Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0842649
Nº Convencional: JTRP00041423
Relator: CUSTÓDIO SILVA
Descritores: QUEIXA
Nº do Documento: RP200806040842649
Data do Acordão: 06/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 318 - FLS 15.
Área Temática: .
Sumário: Estando em causa crimes semi-públicos, a queixa só confere legitimidade ao Ministério Público para proceder pelos crimes nela abrangidos, e não em por quaisquer outros que contra ele tenham sido cometidos na mesma altura e pelo mesmo denunciado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão elaborado no processo n.º 2649/08 (4ª Secção do Tribunal da Relação de Porto)
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1. Relatório
Consta do despacho de 8 de Fevereiro de 2008:
“A fls. 25 a 28 dos autos, foi proferida acusação pública contra o arguido B………., imputando-se-lhe a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1, do Código Penal. Ali se fez constar que os factos alegadamente praticados pelo arguido teriam ocorrido em 14 de Abril de 2007.
Compulsados os autos, constata-se que a ofendida, C………, quando apresentou queixa, em 22-09-2007, declarou o seguinte:
‘Por, no dia 14 de Abril de 2007, no período compreendido entre as 15h00 e as 15.05 h, na Rua ………., em ………., Vila Nova de Gaia, o suspeito indicado anteriormente ter estacionado o seu veículo na garagem comum aos residentes do prédio, mas de uma forma que não permitia à denunciante estacionar o seu veículo na sua garagem particular. A denunciante pediu àquele que desse um jeito ao seu veículo para, assim, poder passar, facto que não veio a ser aceite pelo suspeito. Isto fez com que a denunciante efectuasse a manobra com imensa dificuldade. De seguida, o suspeito, e para espanto da denunciante, entrou na garagem particular desta e disse-lhe: “sua puta, vaca, badalhoca”, “eu vou-te matar, vou-te partir toda”, “vou-te desfazer o carro todo”.
A denunciante ficou aterrorizada com a reacção daquele indivíduo, simplesmente pelo facto de lhe ter pedido para retirar o seu veículo, para que, assim, pudesse entrar na sua garagem’.
Analisando o teor da queixa de fls. 3/5, constata-se que a mesma, em momento algum, aludiu a qualquer agressão de que tivesse sido vítima por parte do arguido.
Todavia, quando ouvida em declarações, em 18-12-2007 (cfr. auto de inquirição de fls. 14/15), a identificada queixosa já declarou que ‘no dia mencionado nos autos, durante a discussão, veio (o arguido) a empurrar a depoente contra o veículo, tendo dado uma palmada no peito da denunciante. Por causa desse empurrão, a depoente acabou por ficar com alguns hematomas nas costas’.
O crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143º, n.º 1, do C. Penal, trata-se de um ilícito semi-público (cfr. art. 143º, n.º 2, do C. Penal).
Nos termos do preceituado no n.º 1 do art. 49º do C. P. P., «quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que as pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo».
Com interesse, ainda, estipula o artigo 115º do C. Penal que «o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores».
Pelo que consta do auto de denúncia de fls. 3 a 5, a ofendida terá tido conhecimento dos factos alegadamente praticados pelo arguido no próprio dia em que terão ocorrido.
Face ao supra exposto, constata-se que a ofendida não manifestou, em tempo, o desejo de ver instaurado procedimento criminal quanto ao arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, tendo-o feito após o prazo de que dispunha para tal (em 18-12-2007).
Pelo exposto, e nos termos conjugados dos arts. 49º, n.º 1, e 311º, n.º 1, ambos do C. P. P., e do artigo 115º do C. Penal, não recebo a acusação pública, dada a intempestividade da queixa apresentada”.
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O Ministério Público veio interpor recurso, tendo terminado a motivação pela formulação das seguintes conclusões:
“1ª - A ofendida, titular do direito de queixa (art. 113º, n.º 1, do C. Penal), deu conhecimento tempestivo ao Ministério Público, nos termos do art. 49º (do C. de Processo Penal), do facto a partir do qual - discussão ocorrida com o arguido em 14.04.2007 - pretendia ver desencadeada a sua perseguição criminal.
2ª - Tal notícia do facto, porque proveio de pessoa ofendida, investiu o Ministério Público na legitimidade para o exercício da acção penal, não se verificando falta de uma condição de procedibilidade.
3ª - Após inquérito, e valendo-se do seu poder-dever de investigação, o Ministério Público apurou que tal discussão (alvo expresso da sua queixa), para além de ter gerado factos susceptíveis de integrar, em abstracto, um crime de injúria e um crime de ameaça, gerou, também, factos susceptíveis de integrar a prática do crime de ofensa à integridade física simples.
4ª - Pelo exposto, o despacho recorrido sofre de um erro de interpretação, ao considerar carecer o Ministério Público de legitimidade para a dedução da acusação pelo crime de ofensa à integridade física simples, já que não ocorre a falta de condição objectiva de procedibilidade, por extemporaneidade da queixa apresentada pela ofendida.
5ª - Assistindo ao Ministério Público legitimidade para exercer a acção penal pelo crime em causa, o que devia ter sido considerado pela M.ma Juiz.
6ª - Ao não ser recebida a acusação pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, foram violados os arts. 48º, 49º, n.ºs 1 e 2, 241º, 311º e 312º, n.º 1 (do C. de Processo Penal).
7ª - Pelo que se deverá proferir acórdão a revogar o despacho recorrido e a ordenar à M.ma Juiz que profira despacho a designar dia para a realização da audiência de julgamento”.
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2. Fundamentação
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões (resumo das razões do pedido) formuladas quando termina a motivação, isto em conformidade com o que dispõe o art. 412º, n.º 1, do C. de Processo Penal – v., ainda, o ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Dezembro de 2004, in Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 179, ano XII, tomo III/2004, Agosto/Setembro/Outubro/Novembro/Dezembro, pág. 246.
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Há que, então, definir qual a questão que se coloca para apreciação e que é a seguinte:
Em relação aos crimes cujo procedimento criminal depende de queixa, esta, ao ser apresentada, abrange todos aqueles que tiveram lugar, ainda que, na totalidade, não a tivessem integrado, mas dos quais o ofendido, posteriormente ao prazo de extinção do direito de queixa (art. 115º, n.º 1, do C. Penal), veio apresentar queixa?
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Eis os elementos (de facto) disponibilizados pelos presentes autos que, por relevantes para a apreciação da destacada questão, estão assentes:
A 22 de Setembro de 2007, veio C………. apresentar queixa, fazendo constar da mesma o seguinte:
“No dia 14 de Abril de 2007, no período compreendido entre as 15 horas e as 15 horas e 5 minutos, na R. ………., em ………., Vila Nova de Gaia, o suspeito (B……….; posteriormente constituído arguido) estacionou o seu veículo na garagem comum aos residentes do prédio, mas de uma forma que não permitia a denunciante estacionar o seu veículo na sua garagem particular. A denunciante pediu àquele que desse um jeito ao seu veículo para, assim, poder passar, facto que não foi aceite pelo suspeito. Isto levou com que a denunciante tivesse efectuado a manobra com imensa dificuldade. De seguida, o suspeito entrou na garagem particular daquela e disse-lhe: ‘sua puta, vaca, badalhoca’, ‘eu vou-te matar, vou-te partir toda’, ‘vou-te desfazer o carro todo’.
A denunciante ficou aterrorizada com a reacção daquele indivíduo”.
Posteriormente, a 18 de Dezembro de 2007, veio a queixosa a ser ouvida, na qualidade de testemunha, tendo constado do seu depoimento o seguinte:
“Declara que conforma na íntegra o que por si foi denunciado.
Esclarece que no dia mencionado nos autos, durante a discussão, empurrou (o ora arguido) a depoente contra o veículo, tendo-lhe dado uma palmada no peito. Por causa desse empurrão, a depoente acabou por ficar com alguns hematomas nas costas. Mais declara que continua a desejar procedimento criminal contra o denunciado”.
Veio a ser deduzida acusação contra o arguido (pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, com previsão e punição no art. 143º, n.º 1, do C. Penal), contendo a mesma, na narração dos factos o seguinte:
“No dia 14 de Abril de 2007, cerca das 15h00, no decorrer de uma discussão relacionada com o estacionamento de veículos, ocorrida no interior da garagem colectiva do prédio onde ambos residiam, sito no n.º … da R. ………., em ………., Vila Nova de Gaia, o arguido veio a empurrar a ofendida, C………., contra a sua viatura e a desferir-lhe uma palmada no peito, tendo-lhe provocado alguns hematomas nas costas.
Ao ter actuado como se veio a descrever, o arguido fê-lo com a intenção de molestar fisicamente a queixosa, C………., e de lhe provocar dores do tipo das verificadas, bem sabendo que a sua conduta era adequada a tal resultado.
Agiu livre, voluntária e conscientemente e, embora soubesse que praticava factos ilícitos e criminalmente puníveis, não se inibiu de os concretizar”.
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Apreciemos, então, a enunciada questão: em relação aos crimes cujo procedimento criminal depende de queixa, esta, ao ser apresentada, abrange todos aqueles que tiveram lugar, ainda que, na totalidade, não a tivessem integrado, mas dos quais o ofendido, posteriormente ao prazo de extinção do direito de queixa (art. 115º, n.º 1, do C. Penal), veio apresentar queixa?
Ao arguido foi imputado, como se sabe, e segundo a acusação, um crime de ofensa à integridade física simples ( art. 143º, n.º 1, do C. Penal ).
Em relação a este crime, o procedimento criminal dependia de queixa (art. 143º, n.º 2, do C. Penal).
O que significava, claramente, que a apresentação da mesma era indispensável para que o Ministério Público promovesse o processo (arts. 49º, n.ºs 1 e 2, 55º, n.ºs 1 e 2, do C. de Processo Penal).
A queixa é o «requerimento («feito por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto») através do qual o titular do respectivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que de verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele» (Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, reimpressão, 2005, págs. 665 (§ 1063) e 675 (§ 1086).
Dito de outro modo, a queixa constitui-se como notícia de um crime cujo procedimento criminal dependa dela e como manifestação de vontade, de quem estiver legitimado para tal, no sentido da instauração de um processo para que o respectivo agente seja, por ele, processado (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, revista e actualizada, 2000, pág. 59).
Ora, e assim sendo, como é, temos que a necessária consequência passa pela realização do inquérito, destinado, então, a investigar a existência do(s) crime(s) objecto da queixa, a determinar os seus agentes e sua responsabilidade e a descobrir as provas, tudo com uma precisa finalidade: a decisão sobre a acusação (art. 262º, n.º 1, do C. de Processo Penal); mas, insiste-se, de certo modo, somente em relação aos crimes objecto da queixa (nas expressivas palavras de Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, revista e actualizada, 2000, págs. 98/99, «a queixa delimita a investigação aos factos constitutivos de certo tipo de crime que dela são objecto»).
Por isso, são os crimes objecto da queixa que se constituem como objecto do inquérito, ainda que os mesmos, no que se refere aos seus elementos ou agentes, possam não estar totalmente determinados, possam ter carácter muito genérico, possam não estar delineado desde o início, pois o inquérito serve (o seu resultado), exactamente, pelo que consta do art. 262º, n.º 1, do C. de Processo Penal, nos termos já mencionados, a propósito, para o devido esclarecimento da notícia do crime, do facto dado a conhecer em todos os seus objectos penalmente relevantes.
Pode suceder que o resultado do inquérito, naturalmente, faça com que não exista identidade, pura e simples, entre o crime investigado e o crime ora delimitado ou definido; isto é, pode acontecer que o crime indiciado não corresponda, na totalidade, à descrição factual feita na queixa.
Então, é o crime indiciado que tem de passar a relevar e não aquele que foi objecto da queixa e, na imediata sequência, do inquérito.
Isto tem a maior relevância, já que o crime indiciado pode ter o correspondente procedimento criminal dependente de queixa.
Por isso, por se verificar um caso de inadmissibilidade legal do procedimento por ilegitimidade do Ministério Público (art. 49º, n.º 1, do C. de Processo Penal), a solução não podia deixar de ser a do arquivamento do inquérito, nos termos do art. 277º, n.º 1, do C. de Processo Penal, isto, claro, sem prejuízo de o ofendido (seu titular, com regra, se disse) vir a apresentar, tempestivamente, por força do disposto no art. 115º, n.º 1, do C. Penal (podendo apresentá-la mesmo, no decurso do inquérito), a pertinente queixa («a queixa é condição de procedibilidade relativamente a certos crimes e feita relativamente a um crime não pode estender-se a qualquer outro que com aquele tenha qualquer relação de parcial identidade factual; se a queixa foi formulada porque o queixoso manifestou vontade de procedimento criminal pela prática de certo crime, aquele que foi objecto da queixa, e se vem a revelar que esse não foi praticado, mas outro substancialmente diverso, não há queixa relativamente ao crime indiciado e, por isso, o processo não pode prosseguir sem nova queixa» - Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, revista e actualizada, 2000, págs.97/98 ).
Assentes estes considerandos de natureza jurídica, e voltando ao caso, é patente que o crime que, findo o inquérito, resultou indiciado, como o demonstrou a acusação deduzida (o de ofensa à integridade física simples - art. 143º, n.º 1, do C. Penal), não fora objecto da queixa apresentada pela ofendida (desde logo, decisivamente, não foi, nela, mencionado qualquer facto que permitisse sustentar o respectivo tipo objectivo - ofensa no seu corpo ou na sua saúde).
É certo que veio a ocorrer (a respectiva queixa), mas só que quando o correspondente direito já se encontrava extinto por força do disposto no art. 115º, n.º 1, do C. Penal (teve, a mesma, lugar, como se sabe, a 18 de Dezembro de 2007, quando o crime havia sido cometido a 14 de Abril de 2007).
Isto é, e em termos de solução para a questão em referência, em relação aos crimes cujo procedimento criminal depende de queixa, esta, ao ser apresentada, não abrange todos aqueles que tiveram lugar mas que não a integraram e de que o ofendido, posteriormente ao prazo de extinção do direito de queixa (art. 115º, n.º 1, do C. Penal), veio a apresentar queixa.
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Daí que, assim tendo considerado o despacho sob recurso, não deixou, o mesmo, de consagrar a solução certa, por juridicamente correcta, e, por isso, não merece qualquer censura, designadamente aquela que determinasse a sua insubsistência.
Ou seja: o recurso improcede.
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3. Dispositivo
Nega-se provimento ao recurso.
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Porto, 4 de Junho de 2008
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento