Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
140/06.2GNPRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AIRISA CALDINHO
Descritores: CONVERSÃO DA MULTA EM PRISÃO
NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
NOTIFICAÇÃO PESSOAL
Nº do Documento: RP20110330140/06.2gnprt-B.P1
Data do Acordão: 03/30/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O despacho que converte a multa em prisão deve ser notificado ao condenado por contacto pessoal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal:
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I. No processo comum singular n.º 140/06.2GNPRT do 4.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos, o arguido B… foi condenado, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 03.01, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de €3,00.
Não tendo sido liquidada a totalidade da multa, foi o remanescente convertido em 44 dias de prisão subsidiária, sendo ordenada a notificação pessoal do condenado deste despacho.
O Ministério Público, que requerera a notificação via postal simples, interpõe recurso com as seguintes conclusões:
- “…
1° No despacho recorrido, foi recusada a notificação do arguido, por via postal simples, do despacho que determinou a conversão da pena de multa em prisão subsidiária, com fundamento na extinção do TIR, e das obrigações dele recorrentes, após o trânsito em julgado da sentença, conforme prescrito pelo art.° 214, n.°1, al. e), do Código de Processo Penal".
2° Não obstante o teor literal desta norma, "uma boa interpretação da lei não é aquela que, numa pura, perspectiva hermenêutica - exegética, determina correctamente o sentido textual da norma; é antes aquela que, numa perspectiva prático - normativa, utiliza bem a norma como critério de justa decisão do problema concreto" (Castanheira Neves). Não ponderar nas consequências práticas e nos valores constitucionais é tornar a interpretação jurídica um mero jogo teórico, sem utilidade social, e uma "ordem", sem sentido de justiça material.
3° Nesta perspectiva, o art.° 214, n.°1, al. e), do Código de Processo Penal deve ser objecto de interpretação restritiva, excluindo do seu âmbito o TIR. A sua ratio radica no facto de que, com a sentença condenatória, tornar-se desnecessário prevenir os perigos elencados no art.° 204° do Código de Processo Penal. Ora, esta ratio não é extensível ao TIR, uma vez que esta medida, ao contrário de todas as outras, sendo de aplicação automática e inerente à posição de arguido, não visa acautelar os perigos previstos no art.° 204° do Código de Processo Penal.
4° O critério legal da vigência do TIR deve antes ser encontrado no art.° 57°, n.°2, do Código de Processo Penal, uma vez que:
se "a qualidade de arguido conserva-se durante todo o decurso do processo", e se o "processo" não termina enquanto não se verificar o seu fim último, o cumprimento da sentença, logo, o arguido continua a ser arguido depois de ser condenado, e, ler, não deixa de estar submetido àquilo que é inerente a essa qualidade - o TIR.
5° Esta é a solução imposta pela "normatividade jurídica vigente", até porque:
- se antes da sentença, o TIR é, do ponto de vista dos direitos do arguido, admissível, apesar de poder redundar na condenação ou sofrimento de uma pena mais gravosa, por maioria de razão deve-o ser depois do respectivo trânsito em julgado, quando se trata, como é o caso da conversão da pena de multa em prisão subsidiária, da aplicação de uma condição ope legis decorrente de um não cumprimento da pena fixada em sentença que o arguido sabe que cometeu;
- está longe de não salvaguardar os direitos de defesa e do contraditório do arguido, uma vez que o arguido sabe que prestou TIR, que pode ser notificado por via postal simples, que deve comunicar ulteriores alterações, que foi condenado e que não cumpriu a respectiva sentença;
- e opera a ponderação mais razoável (art.° 18°, n.°2, da CRP), entre os direitos de defesa do arguido (art.° 32°, n.°1, da CRP) e a existência de uma administração de justiça penal eficaz, base da existência de um Estado de Direito (art.° 2° da CRP).
6° Outra perspectiva:
- tutela apenas a irresponsabilidade dos arguidos, na melhor das hipóteses, ou a fuga consciente à aplicação das penas a que foi condenado, na pior;
- pressupõe uma visão paternalista do arguido, como um sujeito menor, incapaz de perceber o que faz e as consequências do que decide;
- e coloca em causa a eficácia da administração da justiça penal.
7° A doutrina consagrada no AUJ 6/2010 exige, a latere, a sua aplicação à notificação do despacho que converteu a pena de multa em prisão subsidiária, não só porque a maioria dos Conselheiros partilhará a visão do Conselheiro Souto Moura aí transcrita; mas também porque, do ponto de vista do exercício dos direitos de defesa do arguido, são mais importantes as notificações no âmbito de execução da pena de prisão suspensa, do que as notificações no âmbito da execução da pena de multa,
8° Nestes termos, a decisão recorrida, não procedendo a uma interpretação restritiva do art.° 214°, n.°1, al. e), do Código de Processo Penal, violou o disposto nos arts.° 57°, n.°2, 196°, n.°1, e 204° do Código de Processo Penal,”
Não houve resposta do condenado.
Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II. É o seguinte o teor do despacho recorrido:
“…
No que concerne à notificação sugerida do arguido, a promoção do Ministério Público visa aplicar às formalidades na notificação do despacho que converteu a pena de multa em prisão subsidiária a mesma tese que fez vencimento no Ac. de Fixação de Jurisprudência n.° 6/2010.
Ou seja, entendendo-se que as obrigações resultantes do TIR se mantêm para além do trânsito em julgado da sentença, pretende-se que a notificação da condenada se realize por via postal simples, nos termos do disposto no art. 113°, n.° 1, al. c), e 196°, n.° 2 e 3, ai.
É certo que a situação sobre a qual versou o aludido Acórdão - notificação do despacho que procede à revogação da suspensão da pena de prisão - é semelhante à que se discute nos presentes autos - notificação de despacho que procede a conversão de pena de multa em pena de prisão subsidiária.
É também certo, tal como consta da douta promoção, que permitir a notificação por via postal simples do despacho de revogação da suspensão da pena de prisão será mais "ofensivo" que a notificação do despacho que converte a pena de multa em prisão subsidiária. Pelo que, se quem pode o mais, pode o menos, não se anteveriam entraves à aplicação daquela jurisprudência ao presente caso, analogicamente.
Mas, não obstante as semelhanças, a verdade é que o thema decidendum no presente processo é distinto do daquele Acórdão, pelo que a decisão que resolveu o conflito de jurisprudência não é aqui aplicável com a força de jurisprudência fixada.
E ainda que o fosse, tal precedente não seria vinculativo, como decorre claramente do art. 445°, n.° 3, do CPP.
Ora, concedemos que a solução promovida pelo Ministério Público apresenta notórias vantagens a nível prático, promovendo a efectiva aplicação da Justiça e a afirmação do Estado de Direito. Mas reconduz-se também a uma interpretação contra legem que bule com os direitos ao contraditório e à defesa constitucionalmente consagrados no art. 32°, da CRP.
Na verdade, a possibilidade de subsistência do TIR para além do trânsito em julgado da sentença condenatória esbarra, inevitavelmente, com a redacção clara do art. 214°, n.º 1, al. e), do CPP, nos termos do qual as "medidas de coacção extinguem-se de imediato (...) com o trânsito em julgado da sentença condenatória".
Incluindo-se o TIR entre as medidas de coacção legalmente previstas, e não constando da lei qualquer ressalva à referida extinção, como sucede, com o caso da caução no n.º 4 do citado preceito, impossível se torna aderir à tese promovida.
Assim, inexistindo, porque extinto, o TIR, impossível se torna a notificação por via postal simples por aplicação conjugada dos arts. 113°, n.º 1, al, c) e art. 196°, n.º 3, al c), do CPP.
Podemos concordar que o arguido mantenha tal qualidade depois de ter sido condenada, como bem aponta o Acórdão de Fixação de Jurisprudência e a promoção em apreço. Mas tal circunstância em nada impede a referida extinção do TIR, e das obrigações dele decorrentes, após o trânsito em julgado da sentença, imposta pelo aludido art. 214°, n.° 1, al e), do CPP.
Mais se diga que no presente caso não é defensável a existência - duvidosa e contestada nos votos de vencido lavrados no Acórdão - de uma "condenação mediata" (o segmento que condena na pena de prisão principal) que por estar condicionada não transita em julgado e permite a subsistência do TIR para além do trânsito em julgado da "condenação imediata" (parte da sentença que aplica a pena substitutiva).
Aqui o que existe na sentença é uma única pena, a de multa, que é convertida atento o seu não cumprimento voluntário ou coercivo. Não temos, como sucedia no caso do Acórdão n.º 6/2010, uma pena de prisão principal condicionada ao não cumprimento da pena substitutiva (a suspensão). A sentença que condenou em pena de multa transita então em julgado integralmente, não havendo segmentos condicionados. Cai assim outro dos fundamentos que foram invocados no Acórdão, e que poderiam ser aqui também elencados.
Discordando dos fundamentos expostos na promoção e no Acórdão para a subsistência do TIR prestado pelo arguido, impossível se torna defender a sua notificação por via postal simples.”
A questão colocada à apreciação desta Relação é a de saber se a notificação ao condenado do despacho que converteu a multa ou o remanescente dela em prisão subsidiária deve ser pessoal ou se se basta com a via postal simples.
O art. 113.º do CPP prevê a notificação via postal simples, por meio de carta ou aviso, nos casos expressamente previstos (n.º 1, al. c)).
Um desses casos é o do arguido sujeito a TIR, cujas consequências devem ser-lhe comunicadas, sendo uma delas precisamente que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada (art. 196.º, n.º 2 e n.º 3, al. c), do CPP).
Não há dúvidas de que o TIR é uma verdadeira medida de coacção, como resulta da sua inserção sistemática no Código de Processo Penal, sendo mesmo a primeira dessas medidas elencadas, e as medidas de coacção, nos termos do art. 214.º, n.º 1, al. e), do CPP, extinguem-se de imediato com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
A reforçar esta classificação do TIR como medida de coacção está o art. 204.º do CPP, ao excepcionar a sua aplicação fora das situações ali previstas para aplicação das restantes.
Não faz a lei qualquer distinção quanto a medidas de coacção, pelo que tem de considerar-se que também o TIR se extingue com o trânsito em julgado da sentença, sendo certo que também a lei não faz distinção quanto à espécie de pena aplicada, por forma a excepcionar daquela regra geral algumas categorias de condenações, como seja a condenação em pena de multa, prevendo a sua eventual conversão em prisão subsidiária por incumprimento.
Escreve o Prof. Germano Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, II, 3.ª ed., pág. 254):
“As medidas de coacção e de garantia patrimonial são meios processuais de limitação da liberdade pessoal ou patrimonial dos arguidos e outros eventuais responsáveis por prestações patrimoniais, que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias.”
Enquanto imposição de limitações à liberdade do arguido, o TIR só pode classificar-se como medida de coacção. Como tal, está sujeito aos limites impostos pelo art. 214.º do CPP que, de resto, não deixa de consagrar uma excepção quanto à medida de coacção prevista no art. 197.º, estabelecendo que ela só se extingue com o início do cumprimento da pena de prisão. Caso fosse essa a vontade do legislador, não deixaria de excepcionar o TIR da regra geral contida no referido artigo.
Assim, as medidas de coacção só vigoram até àqueles momentos em que opera a sua extinção nos termos sobreditos, sendo a extinção do TIR com o trânsito em julgado da decisão condenatória.
Por assim se entender, entende-se igualmente que a notificação do despacho que procedeu à conversão do remanescente da multa em prisão subsidiária deve ser pessoal, pois só esse meio assegura o efectivo conhecimento da decisão. As razões que impõem a notificação do próprio condenado e não apenas do seu defensor vêm da necessidade de lhe garantir um efectivo conhecimento do conteúdo da decisão, por forma a disponibilizar-lhe todos os dados indispensáveis para, em consciência, decidir se a impugna ou não e exigem também que a notificação se realize mediante contacto pessoal e não apenas postal que representa apenas uma presunção de notificação (declaração de voto do Cons. Manuel Braz no ac. de fixação de jurisprudência n.º 6/2010).
Como refere o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, transitada a decisão condenatória, o arguido passa à situação de condenado, enquanto sujeito passivo da execução penal, designadamente da pena de multa, como decorre dos art.s 47.º, 48.º e 49.º do CP, 490.º, 491.º e 491.º-A do CPP, sendo diferente o seu estatuto, já sem as limitações impostas pelo TIR.
III. Face ao exposto, decide-se negar provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.
Elaborado e revisto pela primeira signatária.

Porto, 30 de Março de 2011
Airisa Maurício Antunes Caldinho
António Luís T. Cravo Roxo