Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0730168
Nº Convencional: JTRP00040185
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
ALEGAÇÃO POR REMISSÃO PARA DOCUMENTOS
Nº do Documento: RP200703150730168
Data do Acordão: 03/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO. APELAÇÃO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO. REVOGADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 710 - FLS 44.
Área Temática: .
Sumário: A alegação do facto constitutivo do direito pode ser feita mediante a junção do documento em que ele conste, não traduzindo inexistência ou ininteligibilidade da causa de pedir a remissão feita na petição inicial para a matéria constante de documentos com ela juntos, desde que deles se infira com certeza o que se pretende e foi realmente articulado e percebido pelo réu.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B………, LDª instaurou acção com forma de processo ordinário contra C………. .
Pediu que a ré fosse condenada a pagar à autora a quantia de € 117.217,51, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Como fundamento, alegou, em síntese, que, por contrato promessa celebrado em 29.10.91, a ré lhe prometeu vender ou a quem ela indicasse, o lote de terreno identificado no artº 1º da petição inicial, a fim de aí ser instalado um posto de abastecimento de combustíveis, com viabilidade aprovada.
Nesse mesmo dia, a autora celebrou com D………., SA o contrato junto aos autos a fls. 12 a 14, mediante o qual cedeu àquela a sua posição contratual no sobredito contrato promessa.
O preço estipulado no contrato promessa foi de 23.500.000$00, tendo ficado acordado que a marcação da escritura pública ficava a cargo da ré, que para tanto ficava obrigada a avisar a autora ou a pessoa que esta indicasse.
Através do contrato de cessão da posição contratual, a autora obrigou-se perante a D………., SA a comunicar-lhe a data da celebração do contrato definitivo, bem como a notificar a ré, na pessoa do seu procurador, para que a escritura fosse celebrada a favor daquela.
Por indicação da ré, a D………., SA entregou a E………. e mulher F………. a quantia de 11.750.000$00, correspondente a 50% do valor acordado para a compra e venda, a título do preço prometido e como início de pagamento.
Aquando da celebração do contrato promessa ficou acordado como condição essencial e necessária para a celebração do contrato definitivo a obtenção pela ré da viabilidade do terreno para a instalação de um posto de abastecimento de combustíveis.
A ré nada fez para obter aquela viabilidade, não obstante as insistência da autora e da D………., SA para que o fizesse e a disponibilidade destas em celebrar o contrato definitivo logo que aquela lhes apresentasse documentação que demonstrasse a viabilidade da construção do posto de abastecimento de combustível.
Apesar disso, a ré marcou a escritura de compra e venda, tendo designado três datas. A escritura não foi celebrada na primeira data porque os representantes da D………., SA não puderam comparecer e porque não lhe foram entregues documentos comprovativos da viabilidade da instalação do posto de combustível e a D………., SA recusou-se a outorgar a escritura nas restantes duas datas por continuar a faltar a viabilidade daquela construção.
Apenas em 12.02.93 a ré requereu à CM de Penafiel autorização para a construção do posto de combustíveis, que veio a ser arquivado por inércia da ré.
Ainda antes de apresentar aquele requerimento, a ré vendeu o terreno a terceiros.
A autora restituiu à D………., SA a quantia de 11.750.000$00 que aquela entregara às pessoas indicadas pela ré.
A ré contestou, invocando as excepções de nulidade de todo o processado por ineptidão da petição inicial, de ilegitimidade da autora e de prescrição e impugnando os factos alegados pela autora.
A autora deduziu o incidente da intervenção principal provocada da D………., SA que foi indeferido por despacho já transitado em julgado.
No despacho saneador, foram julgadas improcedentes as excepções aduzidas pela ré.

Inconformada, a ré recorreu do despacho saneador, na parte em que julgou improcedentes as excepções de nulidade de todo o processado e de ilegitimidade activa, formulando, em síntese, as seguintes
Conclusões
1ª – Invocado pela autora, como causa de pedir, alegado locupletamento da ré à custa da autora, por esta ter ressarcido a D………., SA no valor de 11.750.000$00 (€ 58.605,75).
2ª – E concluindo a autora por pedir (pedido final) a restituição em dobro de um pretenso sinal prestado por outrem (D………., SA) e respectivos juros,
3ª – No âmbito de um contrato promessa que havia sido logo (na mesma data) objecto de cessão de posição contratual da autora à D………., SA, com aceitação/concordância da ré e produção de efeitos entre o cessionário e o cedido,
4ª – Verifica-se existir pedido sem a correspondente causa de pedir, o que se traduz em ineptidão da petição inicial.
5ª – Ou, sem prescindir, há flagrante contradição, ininteligibilidade e até incompatibilidade substancial entre o pedido e aquela pretensa causa de pedir.
6ª – Já que, por um lado, invoca a autora a cessão da posição contratual – com a inerente transferência de direitos e obrigações para a esfera jurídica de cessionário e cedido – e a retirada da autora da relação jurídica que lhe está ligada.
7ª – E, por outro lado, invoca a autora incumprimento contratual da ré, no âmbito do contrato promessa objecto de cessão de posição contratual à D………., SA.
8ª – Fazendo tábua rasa dos efeitos estabelecidos entre D………., SA e cedido (a ré) e vindo, enquanto terceiro, invocar incumprimento de relação jurídica entre D………., SA e ré, apesar de não ter prestado qualquer sinal.
9ª – Há assim também por esta via manifesta ineptidão da petição inicial, o que torna o processo nulo.
10ª – Acresce que, qualquer eventual acordo de resolução de cessão entre cedente e cessionado é ineficaz e, por isso, não produz nem poderá produzir efeitos relativamente ao cedido.
11ª – Assim, é a autora parte ilegítima, por não ter interesse em demandar, uma vez que qualquer eventual discussão e decisão do eventual incumprimento da ré ou da D………., SA relativamente ao contrato promessa em que passaram a ser únicos interessados, não produz quaisquer efeitos na esfera jurídica e de interesses da autora.

A autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

A ré recorreu igualmente do despacho saneador na parte em que julgou improcedente a excepção de prescrição, formulando, em síntese, as seguintes
Conclusões
1ª – Invocado pela autora alegado locupletamento da ré à sua custa, em virtude de esta ter ressarcido a D………., SA no valor de 11.750.000$00.
2ª - E que, apesar de não ter prestado qualquer sinal à ré, como confessa,
3ª – Conclui por pedir (pedido final) a restituição em dobro de um pretenso sinal prestado por outrem (D………., SA) e respectivos juros,
4ª – No âmbito do contrato promessa que havia sido objecto de cessão de posição contratual da autora à referida D………., SA, com aceitação/concordância expressa da ré e produção de efeitos entre cessionária e cedida.
5ª – Contrato de cessão de 29.10.91 que a autora diz ter resolvido com a referida D………., SA, em 23.02.96, e que terá implicado o pagamento àquela de um valor de 11.750.000$00.
6ª – Sendo que tal acordo de resolução nunca teve a concordância ou até o conhecimento por parte da ré.
7ª – Resulta suficientemente claro que se trata de pedido à ré de indemnização à autora, por indemnização paga pela autora à D………., SA, por força de uma pretensa resolução de um contrato de cessão de posição contratual entre ambas celebrado em 23.02.96 e que terá sido paga à D………., SA em dia não referido entre 23.02.96 e 31.03.96.
8ª – E, por isso, encontramo-nos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual da ré, por alegadamente ter dado causa culposa àquela resolução/indemnização da autora à D………., SA.
9ª – Pelo que é aplicável o prazo trienal de prescrição do artº 498º, nºs 1 e 2 do CC.

A autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

Percorrida a demais tramitação normal, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido.

Inconformada, a autora recorreu, formulando, em síntese, as seguintes
Conclusões
1ª – Só a ré poderia pedir as necessárias autorizações para a viabilidade da construção de um posto de abastecimento de combustíveis, uma vez que era ela a proprietária do terreno prometido vender.
2ª – Logo, terá de se concluir que o contrato promessa não foi cumprido pela ré que assim deveria imediatamente ter entregue o sinal em dobro, naquela altura, à D………., SA.
3ª – A sentença recorrida não se pronunciou sobre tais factos. Antes preferiu analisar [a excepção de ilegitimidade activa] já depois de o despacho saneador se ter pronunciado em sentido contrário.
4ª – A matéria que levou a que a ré fosse absolvida do pedido está provada por documento.
5ª – Em 19.10.91, foi celebrado entre a autora e a ré o acordo de fls. 9 a 10 e 123, em que a primeira declara comprar e a segunda declara vender àquela ou a quem esta indicar [o terreno] para a instalação de um posto de abastecimento.
6ª – O contrato contém uma cláusula mediante a qual a promitente vendedora concede desde logo autorização à promitente compradora para que esta ceda a sua posição contratual.
A cessão da posição contratual da autora para a D………., SA em nada altera o clausulado do contrato promessa de compra e venda.
O contrato de cessão de posição contratual opera a transmissão para o cessionário da posição que o cedente detém em determinado contrato, ficando, por via desse contrato, o cessionário titular do conjunto de direitos e obrigações que emergiam para o cedente do contrato-base, que assim sofre uma modificação subjectiva.
7ª – Como o consentimento à cessão, no contrato promessa dos autos, é anterior à própria cessão, a mesma ficava dependente da comunicação, por parte da autora à ré, daquela cessão, o que sucedeu e foi aceite por esta última, quando notificou, sem os documentos necessários à sua efectivação, para a outorga da escritura definitiva a D………., SA.
8ª – O contrato promessa não sofreu qualquer alteração no seu clausulado, pelo que a D………., SA passou a deter os direitos e obrigações decorrentes do contrato. Inclusivamente, o direito de adquirir ou indicar uma terceira pessoa ou entidade a quem a ré deveria vender o terreno.
9ª – Assim sendo, como o contrato promessa não tinha sido resolvido pela terceira pessoa ou pela D………., SA, esta poderia ceder a sua posição contratual a uma terceira pessoa.
10ª – Ao contrário do decidido, entre a autora e a D………., SA foi celebrado um acordo mediante o qual ambas decidiram resolver o contrato de cessão da posição contratual de fls. 124 e 125.
11ª – Pelo que a autora readquiriu validamente a posição jurídica de promitente compradora no contrato promessa de fls. 9 a 10 e 123, assistindo-lhe, por via disso, o direito a pedir a condenação da ré a restituir-lhe o sinal em dobro, com fundamento no incumprimento daquela contrato promessa, o que, face à matéria que foi dada como provada nos autos, teria de lhe ser dado provimento.

A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos (que não foram impugnados):

Em 29.10.91, entre a autora e a ré, esta representada por G………., foi redigido um acordo em que a primeira prometia comprar e a segunda prometia vender o lote de terreno nº . do alvará nº ./.., que confronta a Norte com os lotes . e . do mesmo alvará, a Sul com cerca do hospital, Nascente com Estrada Municipal nº . e Poente com H………., conforme documento de fls. 123, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido. (A)
Tal terreno prometido vender pela ré à autora, ou a quem esta indicasse, serviria para a instalação de um posto de abastecimento de combustíveis, com viabilidade aprovada. (B)
A ré, por intermédio do seu procurador, prometeu vender à autora, para instalação de um posto de abastecimento de combustíveis com viabilidade aprovada, a área de terreno de 1000 m2 do lote referido em A) do contrato referido em A) dos factos assentes. (4º)
O dito terreno foi prometido vender pela ré à autora ou a quem esta indicasse, livre de quaisquer ónus e encargos. (C)
Nos termos da cláusula D do documento junto a fls. 123, "este contrato anula o contrato promessa de compra e venda celebrado entre o primeiro e segundo outorgante no dia 14 de Outubro de 1991”. (D)
A marcação da escritura notarial de compra e venda definitiva ficou a cargo da ré, que ficou com a obrigação de avisar a autora, ou quem esta indicasse, com antecedência, por carta registada com aviso de recepção, ou por outra forma mais conveniente, do dia, da hora e do Cartório Notarial onde se realizaria a escritura. (E)
Em 29.10.91, a autora celebrou com a D1……….s, Ldª um contrato de cessão da posição contratual nos termos e conforme as cláusula que constam do documento de fls. 124 e 125. (1º)
Na cláusula 2ª foi estipulado como preço da cedência a quantia de 23.500.000$00. (2º)
A D………., SA emitiu o cheque nº ………., do I………., no montante de 11.750.000$00, à ordem de E………. e F………., e estes receberam essa quantia. (3º)
Era a autora quem teria que avisar a D………., SA da referida data [da escritura]. (F)
A autora comunicou à ré que cedeu à D………., SA a sua posição no acordo celebrado entre ambas. (G)
Em 18.07.91, a autora requereu, junto da CM de Penafiel a aprovação do projecto de um posto duplo de abastecimento de combustíveis, um dos quais no lote em questão, apresentando a memória descritiva e a planta topográfica do lote nº . e nº . sito na ………., conforme documento de fls. 18 a 21, cujo conteúdo se dá por reproduzido. (H)
Com data de 18.10.91 foi emitido parecer favorável para a referida instalação dupla pela Comissão de Coordenação da Região Norte e pelo Departamento de Urbanismo e Desenvolvimento da Câmara Municipal de Penafiel, conforme documento da fls. 22, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido. (I)
Em 29.10.91 e 12.11.91, a ré requereu junto da CM de Penafiel algumas alterações ao alvará de loteamento nº ./.., nomeadamente no que diz respeito a áreas, conforme documentos de fls. 24 a 27 e 28 a 30, cujo conteúdo se dá por reproduzido. (J)
Nesses pedidos de alteração, a ré não fez qualquer alusão à construção de um posto de abastecimento de combustíveis no lote em causa. (L)
Na sequência das apontadas alterações, foi feito um averbamento na descrição predial na Conservatória do Registo Predial, no sentido de passar a constar "autorização de loteamento - constituídos 3 lotes, numerados de 1 a 3, com as áreas de 379 m2, 1196 m2 e 1000 m2, respectivamente", conforme documento das fls. 31 e 32, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido. (M)
Relativamente à instalação de um posto de combustíveis no prédio em causa e de acordo com a declaração emitida pelo Director do Departamento Administrativo e Financeiro da Câmara Municipal de Penafiel, emitida em 22.01.92, foi dito que "a viabilidade de construção encontra-se ultrapassada pelo pedido de rectificação do alvará de loteamento nº ./..", conforme documento de fls. 33, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido. (N)
A ré marcou a realização da escritura pública de compra e venda para 09.12.92, que foi adiada porque a D………., SA não podia estar presente e por não ter sido pago o imposto de sisa. (O)
A ré procedeu à marcação da escritura pública para 21.12.92 e depois para 15.01.93. (P)
A D………., SA recusou-se a outorgar a escritura pública de compra e venda, alegando que continuava a faltar a viabilidade de construção e instalação do posto de abastecimento de combustíveis. (Q)
Em 12.02.93, a ré requereu autorização para a construção de um posto de combustíveis junto da CM de Penafiel, conforme documento de fls. 57, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido. (R)
A ré veio a desistir desse processo, por ter vendido o imóvel em causa a terceiros. (S)
Entre a autora e a D………., SA foi efectuado um acerto de contas. (6º)

Com interesse para a decisão, está ainda provado o seguinte facto, por confissão da ré (artºs 22º e 75º da contestação):
Aquando da cessão da posição contratual da autora para a D………., SA, a ré recebeu desta, através do seu procurador G………., pelo menos a quantia de 3.000.000$00 (€ 14.963,94).
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III.
São questões a decidir (delimitadas pelas conclusões das alegações da agravante/apelante (ré) e da apelante (autora) - artºs 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC):
A) No agravo:
- Se a petição inicial é inepta.
- Se a autora é parte ilegítima.
B) Na apelação da ré:
- Se o direito da autora prescreveu.
C) Na apelação da autora:
- Se a autora tem direito à restituição do sinal em dobro por incumprimento definitivo do contrato promessa por parte da ré.

A) Agravo
1. Ineptidão da petição inicial
Segundo a ré, há falta de causa de pedir e contradição entre o pedido e a causa de pedir, porquanto a autora pede que a ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização a título de enriquecimento sem causa e não alega os factos que fundamentam tal pedido, antes alegando factos para fundamentar o direito à restituição do sinal em dobro por via do incumprimento de um contrato promessa.

A petição inicial é inepta, além do mais, quando falte ou seja ininteligível a causa de pedir e quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir (artº 193º, nº 1, als. a) e b) do CPC).
A consequência da ineptidão da petição inicial é a nulidade de todo o processado, que constitui uma excepção dilatória de conhecimento oficioso geradora da absolvição da instância (artºs 193º, nº 1, 493º, nºs 1 e 2, 494º, al. b) e 495º do CPC).
A causa de pedir é o facto jurídico de que emerge a pretensão do autor (nº 4 do citado artº 498º). Portanto, há falta de causa de pedir quando não se aleguem os factos em que se funda a pretensão do autor.
A nossa lei processual civil consagrou a teoria da substanciação, segundo a qual não basta a indicação genérica do direito que se pretende tornar efectivo, sendo necessária a indicação específica do facto constitutivo desse direito.
Se a acção se destina a fazer valer um direito de obrigação, não basta apontar o objecto dela ou o direito que se quer fazer valer, mas é indispensável especificar o facto ou os factos constitutivos do direito[1].
Nas acções obrigacionais, a causa de pedir é o facto jurídico de que nasceu o direito de crédito (empréstimo, compra e venda, prestação de serviço, etc.)[2].
O pedido é o efeito jurídico que se pretende obter na acção (artº 498º, nº 3 do CPC).
O pedido corresponde ao objecto da acção. O autor há-de concluir a sua petição inicial, pedindo ao juiz determinada providência, na qual se condensará o efeito jurídico que pretende obter através do órgão jurisdicional. Se a acção for de prestação, deverá especificar a prestação (de coisa ou de facto) a que se julga com direito e pedirá que o réu seja condenado nessa prestação[3].
Como diz Alberto dos Reis[4], o pedido deve ser o corolário ou a consequência lógica da causa de pedir ou dos fundamentos em que assenta a pretensão do autor, do mesmo modo que, num silogismo, a conclusão deve ser a emanação lógica das premissas. Se, em vez disso, o pedido colidir com a causa de pedir, a ineptidão é manifesta.

Ao contrário do que a ré afirma, a causa de pedir da presente acção não é o enriquecimento sem causa. A causa de pedir é o incumprimento definitivo do contrato promessa que foi celebrado entre a autora e a ré.
No caso, alega a autora (e aceita a ré) que a autora cedeu a um terceiro (D………., SA) a sua posição contratual no referido contrato.
Sendo assim, um dos factos constitutivos do direito da autora é a resolução daquele contrato de cessão da posição contratual, a qual colocaria a autora na primitiva posição de promitente compradora no contrato promessa em causa.
È certo que, na petição inicial, a resolução do contrato de cessão da posição contratual não está alegada em termos exemplares, limitando-se a autora a dizer que restituiu à D………., SA a quantia que esta havia pagado à ré.
No entanto, a autora faz também referência ao documento junto a fls. 68, que contém um acordo de resolução do contrato de cessão da posição contratual celebrado entre a autora e a D………., SA.
Como refere Lebre de Freitas[5], a alegação do facto constitutivo do direito pode ser feita mediante a junção do documento em que ele conste.
Por isso, não traduz inexistência ou ininteligibilidade da causa de pedir a remissão feita na petição inicial para a matéria constante de documentos com ela juntos, desde que deles se infira com certeza o que se pretende e foi realmente articulado e percebido pelo réu[6].
Além disso, no artº 13º da réplica, a autora alegou expressamente a resolução do contrato de cessão da posição contratual.
Se bem que não seja função da réplica colmatar as lacunas da petição inicial, o princípio da aquisição processual permite-nos aceitar aquela alegação, que, conjugada com a referência ao documento de fls. 68, caracteriza devidamente a causa de pedir.
Ainda que assim não fosse, haveria sempre que atender ao disposto no artº 193º, nº 3 do CPC: não há ineptidão da petição inicial por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir se o réu, na contestação, interpretar correctamente a petição inicial.
Ora, resulta da contestação que a ré entendeu perfeitamente a petição inicial, de tal forma que se defendeu negando o incumprimento do contrato promessa que celebrou com a autora.
Por todas as razões expostas, entendemos que não há ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.
E também não há ineptidão por contradição entre o pedido e a causa de pedir porque o pedido de restituição do sinal em dobro é o corolário lógico do incumprimento definitivo do contrato promessa (artº 442º, nº 2 do CC).

2. Ilegitimidade da autora
Alega a ré que a autora não tem a posição de promitente compradora no contrato promessa que celebrou com a ré porque cedeu aquela posição à D……….., SA e, como tal, é parte ilegítima.

A ilegitimidade de qualquer das partes é também uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, que acarreta a absolvição da instância (artºs 483º, nºs 1 e 2 e 494º, al. e) do CPC).
O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, o qual se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção (artº 26º, nºs 1 e 2 do CPC).
Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor (nº 3 do mesmo preceito).
Já vimos que, no caso, a autora alegou que, por força da resolução do contrato de cessão da sua posição contratual no contrato promessa que celebrou com a ré, assumiu novamente a posição de promitente compradora neste contrato.
A autora é pois sujeito da relação material controvertida, tal como ela a configura, tendo, portanto, interesse em demandar a ré para obter a restituição do sinal em dobro em consequência do alegado incumprimento do contrato promessa.
A autora é assim parte legítima, face ao disposto no citado artº 26º, nºs 1, 2 e 3 do CPC.
Caso não se prove que a autora resolveu o contrato de cessão de posição contratual ou caso se entenda que aquela resolução não tem o efeito de colocar a autora na primitiva posição de promitente compradora, verficar-se-á então uma situação de ilegitimidade substancial da autora para accionar os efeitos do incumprimento contratual da ré – o que nada tem a ver com a legitimidade processual.

B) Apelação da ré
Sustenta a ré que se aplica ao caso em apreço o prazo prescricional de três anos previsto no artº 498º, nº 1 do CC para a responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, pelo que estaria prescrito o direito da autora de exigir da ré a restituição do sinal em dobro.

A prescrição é uma excepção peremptória na medida em que constitui um facto extintivo do direito do autor, conduzindo a sua procedência à absolvição do pedido (artº 493º, nºs 1 e 3 do CPC).
A solução da questão da prescrição está implícita na decisão das questões suscitadas no agravo.
Se a causa de pedir da presente acção fosse o enriquecimento sem causa, o direito à restituição prescreveria no prazo de três anos, a contar da data em que a autora teve conhecimento do direito que lhe competia e da pessoa do responsável (artº 482º do CC).
Sendo a causa de pedir o incumprimento definitivo do contrato promessa, como já vimos que é, o prazo de prescrição aplicável é o prazo ordinário de 20 anos previsto no artº 309º do CC, com início no momento em que o direito pudesse ser exercido (artº 306º, nº 1).
O contrato promessa foi celebrado em mesmo 19.10.91, pelo que o prazo prescricional para o exercício do direito a reaver o sinal em dobro teria início sempre em data posterior àquela.
Não se verifica, pois, a invocada excepção de prescrição do direito da autora.

C) Apelação da ré
Entre a autora e a ré foi celebrado um contrato promessa de compra e venda, do qual resultou para a ré a obrigação de celebrar o contrato prometido (artº 410º, nº 1 do CC – Diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem).
O incumprimento definitivo do contrato promessa tem como consequência a resolução do contrato, nos termos gerais (artºs 801º, nº 2 e 432º, nº 1) e a restituição do sinal em dobro, caso tenha sido prestado (artº 442º, nº 1), traduzindo o pedido de restituição do sinal em dobro uma declaração tácita de resolução do contrato promessa (artº 436º, nº 1)[7].
O incumprimento definitivo do contrato-promessa rege-se pelas normas gerais aplicáveis.
A lei considera definitivamente não cumprida a obrigação com as respectivas consequências nos casos de estipulação de cláusula resolutiva ou termo essencial e de impossibilidade culposa da prestação por parte do devedor (artº 801º, nº 1).
Resulta da factualidade descrita nas als. J), L), M) e N) da matéria assente que, à data da celebração do contrato promessa, a CM de Penafiel já havia aprovado a viabilidade de construção de um posto de abastecimento de combustíveis no terreno prometido vender e que, já depois da celebração do contrato, a ré inviabilizou essa construção, ao requerer na CM um pedido de rectificação do respectivo alvará de licenciamento.
Tendo sido acordado entre as partes que o terreno prometido vender se destinava à instalação de um posto de abastecimento de combustíveis, e tendo a ré, com a sua conduta, inviabilizado aquela construção, tornou impossível a celebração do contrato prometido, bem como, naturalmente, a respectiva execução específica.
Parece-nos assim que os autos contêm elementos para se concluir pelo incumprimento definitivo culposo do contrato promessa por parte da ré.
O direito da autora a reaver o sinal em sobro depende, no entanto, de esta assumir no contrato a qualidade de promitente compradora.
E a autora só tem essa qualidade se tiver resolvido o contrato de cessão da posição contratual que havia celebrado com a D………., SA, dando-se aqui nesta parte como reproduzida a fundamentação da sentença recorrida.
A acção foi julgada improcedente porque se entendeu que a autora não provou que tivesse resolvido o contrato de cessão da posição contratual.
Sustenta a autora que essa prova está feita pelo documento cujas cópias estão juntas a fls. 68 e 126/127 e que contém declarações atribuídas à autora e à D………., SA no sentido de resolverem o sobredito contrato.
Não tem razão a autora porque o documento foi impugnado pela ré e, por isso, face ao disposto no artº 374º, não contém os requisitos legais para ter força probatória formal plena nos termos do artº 376º.
A resolução de um contrato pode fazer-se mediante declaração à outra parte (artº 436º, nº 1). Para essa declaração, a lei não exige qualquer forma, podendo ser feita até verbalmente e, consequentemente, provada por qualquer meio, inclusive a prova testemunhal.
Sucede que os factos que a autora alegou para fundamentar a resolução do contrato de cessão da posição contratual não foram levados à base instrutória e, como tal, não foram objecto de qualquer prova.
A sentença recorrida julgou assim a acção improcedente com fundamento na falta de prova de um facto que é essencial para a decisão da causa porque é um facto constitutivo do direito da autora e que foi oportunamente alegado por esta, mas que não foi quesitado, pelo que, evidentemente, não se produziu sobre ele qualquer prova.
Tem assim de ser ampliada a matéria de facto, ao abrigo do disposto no artº 714º, nº 4, 1ª parte do CPC, devendo ser levados à base instrutória os factos relativos à resolução do contrato de cessão da posição contratual celebrado entre a autora e a D………., SA, formulando-se, para o efeito, os seguintes quesitos:
5º-A
Em 23.02.96, a autora e D………., SA acordaram em dar como resolvido o contrato de cessão de exploração que haviam celebrado em 29.10.91?
5º-B
E acordaram em que a autora entregaria à D………., SA, até 31.03.96, a quantia de 11.750.000$00?
A matéria daqueles quesitos pode ser provada por qualquer meio de prova, como acima dissemos, incluindo pelo documento cuja cópia está junta a fls. 126 e 127, que, não tendo embora força probatória plena, pode ser livremente apreciado pelo tribunal em conjugação com os demais elementos de prova que vierem a constar dos autos (artº 366º).

Acresce que está provado, por confissão da ré, que, aquando da celebração do contrato de cessão de exploração entre a autora e a D………., SA, a ré recebeu desta, através do seu procurador G………., pelo menos a quantia de 3.000.000$00.
Na resposta ao quesito 3º, disse-se que E………. e F………. receberam da D………., SA a quantia de 11.750.000$00, por meio de cheque, resultando das respostas aos quesitos 1º e 2º e da data do próprio cheque que aquela quantia foi paga aquando da cessão da posição contratual da autora à D………., SA (o contrato de cessão é de 29.10.91 e o cheque tem a data de 30.10.91 – cfr. fls. 17).
Na motivação da decisão da matéria de facto, consignou-se que dos depoimentos ouvidos não resultou a razão por que o cheque foi emitido à ordem de E………. (dizendo-se também que este é filho do procurador da ré G……….) e que nenhuma prova foi feita de que o cheque tivesse sido emitido em nome daquele E………. por indicação da ré.
Ora, face à confissão da ré de que recebeu do seu procurador, pelo menos, a quantia de 3.000.000$00 e à sua alegação de que não recebeu mais do que isso, a resposta ao quesito 3º é manifestamente deficiente.
Impunha-se neste caso uma actividade de indagação oficiosa por parte do julgador com a audição das pessoas a quem a D………., SA entregou a quantia de 11.750.000$00 (E………. e F……….) e do procurador da ré, G………., a fim de esclarecer o que realmente se passou com aquele pagamento. Essa audição é possível, face ao disposto nos artºs 265º, nº 3 e 645º, nº 1 do CPC.

Por outro lado, a resposta ao quesito 6º é, no mínimo, obscura.
Alegando a autora que resolveu o contrato de cessão da posição contratual que tinha celebrado com a D………., SA e que se obrigou a entregar-lhe (e entregou) a quantia de 11.750.000$00, ou não se prova que lhe entregou aquela quantia nem qualquer outra ou se prova que lhe entregou alguma quantia (aquela ou outra).
A expressão “acerto de contas” é obscura porque dá a ideia que autora e D………., SA eram reciprocamente credoras e devedoras, o que nenhuma das partes sequer alega.

A decisão da matéria de facto na parte respeitante às respostas aos quesitos 3º e 6º tem assim de ser anulada, ao abrigo do disposto no citado artº 712º, nº 4 do CPC.
E o julgamento tem de ser repetido para prova dos novos quesitos e para responder de novo aos quesitos 3º e 6º, com a reinquirição das testemunhas e com a audição das pessoas acima indicadas, podendo as partes requerer novas diligências instrutórias para prova da matéria ampliada. Tudo sem prejuízo do disposto na parte final do nº 4 do artº 712º do CPC.
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se em:
A) Negar provimento ao agravo e julgar improcedente a apelação da ré e, em consequência:
- Confirma-se o despacho saneador na parte em que julgou improcedentes as excepções de nulidade de todo o processado por ineptidão da petição inicial, de ilegitimidade activa e de prescrição.
B) Julgar procedente a apelação da autora, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência:
- Amplia-se a matéria de facto com a inclusão dos quesitos acima formulados e anula-se a decisão da matéria de facto na parte respeitante às respostas aos quesitos 3º e 6º, devendo repetir-se o julgamento nos termos acima exarados.
A ré suportará as custas do agravo e da sua apelação.
As restantes custas serão suportadas pela parte vencida a final.
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Porto, 15 de Março de 2007
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Manuel Lopes Madeira Pinto
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha

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[1] Alberto dos Reis, CPC Anotado, II, 3ª ed., 353.
[2] Alberto dos Reis, obra citada, III, 3ª ed., 122.
[3] Alberto dos Reis, obra citada, II, 3ª ed., 362.
[4] Obra citada, I, 3ª ed., 309.
[5] CPC Anotado, I, 323.
[6] Ac. desta Relação de 07.05.96, www.dgsi.pt, nº conv. 17546.
[7] Almeida Costa, obra citada, 363.