e perturbou a tranquilidade física e psíquica dos ofendidos; foi constrangedora para os ofendidos a quem afectou e limitou a sua liberdade, obrigando-os a confinar-se aos quartos de dormir onde já estavam para não serem directamente atingidos na sua integridade física. A actuação do arguido foi preordenada a um objectivo reaver os motores que o B………. tinha levado, para isso actuou empregando violência de modo a inibir e inviabilizar a qualquer reacção de oposição.
Se o arguido não actuasse da forma descrita (colocando os ofendidos na impossibilidade de resistir), muito provavelmente não teria logrado atingir o fim danoso a que se propôs, o que equivale por dizer que se encontra preenchido o nexo de imputação entre o fim danoso e os meios utilizados.
Podemos assim concluir que comete o crime de dano com violência – e não apenas o de dano simples – quem durante a madrugada, acompanhado de mais dois indivíduos, se introduz voluntária e conscientemente numa casa de habitação onde dormem várias pessoas e destrói portas, janelas e mobiliário, causando o acordar sobressaltado dessas pessoas, fazendo-as temer pela sua integridade física[11] e constrangendo-as a não intervir, com o objectivo conseguido de recuperar bens que se encontravam na garagem. Esse comportamento produz e configura em quem o suporta violência psíquica.

Decisão:
Na procedência do recurso deve o despacho de não pronúncia ser substituído por outro que pronuncie o arguido pela prática do crime por que tinha sido acusado.
Custas pelo arguido fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

Porto 9 de Setembro de 2009.
António Gama Ferreira Ramos
Abílio Fialho Ramalho

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[1] Maria João Antunes, Segredo de Justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção, Liber Discipulorum, pág. 1237 e segts.
[2] Direito Processo Penal, 1974, pág. 133.
[3] As alterações introduzidas pela Lei n.º 59/07, de 4 - 9, deixaram intocado o artigo 214°do Código Penal e no que respeita ao artigo 212° não releva para o caso o nº 3 do preceito.
[4] Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, p. 255.
[5] Acórdão de 1-4-1992, BMJ 416, 511.
[6] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.6.99. Processo 837/98 Relator Brito Câmara, disponível na CJ on line.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 Janeiro 2003, Processo 4098/02 Relator António Pereira Madeira (Ref. 597/2003), disponível na CJ on line.
[8] Acórdão do STJ de 14 de Dezembro de 2006, Santos Carvalho, com o doc. n.ºSJ200612140043505 e disponível em www.dgsi.pt. Assim também o Acórdão STJ de 23-01-2003, proc. 4098-02, Pereira Madeira, disponível em www.dgsi.pt: «O conceito de violência, tradicionalmente ligado à simples violência física sobre o corpo da vítima, é hoje um conceito mais abrangente, já que tanto a doutrina como a jurisprudência se inclinam para o englobamento da violência psíquica.
[9] Mutatis mutandis, Conceição Ferreira da Cunha, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 172.
[10] Supremo Tribunal de Justiça, Secção Criminal, Acórdão de 6 Fevereiro 2008, Processo 3991/07 Relator Raul Borges (Ref. 4682/2008), disponível na CJ on line.
[11] Neste sentido em caso algo similar Acórdão deste tribunal de 29 Abril 1998, Relator Francisco José Cachapuz Guerra (Ref. 2911/1998), consultado na CJ on line.