Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0754869
Nº Convencional: JTRP00040666
Relator: CAIMOTO JÁCOME
Descritores: INSOLVÊNCIA
CLASSIFICAÇÃO
CULPA
Nº do Documento: RP200710220754869
Data do Acordão: 10/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 315 - FLS 118.
Área Temática: .
Sumário: I - O facto de ainda não ter transitado a sentença que decretou a insolvência não impede que o incidente de qualificação da mesma se processe, o qual é um processo urgente.
II - A qualificação da insolvência (culposa ou fortuita) para efeitos civis, no quadro das disposições do CIRE, nada tem a ver com o apuramento de eventual responsabilidade criminal do devedor (gerentes).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1- RELATÓRIO

Nos autos de incidente pleno de qualificação da insolvência da sociedade requerida B………., Lda, com sede ………., veio o Sr. Administrador apresentar o seu parecer, nos termos do artigo 188º, nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18/03.
Nesse parecer propõe a qualificação da insolvência como culposa, considerando que, nos termos do nº 2, do artº 188º, do CIRE, devem ser afectados pela qualificação da insolvência como culposa, culpa grave, os gerentes em funções durante o ano de 2005, a saber:
- C……….;
- D……….;
- E……….; e
- F………..
O Ministério Público apresentou o seu parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa, considerando ter a insolvente violado o disposto nos artigos 186º, nº 1 e nº 2, als. a), f) e i) e 186º, nº 3, als. a) e b), todos do CIRE, e indicando como afectados por esta qualificação também os gerentes C………., D………., E………. e F………. .
Procedeu-se à notificação e citação nos termos do disposto no artigo 188º, nº 5, do CIRE.
Apenas F………. veio deduzir oposição. Nesta alegou, em síntese, ter sido ele quem deu início ao processo e na qualidade de credor por ter renunciado à gerência em Junho de 2005. Mais alega ter sido ele quem deu a conhecer ao tribunal, e assim de forma mediata ao Administrador de Insolvência e ao Ministério Público, os factos decisivos para a declaração de insolvência e para a sua qualificação como culposa. Alega, ainda, ter sido ele quem requereu a tomada de medidas cautelares.
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Entendendo que o processo continha em si todos os elementos que permitem conhecer de imediato do mérito do incidente, passou o julgador a quo a fazê-lo, proferindo saneador-sentença - artigos 510º, nºs 1, b), e 3, do CPC – decidindo (dispositivo):
“Nos termos supra expostos qualifica-se a insolvência da Sociedade B………., Ldª, como culposa, sendo afectados por esta qualificação os gerentes C………., D………. e E………. .
Declaram-se os gerentes C………., D………. e E………. inibidos para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de dez anos.
Determina-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelos gerentes C………., D………. e D………. e condenam-se os mesmos a restituir quaisquer bens ou direitos que tenham recebido em pagamento destes créditos.
Custas pela massa insolvente (artigos 304º do CIRE)
Registe e notifique, não se determinando o envio de certidão da Sentença à Conservatória competente com vista ao registo da inibição conforme artigo 189º, nº 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, por os gerentes não terem nacionalidade portuguesa”.
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Inconformados os referidos gerentes apelaram da sentença, tendo, nas suas alegações, formulado as seguintes conclusões:
1. O incidente de qualificação de uma insolvência, só pode ser iniciado depois de a sentença da declaração de insolvência ter a força jurídica que lhe advém do seu trânsito em julgado.
2. Enquanto a sentença que declara a falência estiver pendente de recurso, não pode ser iniciado o incidente de qualificação da insolvência.
3. Pressuposto para o início do incidente de qualificação de insolvência, é que a mesma subsista enquanto decisão oponível erga omnes, portanto insusceptível de revogação por parte de um Tribunal superior.
4. Constitui nulidade absoluta o incidente de qualificação de insolvência, instaurada em violação das três situações referidas nas conclusões 1 a 3.
5. Ficaram violados os art.ºs 201 n.º 1 do CPC e o n.º 1 do art.º 186° do CIRE.
6. O princípio da presunção de inocência ficou igualmente posto grosseiramente em crise, pelo que a sentença viola o disposto no n.º 2 do art.º 32° da Constituição.
7. Não podem, sobre a mesma situação de facto, existir no mesmo processo, decisões diferentes, que constituam motivo para que a decisão esteja em oposição com os respectivos fundamentos.
8. Tal é o caso, quando no despacho de resposta à matéria de facto, se declara que não se consideram também como provados factos alegados não directamente respeitantes à decisão da causa (assim por exemplo os relativos a eventual responsabilidade criminal) e com base nesses mesmos factos, se vem a classificar a falência como culposa.
9. A classificação da falência como culposa, pressupõe a prática de actos dolosos ou praticados com culpa grave, o que constitui timbre essencial do acto criminoso.
10. Ora sendo julgada como culposa certa falência, então seguramente que houve a prática de crime, certamente a julgar em processo autónomo e em Tribunal próprio, mas sendo assim o juízo formulado pelo julgador ao classificar a insolvência, esbarra sem qualquer dúvida contra juízo anteriormente feito sobre os mesmos factos e no mesmo processo, segundo o qual aos factos apurados se excluem os relativos a eventual responsabilidade criminal.
11. A sentença recorrida violou o disposto na alínea c) n.º 1 do art.º 668º do CPC.
12. A classificação da insolvência como culposa pressupõe a certa actuação concreta do seu autor.
13. Não basta para tal uma insinuação genérica e abstracta, antes terão que se apontar concreta e rigorosamente factos que indiscutivelmente sejam da autoria do responsável, que por ele tenha sido indiscutivelmente praticado e executado.
14. Na sentença recorrida não se vislumbra um único facto concreta e efectivamente praticado pelos recorrentes, susceptível de integrar a factualidade abstracta prevista na lei para qualificar o agente como tendo actuado com dolo ou culpa grave.
15. A lei limita a verificação desses factos aos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, pelo que, sempre será necessário especificar o acto, também em função do tempo em que foi praticado, nomeadamente pela concreta indicação de uma data.
16. Não se fazendo qualquer referência a uma data concreta na pratica de actos que se pretendem qualificar como dolosos ou com culpa grave, para deles se extrair a consequência da verificação da falência culposa, verifica-se a omissão de um facto essencial para poder dele extrair consequências legais.
17. A sentença recorrida viola claramente os pressupostos legais do n.º 1 do arte 168° do CIRE, por falta de concretização dos factos, por falta de atribuição concreta da sua autoria, e por falta de indicação concreta do momento da prática dos actos.
18. Da matéria de facto dada por provada nos autos, não se conclui que tenham ocorrido destruição, danificação inutilização, ocultação, desaparecimento, no todo ou em parte considerável, do património da falida, pelo que é nula a sentença que qualifica a insolvência de culposa com base em violação da alínea a) do n.º 2 do artº 186° do GIRE.
19. Da matéria de facto dada por provada nos autos, não se conclui que tenha ocorrido disposição dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros, pelo que é nula a sentença que qualifica a insolvência de culposa com base em violação da alínea d) do n.º 2 do artº 186° do CIRE.
20. Mesmo que se tivesse verificado essa disposição de bens do devedor, ela teria que ser uma disposição ilegítima, ou seja, praticada sem qualquer causa justificativa merecedora de tutela jurídica.
21. A sentença recorrida teria assim que analisar se a eventual disposição de bens teria sido legítima ou ilegítima, o que não fez, incorrendo em omissão de pronúncia já que a questão foi levantada pela falida.
22. Não pode o Tribunal ignorar factos relevantes, quais sejam os de deixar por explicar como pode uma empresa dotada de um capital próprio de 200.000 EUR ser titular de um património avultado, constituído por uma frota de mais de 70 camiões, cujo valor de mercado nunca será inferior a 3.500.000 EUR, e vir julgar que a empresa dissipou esse seu património, não curando de averiguar da forma como esse património entrou no activo da empresa.
23. Deve na análise da situação de facto o Tribunal esclarecer a disparidade existente entre os capitais próprios da empresa e forma da realização do seu activo, quanto mais não seja, porque ao não o ter feito, violou gravemente os direitos de terceiros, que cumpre ao Tribunal assegurar, nomeadamente no caso de uma insolvência.
24. A sentença recorrida viola, neste particular, o disposto na alínea d) do n.º 1 do art° 668º do GPG, e faz uma incorrecta interpretação da alínea d) do n.º 2 do art° 186º do CIRE, que por isso mesmo viola também.
25. Da matéria de facto dada por provada nos autos, não se conclui que a falida tenha feito, do crédito ou dos seus bens, uso contrário aos seus interesses, pelo que é nula a sentença que qualifica a insolvência de culposa com base em violação da alínea f) do n.º 2 do art° 186º do CIRE.
26. Resulta da matéria de facto dada por provada, que na origem da situação da falida, esteve o "ataque" do fisco alemão, zelosamente subscrito e apoiado como verdadeiros lacaios pelo fisco português e pela Polícia Judiciária portuguesa, em idêntica actuação junto da falida.
27. Foi assim legítima a actuação da falida, ao defender-se dos "ataques" do fisco português, em consonância e subserviência ao fisco alemão, que em última análise visaram violar o Tratado Para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e a Alemanha, aprovado pela Lei n.º 12/82 de 3 de Junho.
28. De facto, ao ter tributado na Alemanha e em Portugal a mesma actividade, as autoridades fiscais de ambos os países violaram o disposto no artº 7° n.º 1 do citado Tratado, violação que a sentença posta em crise sanciona, violando consequentemente também a citada disposição legal.
29. Ao ter recusado devolver o IVA a que a falida legitimamente tinha direito, e ao ter impedido essa devolução, as autoridades fiscais portuguesas, mancomunadas com as autoridades fiscais alemãs, empurraram intencionalmente e de facto a falida para uma situação crítica de tesouraria, violando a 6.ª Directiva (77/388/CEE de 17 de Maio de 1977).
30. E impediram o saudável princípio da concorrência, consagrado no artº 3° alínea f) do Tratado de Roma, que igualmente violaram.
31. Disposições que o Tribunal igualmente violou, por aderir às actuações das autoridades fiscais, em vez de as ter reprovado.
32. E o Tribunal fez errada aplicação ou interpretação do disposto na alínea f) do n.º 2 do artº 186° do CIRE, que acabou igualmente por violar grosseiramente.
33. Da matéria de facto dada por provada nos autos, não se conclui que tenha ocorrido incumprimento por forma reiterada dos deveres de apresentação e colaboração.
34. Tendo ficado provado que a gerência era praticada e executada exclusivamente pelo TOC e legal representante F………., o qual foi ilibado de qualquer responsabilidade na qualificação da falência, fica por perceber porque razão se imputam essas responsabilidades, a quem reconhecidamente nunca exerceu, de facto, a gerência da empresa.
35. Foi o TOC e legal representante F………., que requereu a falência, e que apresentou em 30.05.2006 o modelo 22 do IRC.
36. Foi o TOC e legal representante F………. que fechou as contas do ano de 2005.
37. Contas que não puderam ser submetidas à aprovação em assembleia geral, face ao que havia sido decretado por despacho de 06.03.2006 (às 14 horas).
38. O que contudo não impediu o referido TOC e legal representante F………., de entregar nos autos toda a documentação da empresa, o que fez em 07.06.2006.
39. Assim, nenhum facto indicia a falta de cumprimentos por parte dos recorrentes, por forma reiterada, dos seus deveres de apresentação e colaboração, antes provando precisamente o contrário, já que asseguraram que o legal representante da empresa o fizesse, pelo que, ao decidir por forma diferente, a sentença recorrida violou o disposto na alínea i) do n.º 2 do art° 186º do CIRE.
40. A actuação do TOC e legal representante F………., indicia claramente a prática dos crimes de infidelidade falsificação, pelos quais foi denunciado, o que constitui prova exuberante da ausência de responsabilidade dos recorrentes relativamente aos deveres que incorrectamente lhe são assacados pela sentença recorrida.
41. Muito embora a falência tenha sido apresentada pelo TOC e legal representante F………., não nesta sua qualidade mas como credor comum, o facto é que objectivamente a falência foi requerida por quem era, de facto, legal representante da empresa.
42. Tal não obsta a que os recorrentes mantenham a posição de que a empresa não está em situação de falência, pois na origem das dificuldades de tesouraria se encontra o incumprimento do Estado Português, que não devolve o IVA, nem resolve as acções judiciais respectivas no prazo razoável consignado no n.º 5 do art° 20 da Constituição, disposição que a sentença recorrida viola, ao tutelar um status quo que não se compadece com tal disposição da lei fundamental.
43. Não está reunido o requisito da alínea a) do n.º 3 do art° 186º do CIRE para que os recorrentes tivessem que tomar a iniciativa de pedir a insolvência da empresa, e sendo assim a sentença recorrida viola esta disposição legal.
44. Todas as obrigações de elaborar contas anuais, no prazo legal, foram cumpridas pelo TOC e legal representante F………., já que era este quem elaborava e assinava todos os manifestos fiscais, na sua dupla qualidade de TOC e legal representante.
45. Ao responsabilizar os recorrentes por tal tarefa, o Tribunal ignorou conscientemente a realidade factual amplamente documentada nos autos, fazendo uma errada aplicação do disposto na alínea b) do n.º 3 do artº 186° do CIRE, que acabou por violar.
46. Se contudo se entender que não procedem os argumentos invocados relativamente à falta de requisitos para que possa ter no presente momento aplicação a verificação do incidente de qualificação da insolvência, então o Tribunal só poderia ter concluído pela responsabilização do TOC e legal representante F………., por ser o autor dos actos materiais enquanto TOC e legal representante, passíveis de fundamentar tal qualificação.
47. Ao ter absolvido de tal qualificação o TOC e legal representante F………., o Tribunal violou grosseiramente o disposto no n.º 3 do arte 24° da lei Geral Tributária, ignorando a estranhíssima colaboração que é reconhecida àquele personagem, no parecer da Administração Fiscal junto aos autos.
48. O Tribunal violou assim o disposto na alínea b) do n.º 3 do arte 186° do CIRE, tendo feito uma errada interpretação dos mesmíssimos factos que usou para condenar os recorrentes.

Não houve resposta às alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

2.1- OS FACTOS

Estão provados os factos descritos na fundamentação de facto da sentença que declarou a insolvência de B………., Ldª, nomeadamente que:
1. A B………., Ldª é uma sociedade comercial portuguesa fundada no ano de 2001.
2. Tem como objecto o transporte rodoviário de mercadorias.
3. Foi fundada com um capital social de 50.000,00 € por D………., cidadão alemão casado com G………. na comunhão de adquiridos, com uma quota de 24.900,00; E………., cidadão alemão casado com H………. na comunhão de adquiridos com uma quota de 24.900,00, e pelo requerente, com uma quota de 200,00 €.
4. A gerência da requerida ficou a cargo dos três sócios, o Sr. D………., o Sr. E………. e F………. .
5. Em 2003 F………. cedeu a sua quota de 200,00 € ao Sr. C………., cidadão alemão, mas manteve-se na gerência.
6. Ainda em 2003, a requerida foi objecto de um aumento do capital social que passou para 200.000,00 € assim distribuído: D………., com uma quota de 66.666,67 €, E………., com uma quota de 66.666,67 € e C………., com uma quota de 66.666,66 €.
7. Com a entrada do sócio C………., a gerência da requerida passou a caber ao Sr. D………., ao Sr. E………., ao Sr. C………. e a F………. .
8. Os Srs. D………., E………. e C………. são irmãos e residem na Alemanha, na cidade de ………., tendo o seguinte domicílio profissional: ………. ..-.., . – ….. ………., Alemanha.
9. Os serviços de transporte rodoviário prestados pela requerida eram realizados em toda a Europa, sobretudo na Europa Central.
10. Uma vez que os sócios-gerentes da requerida viviam na Alemanha, era F………. quem assegurava a gestão corrente da requerida em Portugal.
11. Em virtude das circunstâncias abaixo descritas, F………. acabou por renunciar à gerência por carta de 11-06-2005.
12. Nos anos de 2001 e de 2002, as funções desempenhadas pelo requerente eram exercidas na qualidade de prestador de serviços.
13. Contra a requerida está pendente na Segurança Social (secção de processos de ………. do IGFSS) o processo executivo nº ………….. e apenso com o valor de 143.289,20 €.
14. Contra a requerida estão pendentes nos Serviços de Finanças de ………. os processos executivos nº ……………. (saldo em dívida 31.921,84 €) e nº ……………. (saldo em dívida: 21.515,77 €).
15. O requerente desempenhava funções de técnico oficial de contas da requerida.
16. Existem sobre a requerida diversos créditos detidos pela Direcção-Geral de Impostos e pela Segurança Social, que totalizam o valor de 740.367,03 € (actualmente 774.002,21 €) relativos a IVA, IRS e IRC e crédito da Segurança Social referente a contribuições cotizações de 2005, objecto do processo executivo nº ……………. e apenso, pendente na Secção de Processos de ………. do IGFSS: 143.289,20 €;
17. A actividade de transporte rodoviário do grupo B1………. assente em Portugal passou da requerida para a I………. .
18. Todavia, os irmãos B1………. não encerraram a requerida, continuaram a auferir as receitas da actividade de transitário, mas subtraindo-se ao pagamento dos impostos.
19. Assim, a partir de Maio de 2005, a requerida deixou praticamente de prestar serviços e facturar aos clientes finais.
20. A facturação da requerida foi concentrada em empresas do grupo B1……….: a partir de Maio de 2005, à B1………. alemã (………. & Cº., KG) foi facturado um total de 1.099.921.30,70 €; e à I………. foi facturado um total de 2.107.979,49 €;
21. A requerida tornou-se num satélite da B1………. alemã, da I………. e da B1………. lituana, em que foram concentrados grande parte dos custos da actividade do grupo B1………. .
22. Por isso, no exercício de 2005, a requerida apresentou um resultado negativo, que se estima, na medida em que as conta não foram ainda encerradas, na ordem dos 750.000 €.
23. Com efeito, embora tendo deixado de prestar serviços aos clientes finais, grande parte dos motoristas do grupo B1………. foram mantidos no quadro de pessoal da requerida.
24. Os motoristas só foram deixando formalmente os quadros de pessoal da requerida à medida que a propriedade dos camiões da requerida foi sendo formalmente transferida para a I………. e para a B1………. da Lituânia: quando os camiões saíam da esfera da requerida também os camionistas que se normalmente se encontravam afectos aos camiões transferidos eram passados para o quadro de pessoal da empresa destinatárias dos camiões.
25. Na requerida foram também imputados uma parte significativa dos custos operacionais da actividade de transportes rodoviários do grupo B1………., como combustíveis, portagens e despesas de manutenção dos camiões.
26. Ao mesmo tempo a requerida deixou de facturar aos clientes finais e passou a facturar praticamente só àquelas empresas do grupo B1………., deixando de receber verdadeiramente receitas pelos serviços que formalmente ainda prestava.
27. A requerida suportava custos de transporte e logística de outras empresas do grupo B1………., grosso modo, os custos com motoristas, combustíveis, portagens e prestações dos leasings dos camiões.
28. Entre Junho e Novembro de 2005, foi transferida a propriedade de 15 camiões da requerida para a I………. e para a B1………. da Lituânia, sem que a requerida tenha recebido efectivamente qualquer contrapartida financeira.
29. Para além daqueles 48 camiões, a requerida tinha ainda nos seus activos outros 23 camiões, da marca Renault, com as matrículas indicadas no requerimento inicial.
30. Esses camiões Renault foram adquiridos em 2003 e 2004, 2 deles através de leasing (celebrado com a J……….) e os outros 21 com reserva de propriedade a favor da K………. de ………. .
31. Como resulta dos extractos bancários juntos como doc. 9 até Novembro de 2005 foi a requerida quem pagou as prestações devidas pelo preço de aquisição dos camiões Renault.
32. Foi dada ordem de emissão de facturas de venda dos 21 camiões adquiridos à K………. de ………. .
33. Essas facturas de venda desses 21 camiões foram emitidas sobre essa mesma K………. de ………. .
34. O valor base da venda dos 21 camiões pela requerida à K………. foi de 897.783,53 € ao qual acresceu IVA no valor de 188.534,55 €.
35. Acto contínuo, a K………. de ………. cedeu a propriedade dos camiões à I………., emitindo sobre esta facturas de venda dos camiões.
36. A requerida já não presta qualquer actividade de transporte rodoviário de mercadorias, não tendo qualquer motorista ao seu serviço.
37. Foi F………. quem em 1.3.2006 veio requerer a insolvência da requerida, na qualidade de credor, facultando elementos e requerendo que fossem tomadas medida cautelares.

2.2- O DIREITO

O objecto do recurso é balizado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 690º, nº 1 e 3, do C.P.Civil.
O recurso de apelação foi interposto da sentença, de 15/02/2007, que julgou o incidente pleno de qualificação da insolvência da sociedade B………., Lda, regulado no artigo 185º e seguintes, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18/03.
A sentença (27/06/2006) que decretou a insolvência transitou em julgado em 26/04/2007, conforme certidão de fls. 340-341, solicitada à 1ª instância.
Nas conclusões da alegação do recurso, apresentada em 23/04/2007, os apelantes começam por afirmar que enquanto a sentença que declara a falência estiver pendente de recurso, não pode ser iniciado o incidente de qualificação da insolvência, constituindo nulidade absoluta a tramitação do mesmo.
A nosso ver, não ocorre uma nulidade processual.
As nulidades de processo, importando a anulação do processado, são desvios do formalismo processual: prática de um acto proibido, omissão de um acto prescrito na lei e a realização de um acto imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido (Manuel de Andrade, Noções Elem. Proc. Civil, 1979, p. 176, e A. Varela, Manual Proc. Civil, 1984, p. 373).
No artº 201º, nº 1, do CPC, norma relativa às regras gerais da nulidade dos actos processuais, estabelece-se que a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
Ora, o facto de ainda não ter transitado a sentença que decretou a insolvência não impede que se processe o aludido incidente, que é um processo urgente (artº 9º, do CIRE), sendo que o recurso interposto daquela tem efeito meramente devolutivo (arts. 14º, nº 5, 40º, nº 3 e 42º, nº 2, do CIRE).
Não se verifica, pois, a prática de actos que a lei não admita.
O que poderia acontecer é que, revogada pela 2ª instância aquela decisão, logicamente deixaria de fazer sentido o incidente de qualificação da insolvência.
A questão que se colocaria seria, a nosso ver, a da necessidade ou oportunidade de suspensão da instância (arts. 276º, nº 1, al. c), e 279º, nº 1, 2ª parte do CPC) e de uma hipotética e ulterior extinção da instância (artº 287º, al. e), do CPC).
No caso, uma vez que a sentença que decretou a insolvência já transitou em julgado, não se justifica, obviamente, a suspensão da instância (recurso).
Por outro lado, na alegação e respectivas conclusões do recurso, os apelantes afirmam a nulidade da sentença recorrida, invocando o estatuído nas alíneas c) e d), do nº 1, do artº 668º, do CPC.
A sentença é nula quando os fundamentos invocados devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diferente da que essa sentença expressa, sendo que a inexactidão dos fundamentos de uma decisão configura erro de julgamento e não uma contradição entre os fundamentos e a decisão (A. dos Reis, Cód. Proc. Civil Anotado, 5º, 141, A. Varela e Outros, Manual Proc. Civil, 1ª ed., 671, Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, III, p. 246, e Acs. do STJ, BMJ, 281º/241, 380º/444, 381º/592, 432º/342, e CJ, 1994, II, 263, 1995, II, 57).
Deve, pois, distinguir-se a nulidade da sentença do erro de julgamento.
Ora, o que os recorrentes põem em causa, e, a nosso ver, sem razão, é a interpretação dos factos apurados e do direito efectuados na decisão recorrida.
Porém, no caso, a decisão final recorrida mostra-se coerente com os seus fundamentos, sendo o corolário da fundamentação de facto e de direito constantes da mesma. A decisão, certa ou errada, está de acordo com os respectivos fundamentos.
O que está em causa poderá ser um erro de apreciação, a sindicar no presente recurso, mas nunca a referenciada nulidade da sentença recorrida.
A decisão judicial é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (artº 668º, nº 1, alínea d), do CPC). Esta norma deve ser interpretada em sintonia com o disposto no artº 660º, nº 2, do mesmo diploma legal.
A omissão de pronúncia existe apenas quando o juiz não considere as questões postas ao tribunal e já não no referente aos fundamentos (argumentos) de facto e de direito produzidos pelas partes em sustentação do seu ponto de vista (ver, entre outros, os Acs. do STJ, BMJ, 263º/187, 371º/374, 391º/565, 425º/450, e Rodrigues Bastos, "Notas", III, p. 227-228).
Na decisão recorrida, a Srª juíza nenhuma questão relevante omitiu.
Com efeito, a Srª juíza analisou a matéria de facto e de direito no quadro da qualificação da insolvência previsto no artº 185º e seguintes do CIRE.
Não se verificam, assim, as nulidades previstas no nº 1, als. c) e d), do citado normativo de direito processual civil (artº 668º).
Dito isto, vejamos qualificação da insolvência.
A insolvência é culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais, nem das acções a que se reporta o nº 2 do artigo 82º (artº 185º, do CIRE).
Será culposa a insolvência quanto a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito de ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (nº 1, do artº 186º, do CIRE).
No nº 2 deste normativo, considera-se sempre culposa (presunção inilidível) a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham praticado os factos descritos nas alíneas a) a i).
No nº 3 da mesma norma, presume-se (presunção ilidível) a existência de culpa grave quando os administradores de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
A situação de insolvência mostra-se definida no artº 3º, nº 1, CIRE.
O dever de apresentação à insolvência e quem o cumpre estão determinados nos arts. 18º e 19º, do CIRE.
No artº 83º, do referido diploma, estabelece-se o dever de apresentação e colaboração do devedor insolvente.
Feitas estas considerações de natureza normativa, importa salientar, desde já, dois pontos.
Primeiro, a qualificação da insolvência para efeitos civis, no quadro das apontadas disposições do CIRE, nada tem a ver com o apuramento de eventual responsabilidade criminal do devedor (gerentes), enquanto actos integradores das infracções criminais previstas e punidas nos arts. 227º e 228º, do C. Penal – ver o ponderado no nº 40, do preâmbulo do DL nº 53/2004, de 18/03, onde se refere que a finalidade do incidente de qualificação da insolvência é a obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos administradores de pessoas colectivas.
Não faz, pois, sentido, a nosso ver, a invocação, pelos recorrentes, do princípio da presunção de inocência previsto no artº 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, nem a referência à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto proferida no processo de insolvência (não se consideram também como provados factos alegados não directamente respeitantes à decisão da causa (assim por exemplo os relativos a eventual responsabilidade criminal)) tem qualquer pertinência, no caso.
Por outro lado, os recorrentes não deduziram oposição aos pareceres do administrador da insolvência e do Ministério Público.
Tal oposição seria, ou poderia ser, relevante no que toca à possibilidade de elisão, em eventual audiência de julgamento, da presumida culpa grave do dever de requerer a declaração de insolvência e da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial (nº 3, do artº 186º, do CIRE).
Naturalmente que os factos invocados pelos apelantes na alegação do recurso, não provados no processo de insolvência, não têm qualquer relevância na apreciação do incidente de qualificação da insolvência (artº 664º, do CPC).
Na decisão recorrida, afirma-se que “os factos apurados e supra enumerados são enquadráveis nas alíneas a), d), f) e i) do nº2 e alíneas a) e b) do nº 3 do artigo 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”.
Antes de mais, cumpre salientar que não se pode aceitar como matéria de facto o descrito no nº 18 da fundamentação de facto da decisão recorrida, a saber, que “a requerida foi completamente esvaziada e descapitalizada”. Trata-se de matéria conclusiva, a inferir de factos que a comprovem (ver artº 646º, nº 4, do CPC).
A nosso ver, os factos descritos no item 2.1, evidenciam que os apelantes e gerentes da devedora insolvente, a partir de Junho de 2005, realizaram negócios que descapitalizaram e exauriram o património físico, e os recursos humanos, da empresa B………., Lda, em claro benefício de outras duas empresas do grupo B1………. (I………. e B1………. lituana), concentrando grande parte dos custos da actividade do grupo B1………. na ora insolvente. Essa actividade da gerência da insolvente traduz-se na prática de actos necessariamente desvantajosos para a empresa, que já não presta qualquer actividade de transporte rodoviário de mercadorias e não tem qualquer motorista ao seu serviço.
Apurou-se que a gerência da empresa insolvente (C………., D………. e E……….) manteve-se incontactável, não tendo sido possível efectuar qualquer reunião com os seus gerentes, desde a nomeação do administrador da insolvência até à apresentação do parecer deste, em 21/11/2006, a que alude o nº 2, do artº 188º, do CIRE.
Temos, assim, como verificada a situação prevista na al. f), do nº 2, do artº 186º, do CIRE, ou seja, os gerentes da insolvente fizeram dos bens da devedora uso contrário ao interesse desta, em proveito pessoal (indirecto) ou de terceiros, designadamente para favorecer outras empresas do “grupo B1……….”, na qual têm interesse directo ou indirecto. Atenta a mencionada presunção inilidível, logo se pode concluir que a insolvência é culposa.
Por outro lado, considera-se, apesar de tudo, que os mencionados factos, revelando um incumprimento do dever de apresentação e colaboração do devedor insolvente, não mostram que esse incumprimento seja reiterado. Significa isto que, no caso, não ocorre a situação prevista na al. i), do nº 2, do artº 186º, do CIRE.
Por outro lado, entendemos que não foi elidida, pelos recorrentes, a presunção da existência de culpa grave estabelecida no nº 3, do artº 186º, sendo que os gerentes não cumpriram o dever de requerer a declaração de insolvência. Não está, no entanto, provado o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
A presunção verifica-se logo que ocorra o incumprimento de qualquer dos deveres constantes das alíneas a) e b), do citado segmento normativo.
Deste modo, tem pleno cabimento, no caso, tal como ajuizado na 1ª instância, a qualificação da insolvência como culposa e a existência de culpa grave.
Por fim, aceita-se que F………. não seja afectado pela qualificação da insolvência. As razões de tal exclusão são as referidas na sentença recorrida, para que se remete. Com efeito, não está demonstrada, com um mínimo de segurança, a participação daquele na definição e/ou execução dos aludidos actos que conduziram à insolvência da sociedade B………., Lda.
Em suma, o saneador-sentença posto em crise pelos apelantes encontra-se bem fundamentado, de facto e de direito, justificando-se a decisão de mérito nesta fase processual.
Improcedem, assim, as conclusões da alegação do recurso.

3- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.

Porto, 22 de Outubro de 2007
Manuel José Caimoto Jácome
Carlos Alberto Macedo Domingues
José António Sousa Lameira