Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0625465
Nº Convencional: JTRP00039663
Relator: EMÍDIO COSTA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
Nº do Documento: RP200610310625465
Data do Acordão: 10/31/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 230 - FLS 22.
Área Temática: .
Sumário: É fundamento para um recurso de revisão de uma sentença de reconhecimento de paternidade um exame sanguíneo posteriormente realizado à menor, à mãe dela e a seu pretenso pai, quando no decurso da respectiva acção de investigação de paternidade, este último se recusou a realizar tal exame
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

B………. instaurou, no Tribunal Judicial de Amarante, por apenso à acção ordinária para investigação de paternidade que aí lhe moveu o Ministério Público, o presente recurso de revisão, pedindo que se revogue a sentença proferida naqueles autos e se declare que o requerente não é pai de C………. .
Alegou, para tanto, em resumo, que, por sentença proferida naquela acção, foi declarado que a C………. é filha do requerente; porém, teve agora o requerente conhecimento, através dos exames realizados pelo Instituto de Medicina Legal, que o requerente é excluído da paternidade daquela C………. .
Juntou certidão do relatório do exame realizado na Delegação do Porto do Instituto de Medicina Legal ao sangue de D………., de sua filha C………. e do pretenso pai B………., com data de 5 de Setembro de 2002, no qual se conclui que, “de acordo com os resultados obtidos, B………. é excluído da paternidade de C………., filha de D……….”.
Conclusos os autos, foi neles vertido despacho que decidiu não poder ser atendido o recurso interposto na forma requerida, antes se ajustando ao caso a acção de impugnação de paternidade.
Inconformado com tal despacho, dele agravou o requerente, tendo esta Relação, por douto Acórdão de 20/10/05 (fls. 30 a 34), revogado o despacho recorrido, a fim de os autos seguirem os seus termos normais.
Devolvidos os autos à 1ª instância, foi mandada notificar a parte contrária (Ministério Público) para responder, querendo, no prazo de 20 dias.
O Ministério Público não respondeu.
Seguidamente, verteu-se nos autos sentença que, considerando ter o requerente recusado a realização do exame ao sangue requerido oportunamente pelo Ministério Público no âmbito da acção de investigação de paternidade, o que o impediria de vir agora suscitar tal meio de prova, decidiu pela não existência de fundamento para a revisão, a qual julgou improcedente.
Inconformado com o assim decidido, interpôs o requerente recurso para este Tribunal, o qual foi admitido como de apelação e efeito meramente devolutivo.
Alegou, oportunamente, o apelante, o qual finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª – “A recusa do exame sanguíneo não tem o efeito de impedir o recurso de revisão, mas apenas o efeito indicado no artº 519º, nº 2, do CPC;
2ª – Mesmo que o recorrente tivesse confessado a paternidade – e não confessou – sempre poderia peticionar a revisão da sentença, nos termos do artº 301º, nº 2, do CPC;
3ª – Por maioria de razão, pode pedir a revisão da sentença, mesmo tendo recusado o exame de sangue na altura própria;
4ª – O recorrente recusou o exame sanguíneo por estar induzido em erro sobre a paternidade da menor;
5ª – O documento apresentado para fundamentar o pedido de revisão preenche todos os requisitos do artº 771º, al. c) do CPC;
6ª – O que interessa é a verdade biológica e não a interpretação formalista efectuada pela Mª Juiz, a qual violou os preceitos legais acima indicados;
7ª – Se assim não for entendido, desde já o recorrente suscita a inconstitucionalidade dos artigos 771º, al. c), 301º, nº 2, e 519, nº 2, do CPC, por violação do artº 20º, nºs 1 e 4 da CRP”.

Contra-alegou o Ministério Público, pugnando pela procedência do recurso e consequente revogação do decidido.
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O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artºs 684.º, n.º3, e 690.º, n.º 1, do C. de Proc. Civil.
De acordo com as apresentadas conclusões, a questão fulcral a decidir por este Tribunal é a de saber se pode ser atendido como fundamento de revisão de uma sentença de reconhecimento de paternidade um exame sanguíneo posteriormente realizado à menor, à mãe dela e ao pretenso pai, quando, no decurso da acção de investigação de paternidade, este último não deu o seu assentimento à realização de tal exame.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
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OS FACTOS

Os factos a atender na decisão do recurso são essencialmente aqueles que emergem do relatório supra, para os quais se remete. Para além deles, colhem-se nos autos mais os seguintes:

1º - Em 10 de Outubro de 1991, o Ministério Público instaurou, no Tribunal de Circulo de Penafiel, acção ordinária de investigação de paternidade contra o aqui requerente B………., pedindo que a menor C………. fosse reconhecida como filha daquele;
2º - Na fase processual adequada, o Mº Público requereu exame pericial ao sangue da menor, da sua mãe e do B………., a realizar pelo Instituto de Medicina Legal do Porto;
3º - Na mesma fase processual, o Réu juntou aos autos certidão do assento de nascimento da menor C………., do qual constava (fls. 26 do processo principal) que a menor, de acordo com certidão remetida do Tribunal de Amarante, no dia 04 de Junho de 1990, é filha de E……….;
4º - Notificado da junção de tal certidão, o Mº Público requereu que aos exames hematológicos já requeridos fosse também submetido o perfilhante E……….;
5º - Mandados notificar o Réu e o aludido perfilhante a fim de dizerem se davam o seu assentimento à realização do exame hematológico requerido, o Réu respondeu que não dava o seu assentimento (fls. 32 do processo principal);
6º - Realizou-se o exame hematológico requerido, no Instituto de Medicina Legal do Porto somente à menor, a sua mãe e ao perfilhante E………., tendo o respectivo relatório, com data de 2 de Junho de 1993, concluído pela exclusão da paternidade do referido perfilhante em relação à menor C………. (fls. 59 do processo principal);
7º - A acção referida no item 1º prosseguiu os seus termos, tendo-se realizado a audiência de discussão e julgamento e, em 10 de Junho de 1994, verteu-se nela sentença que, julgando a acção procedente, declarou que a menor C……… é filha do Réu B……….; mais declarou sem efeito a perfilhação da mesma menor efectuada por E……….;
8º - Da sentença referida no item 7º não foi interposto recurso ordinário.
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O DIREITO

Está em causa apreciar e decidir se é fundamento para um recurso de revisão de uma sentença de reconhecimento de paternidade um exame sanguíneo posteriormente realizado à menor, à mãe dela e ao pretenso pai, quando, no decurso da respectiva acção de investigação de paternidade, este último se recusou a realizar tal exame.
Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis (C.P.C. Anotado, vol. 6º, 335), o recurso de revisão apresenta, à primeira vista, o aspecto duma aberração judicial: o aspecto de atentado contra a autoridade do caso julgado. Há uma sentença transitada em julgado, cercada, portanto, da força, do prestígio e do respeito que merecem as decisões que atingiram tal grau de segurança. Como se compreende, então, que seja lícito pôr novamente em causa a exactidão dessa sentença? Como se justifica que seja admitida a impugnar esse acto jurisdicional uma pessoa para quem ele constitui caso julgado?
Aquele mestre, após fazer uma resenha do pensamento de alguns autores estrangeiros, dá-nos o seu próprio fundamento da revisão do seguinte modo: “Bem consideradas as coisas, estamos perante uma das revelações do conflito entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança ou de certeza. Em princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, se feche a porta a qualquer pretensão tendente a inutilizar o benefício que a decisão atribuiu à parte vencedora.
Mas pode haver circunstâncias que induzam a quebrar a rigidez do princípio. A sentença pode ter sido consequência de vícios de tal modo corrosivos, que se imponha a revisão como recurso extraordinário para um mal que demanda consideração e remédio.
Quer dizer, pode a sentença ter sido obtida em condições tão estranhas e anómalas, que seja de aconselhar fazer prevalecer o princípio da justiça sobre o princípio da segurança. Por outras palavras, pode dar-se o caso de os inconvenientes e as perturbações resultantes da quebra do caso julgado serem muito inferiores aos que derivariam da intangibilidade da sentença” (ob. cit., 336 e 337).
Como se escreveu no Ac. do S.T.J. de 19/10/99 (C.J., S.T.J., Ano 7.º, 3.º, 55), o recurso extraordinário de revisão, pondo em causa a autoridade do caso julgado e a necessidade da certeza e segurança jurídica que lhe são inerentes, encontra a sua justificação última na exigência de justiça.
Em certos casos, a intangibilidade da sentença deve ceder perante os imperativos da justiça.

Compreende-se, pois, que o recurso extraordinário de revisão só possa ter lugar em determinadas situações, que são aquelas que se encontram enumeradas nas diversas alíneas do art.º 771º do C. de Proc. Civil.
A situação que aqui nos prende é somente a prevista na respectiva al. c), segundo a qual a revisão pode ter lugar quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a revogar e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.
O documento a que se refere esta al. c) tem, pois, de corporizar uma declaração de verdade ou ciência, isto é, uma declaração testemunhal destinada a representar um estado de coisas, pelo que deve ser um documento em sentido restrito. Há-de ser ainda um documento decisivo, dotado, em si mesmo, de tal força que possa conduzir o juiz à presunção de que só através dele a causa poderá ter solução diversa daquela que teve (vide Ac. do S.T.J. de 15/03/74, B.M.J. nº 235º, 219).
O documento aqui em causa, apresentado como fundamento do pedido de revisão, é um relatório do exame ao sangue da menor C………., de sua mãe D………. e do requerente B………., realizado no Instituto de Medicina Legal do Porto (fls. 5 a 7).
Segundo a conclusão de tal relatório, o requerente B………. é excluído da paternidade da menor C………. .
Não se discute a autoridade do Instituto de Medicina Legal para efectuar o exame em causa nem tão pouco a validade de tal exame, mormente quando se conclui pela exclusão da paternidade, como é o caso. O exame hematológico realizado é de carácter científico e de elevada certeza, como é unanimemente reconhecido.
O documento apresentado como fundamento do pedido de revisão é, pois, um documento decisivo, susceptível, por si só, de modificar a sentença vertida na acção principal em sentido favorável ao requerente. Na verdade, é inquestionável que o julgador daquela acção, se tivesse tido acesso a tal documento, não teria certamente proferido sentença a julgar a acção procedente, reconhecendo e declarando a menor C………. como filha de B………. . Ao invés, se tivesse conhecido o resultado do exame realizado, aquele julgador não deixaria de concluir e decidir pela improcedência de tal acção.
A sentença recorrida não questiona a validade de tal documento nem a sua importância decisiva para conduzir à modificação da sentença revidenda. O que a sentença recorrida invocou, como fundamento para rejeitar a revisão, foi a circunstância de o requerente não ter dado o seu assentimento à realização do exame requerido pelo Ministério Público, no decurso da acção de investigação de paternidade.
Mas, salvo o devido respeito, não tem a sentença recorrida a menor base de sustentabilidade, sendo de realçar a obstinação do Tribunal “a quo” em não dar o adequado andamento ao pedido de revisão em causa, ao qual fechou já por duas vezes a porta, sem fundamento válido.

É certo que, como emerge dos factos provados, o requerente não deu o seu assentimento ao exame hematológico requerido pelo Mº Público, na acção de investigação de paternidade. Ficou, por isso, sujeito às penalidades previstas no artº 519º, nº 2, do C. de Proc. Civil, sendo a mais gravosa a faculdade que é conferida ao tribunal de apreciar livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, o que sucedeu na acção principal, como se deixou assinalado no respectivo despacho de fundamentação das respostas aos quesitos (vide fls. 71-vº do processo principal).
Os exames hematológicos nem sempre redundam em desfavor dos réus, como neste caso se comprovou. Perante a sua contestação, em que alegou ter mantido por diversas vezes relações de cópula com a mãe da menor, a qual as teria mantido também com outros homens, a troco de dinheiro, não se entende como o Réu não deu o seu assentimento à realização do requerido exame. Se o tivesse feito, então, muita actividade processual se teria poupado.
Mas aquela recusa do Réu em realizar o exame hematológico, que veio a realizar anos mais tarde, com o natural consentimento da mãe da menor, não é motivo bastante para não se aceitar o resultado do efectuado exame como fundamento do recurso de revisão.
O certo é que o documento em causa é de data posterior à sentença revidenda, a qual tem a data de 10 de Junho de 1994, sendo certo que o relatório do exame em causa tem a data de 5 de Setembro de 2002. Como tal, o aqui requerente não podia fazer uso dele na acção de investigação de paternidade, uma vez que o mesmo foi produzido muito para além do termo daquela acção.
O caso aqui configurado é daqueles que reclamam a quebra da rigidez do princípio do caso julgado. Na verdade, a sentença que reconheceu a menor C………. como filha do requerente B………., quando este, de acordo com os resultados obtidos no exame hematológico posteriormente realizado, veio a ser excluído da paternidade da mesma menor, tem consequências de tal modo corrosivas que se impõe a revisão da mesma sentença, através do recurso extraordinário, para um mal que demanda consideração e remédio.
Na verdade, se o requerente não pode ser o pai biológico da menor C………., como o realizado exame veio revelar, há que modificar a sentença revidenda, de molde a que a paternidade reconhecida por tal sentença desapareça do assento de nascimento da menor, a fim de permitir que ela própria ou quem a represente, enquanto for menor, ponha em marcha os mecanismos adequados para encontrar o seu verdadeiro pai biológico.
Se é do interesse da menor e da sociedade em geral que ela tenha um nome inscrito no lugar destinado ao pai, no seu assento de nascimento, não é menos certo que tal nome deve corresponder ao do seu verdadeiro pai biológico. Outro nome que não esse falseia a realidade.
E o certo é que, como veio revelar o exame realizado em 5 de Setembro de 2002, o requerente B………. está excluído da paternidade da C………., pelo que não é, nem pode ser, o seu verdadeiro pai biológico. Como tal, não pode constar como sendo o pai da C………., no assento de nascimento desta.
A sentença recorrida não pode, deste modo, manter-se, pelo que, procedendo as conclusões da alegação do apelante, a mesma tem de ser revogada, a fim de ser substituída por outra que julgue procedente o fundamento da revisão, seguindo-se os ulteriores termos (artº 776º do C.P.C.).
...............

DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, a fim de ser substituída por outra que julgue procedente o fundamento da revisão, seguindo-se os ulteriores termos legais.
Sem custas, por delas estar isento apelado.

Porto, 31 de Outubro de 2006
Emídio José da Costa
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso