Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0131859
Nº Convencional: JTRP00032423
Relator: PIRES CONDESSO
Descritores: PRÉDIO URBANO
EXECUÇÃO
HIPOTECA
PENHORA
REGISTO
ADJUDICAÇÃO
ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO
ARRENDATÁRIO
Nº do Documento: RP200112130131859
Data do Acordão: 12/13/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J VALONGO 3J
Processo no Tribunal Recorrido: 132/01
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR PROC CIV - PROC EXEC.
DIR CIV - DIR OBG.
Legislação Nacional: CPC95 ART56 N2 ART888 ART901.
CCIV66 ART685 ART695 ART824 N2 N3.
Sumário: I - O contrato de arrendamento para o exercício de profissão liberal, sendo posterior à celebração e registo da hipoteca sobre o imóvel que veio a ser penhorado e adjudicado ao exequente, caduca nos termos do artigo 824 ns.2 e 3, do Código Civil, devendo o bem ser transmitido para este livre de tal ónus contratual.
II - Não querendo o arrendatário abrir mão do prédio, negando-se a entregá-lo ao exequente, tem este o poder de, em conformidade com o artigo 901 do Código de Processo Civil, requerer o prosseguimento da execução contra o primeiro nos termos prescritos para a execução para entrega de coisa certa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

A Caixa Geral de Depósitos instaurou em 6/7/98 acção executiva contra a Associação... do Concelho de..., Bernardo... e Maria... e logo no requerimento inicial indicou que para garantia do crédito exequendo a primeira executada constituíra a favor da exequente hipoteca sobre a fracção autónoma V (que é a que interessa a este recurso), correspondente a um escritório num prédio urbano de Valongo.
Mais invoca, no mesmo requerimento, que entretanto os 2º e 3º executados adquiriram tal fracção V que está registada a seu favor pela Ap.../../../97 e daí que a acção executiva também seja contra eles deduzida.
Dos documentos juntos com a petição executiva que a hipoteca foi registada como definitiva pela apresentação 19 em 19/3/86.
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Prosseguiu a execução com a penhora da fracção hipotecada em 30/4/99, registada pela Ap. ..-../../2000.
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Foi requerida e ordenada a venda da fracção V por propostas em carta fechada por despacho de 12/6/00.
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A 27/9/00 vêm os 2º e 3º executados aos autos informar que a referida fracção V se encontra arrendada desde 28/5/97, juntando certidão da escritura de arrendamento à Drª Rosa Maria..., pelo prazo de um ano, destinando-se ao exercício de profissão liberal.
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No prosseguimento da execução veio a mesma fracção V a ser vendida e adjudicada à exequente, com trânsito em julgado, e posteriormente veio esta aos autos Requerer o prosseguimento da execução nos termos do artº 901º CPC contra a arrendatária acima referida (Drª Rosa Maria) como detentora da fracção por esta se recusar a entregá-la.
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Profere, então, o Sr. Juiz a decisão recorrida que indeferiu tal pretensão com fundamento, precisamente, na existência do referido contrato de arrendamento, e na subsistência deste.
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Inconformada, vem a Caixa G. de Depósitos AGRAVAR de tal decisão apresentando as suas alegações e concluindo com a única questão de que, a seu ver, o contrato de arrendamento, por ser posterior à constituição e registo da hipoteca, caducou com a venda e adjudicação, nos termos do artº 824º nº 2 CC.
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Não houve contra-alegações.
Sabendo-se que as conclusões delimitam objectivamente o recurso, salvo quanto às questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito, pensamos poder avançar no seu conhecimento salientando que os factos disponíveis para tanto são os apontados no relatório do presente recurso.
Tendo-os bem presentes, vejamos o direito aplicável.
Começamos por salientar que a execução foi movida contra o devedor que dera a fracção de hipoteca e contra os posteriores adquirentes.
A este propósito diz-nos o artº 56º nº 2 CPC que a execução por dívida provida de garantia real (hipoteca no nosso caso) sobre bens de terceiro seguirá directamente contra este, se o exequente pretende fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser demandado o devedor.
Foi com fundamento nesta disposição legal que foram demandados pela Caixa não só o devedor e concedente da hipoteca (Associação...) como os actuais (já à data da execução) donos da fracção onerada com a garantia real.
Acontece que estes, na sequência da aquisição da fracção, mas já depois da hipoteca (oferecida pelo primitivo dono e 1º executado) e seu registo, deram a mesma fracção de arrendamento.
Subsistirá este arrendamento para além da venda executiva ou terminará nos termos do artº 824º nº 2 CC?
Diz-nos o actual artº 888º CPC (igual, no essencial ao anterior artº 907º) que após o pagamento do preço e do imposto devido pela transmissão-- o que tudo está verificado nos autos, acrescente-se-- são oficiosamente mandados cancelar os registos dos direitos reais que caducam nos termos do artº 824º nº 2 CC.
E esta última disposição legal estabelece que os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram, bem como os demais direitos reais que tenham registo anterior ao...da garantia (hipoteca, no nosso caso) com excepção dos que, constituídos em data posterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente do registo.
Frisa-se que o arrendamento é de data bem posterior à do registo da hipoteca, sendo certo que nem sequer foi invocado pelas partes interessadas o seu registo, embora este aspecto seja indiferente para a solução, face à posterioridade referida.
A este propósito ensinam os prof. P de Lima e A Varela no seu CC anot, ao artº 824º, que realizada a venda os direitos do executado se transferem para o adquirente e este, por ser um adquirente de direitos alheios não pode arrogar-se senão aqueles que competiam ao transmitente, ou seja, ao executado.
E directamente sobre o nº 2 ensinam que os direitos de garantia caducam todos enquanto os de gozo só caducam se não tiverem um registo anterior ao de qualquer garantia.
Sobre a questão que directamente nos respeita-- apurar se o arrendamento, no caso para o exercício de profissão liberal, é abrangido pela disciplina do citado artº 824º nº 2 CC-- é duvidosa a posição da nossa doutrina, como resulta dos ensinamentos colhidos em F. Amâncio Ferreira no seu Curso de Proc. de Execução, pag.243, Remédio Marques in Curso de Proc. Executivo Comum... a pag. 408, Miguel T. de Sousa na Acção Executiva Singular a pag. 390, J. Lebre de Freitas in A Acção Executiva, a pag. 274, nota 21, e Oliv. Ascensão na ROA 1985-2/345--384, ali citado.
E perante tais dúvidas, voltando-nos para a nossa jurisprudência nela encontramos, de igual modo orientações, divergentes, embora se nos afigure que a emanada do nosso mais alto Tribunal se inclina para a que entende que a disciplina do citado artº 824º nº 2 CC abrange o arrendamento.
No sentido de que o arrendamento não está contemplado no citado artº 824º nº temos os Ac. da Relação de Lx in CJ 22/3/87, com fundamento, no essencial, da natureza obrigacional da tal contrato e assim não poder ser considerado como um direito real de que nos fala o apontado artº 824º CC, e no BMJ 376/646.
Da opinião da abrangência temos desde logo o Ac. Rel de Cb in BMJ 425/634 onde se decidiu que «o arrendamento de imóvel hipotecado constituído depois da hipoteca caduca nos termos do artº 824º nº 2 CC» e o Ac STJ in BMJ 482/219 que no mesmo sentido, entendeu que na expressão «direitos reais» constante do artº 824º nº 2 CC inclui-se, por analogia, o arrendamento, registado ou não, e daí que a venda judicial, em processo executivo, de um imóvel hipotecado faz caducar o arrendamento, não registado, dessa coisa celebrado posteriormente à constituição da garantia real e ainda o Ac STJ in CJ-STJ-8/8/150, que também considerou que a «venda judicial em processo executivo, de fracção hipotecada faz caducar o arrendamento, não registado, quando posteriormente celebrado à constituição e registo daquela hipoteca, por na expressão «direitos reais» mencionada no artº 824º nº 2 CC se incluir, por analogia, aquele arrendamento».
E note-se que estes dois acórdãos do STJ fazem a sua adesão independentemente da caracterização do arrendamento como real ou obrigacional embora o considerem desta última natureza, opinião a que aderimos.
Socorrendo-nos da argumentação do 1º Ac do STJ, que quase copiaremos nos aspectos essenciais, frisamos que a decisão assenta nos seguintes aspectos:
- o contrato de arrendamento tem natureza contratual, obrigacional;
- o facto de ser de natureza pessoal não é de per si excludente da sua subsunção abstracta na previsão do artº 824º nº 2;
- o disposto no artº 1057º CC, segundo o qual o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, em prejuízo da regras de registo, é inaplicável à venda da coisa em processo executivo;
- o disposto no artº 66 RAU por referência ao artº 1051º CC---caducidade do contrato de arrendamento---não coloca nenhuma proposição adverbial excludente de outras causas de caducidade do contrato de locação nele vertida como meramente exemplificativa e não taxativa;
- pese o fim de garantir a estabilidade da habitação (que até nem é o nosso caso concreto) não pode entender-se que o legislador houvesse querido deixar sem protecção os direitos dos credores titulares de garantias reais registadas com anterioridade relativamente à celebração da invocada relação locatícia, pois só assim se obviará a que a celebração posterior do arrendamento impossibilite ou, pelo menos dificulte, o ressarcimento completo do credor com garantia real anteriormente registada;
- conhecida a repercussão negativa que contratos como o de arrendamento têm em termos de valor/preço sobre o bem, pode-se vir a frustrar a própria essência do crédito hipotecário, tal como é definido no artº 686º CC, e a prejudicar, de forma drástica, a integridade do direito do novo proprietário;
- é, pois, lógico e razoável admitir que também a relação locatícia, à semelhança do que acontece com qualquer outra forma de oneração do imóvel, caduque na hipótese de venda em sede executiva, deixando, assim, incólume o valor do bem sobre que recaia.
No sentido destes últimos aspectos pode ver-se o já citado Ac STJ in CJ-STJ-8/2/152, segundo o qual (e quase copiamos) a locação, acarretando uma desvalorização para o bem implica a sua oneração quer sob o ponto de vista económico quer jurídico.
E, citando o Prof. H de Mesquita, prossegue afirmando que «coisa onerada é aquela sob que incidem a favor de terceiros direitos, gravames ou vínculos que a acompanham em caso de transmissão e que excedem os limites normais relativos a coisa da mesma garantia. Constitui ónus, por exemplo...um direito de arrendamento de que o senhorio não possa libertar-se a curto prazo».
Sendo válida a oneração traduzida em arrendamento é manifesto que ela, desvalorizando o prédio, agora em sede executiva, atenta a sua finalidade, vai frustrar a posição do credor hipotecário, desvanecendo-se, assim, a essência da garantia hipotecária, surgindo a instabilidade do crédito perante a flutuação do valor do bem.
Não podendo o sistema admitir tal possibilidade, prossegue o mesmo acórdão, deve ver-se o artº 695º CC (cuja ratio passa pela inoponibilidade de alienação ou oneração não se apresentar prejudicial ao credor hipotecário, uma vez que se operaria a sua caducidade em caso de execução) completando-se com o artº 824º nº 2 CC.
Convencendo-nos esta fundamentação mais do que a contrária, concluímos, com este acórdão e com os outros por último citados, no sentido da aplicação do regime do artº 824º nº 2 CC aos contratos de arrendamento como o dos autos, que foi celebrado depois da celebração e registo da hipoteca da fracção V que veio a ser penhorada.
Como se salienta no Ac STJ in BMJ 458/227-235, que aponta no mesmo sentido, «...o locatário que de boa-fé outorgou o contrato de arrendamento, sofrendo prejuízos atribuíveis ao locador, tem à sua disposição os meios legais para o respectivo ressarcimento».
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Voltando-nos para o nosso caso concreto verificamos que se está perante um contrato de arrendamento pelo prazo de um ano, prorrogável e para o exercício de profissão liberal.
Foi celebrado por escritura pública e não está sujeito a registo como resulta do artº 2º m) C. R. Predial (nem consta que o tenha sido).
Sendo assim, como parece defender Remédio Marques no seu «Curso de Processo Executivo Comum...» a pag 408 e segs, e na esteira dos seus ensinamentos e dos acórdãos citados por último, o referido contrato de arrendamento, sendo posterior à celebração e registo da hipoteca sobre o bem que veio a ser penhorado e adjudicado à Caixa/exequente, caduca nos termos do estudado artº 824º nº 2 e 3 CC, devendo ser transmitido para esta livre de tal ónus contratual.
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Decidida esta questão no sentido por nós proposto, surge como sua consequência, não querendo a arrendatária abrir mão da referida fracção, negando-se a entregá-la ao exequente, o direito deste último a, nos termos do artº 901º CPC, poder «...com base no despacho a que se refere o artº anterior---de adjudicação---requerer o prosseguimento da execução contra o detentor dos bens, nos termos prescritos para a execução para entrega de coisa certa».
A detentora é, no nosso caso, de forma clara, a ex-arrendatária na medida em que o contrato de arrendamento caducou por força do disposto no artº 824º nº 2 CC, como já acima decidimos.
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Resta terminar.
E assim,
ACORDAM EM CONCEDER PROVIMENTO AO AGRAVO, DEVENDO O DESPACHO RECORRIDO SER SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE ADMITA O PROSSEGUIMENTO DA EXECUÇÃO NOS TERMOS PEDIDOS – ARTº 901º CPC.
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Sem custas.
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Porto, 13 de Dezembro de 2001.
António José Pires Condesso
Gonçalo Xavier Silvano
Fernando Manuel Pinto de Almeida