Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0625537
Nº Convencional: JTRP00039764
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: DIREITOS
REMIÇÃO
PAGAMENTO
PREÇO
DESPESAS
Nº do Documento: RP200611210625537
Data do Acordão: 11/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO EM PARTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 232 - FLS 58.
Área Temática: .
Sumário: I - O direito de remissão constitui um verdadeiro direito de preferência, uma preferência qualificada ou reforçada.
II - No exercício desse direito, o preço devido abrange apenas, em princípio, a contraprestação a pagar ao adquirente, não incluindo outras despesas; tal não significa porém que o remidor não deva pagar outras quantias ao projectado adquirente que as haja suportado efectivamente, desde que este, notificado do exercício do direito, as não deixe de pedir no processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de agravo interposto na acção com processo executivo e forma ordinária nº…/2001, da comarca de Carrazeda de Ansiães.
Exequente – B………. .
Executados – C………., D………. e E………. e mulher F………. .
Adquirente em Venda Judicial e ora Agravante – G………. .
Remidora e ora Agravada – H………. .

Na processo de execução que corre termos entre as partes supra referenciadas, foram objecto de penhora vinte e um prédios rústicos situados na área da comarca de Vila Flor.
Foi determinado judicialmente se procedesse à venda dos bens penhorados por negociação particular.
O ora Agravante (proprietário em confinância) mostrou interesse na aquisição dos imóveis descritos nas verbas nºs 7 e 13 e acordou com o Encarregado da Venda, em 17/3/2006, na referida aquisição, pelo preço de € 5.100 e € 13.100, respectivamente, preço que depositou na agência bancária de Vila Flor.
De seguida, pagou, na Repartição de Finanças, em 20/3/06, a quantia de € 910, correspondente ao Imposto Municipal sobre Transmissões em dívida pela transacção acordada; com vista a obter elementos a fim de liquidar o referido imposto requereu uma certidão em tribunal, na qual despendeu € 10,68.
Nas necessárias certidões matricial e registal despendeu as quantias de, respectivamente, € 5,64 e € 27.
A escritura pública formalizadora da venda extrajudicial encontrava-se designada para o dia 21/4/2006.
A fls. 678 dos autos de execução, em 20/4/06, foi proferido o despacho recorrido, do seguinte teor:
“Fls. 668 a 671: Atento o disposto nos artºs 912º nº1 e 915º nº1 C.P.Civ., na redacção anterior ao D.-L. nº 38/2003 de 8 de Março, a remitente na qualidade de filha dos executados devidamente comprovada pela certidão de assento de nascimento que juntou, tem legitimidade para exercer o direito de remição.”
“Acresce que procedeu ao competente depósito do preço, nos termos do artº 912º nº1 C.P.Civ., não tendo ainda havido entregas dos bens ou assinatura de títulos que as documentem, nos termos do artº 913º al. b) do mesmo diploma legal, pelo que o exercício do direito de remição foi tempestivo.”
“Pode pois concluir-se pela legalidade da pretensão, pelo que cumpre autorizar a remição (vd. neste sentido Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, p.238).”
“Nestes termos, autorizo a remição efectuada por H……….”.
A remidora depositou o preço acertado para a venda ordenada por negociação particular, relativa aos prédios ora em causa no recurso.
A fls. 698, o adquirente e ora Agravante arguiu a nulidade do despacho de fls.678, que autorizou a remição, o qual, no seu entender, devia ser declarado nulo e substituído por outro que o mandasse ouvir, a ele adquirente, sobre a requerida remição.
Sustentando a tese de que “o pretenso adquirente da coisa, como o proponente de compra em carta fechada, não tem de ser ouvido sobre o direito de remição invocado por um terceiro”, o Mmº Juiz “a quo” indeferiu a invocação da nulidade.
É do despacho supra transcrito, completado que foi com o despacho que conheceu da nulidade invocada, que vem interposto o presente recurso.

Conclusões do Recurso de Agravo:
1ª - O despacho recorrido é nulo, porque proferido sem a observância do princípio do contraditório e ainda por omissão de pronúncia, já que deixou no olvido o direito dos proponentes compradores.
2ª - Não obstante, não poderá esta Digníssima Relação deixar de conhecer do objecto do agravo, em obediência ao princípio da substituição ao Tribunal recorrido (artº 715º C.P.Civ., aplicável “ex vi” artº 749º C.P.Civ.).
3ª - O êxito da remição – na venda executiva, depende – para além da legitimidade do remidor e da tempestividade da remição – do depósito integral do preço por parte daquele.
4ª - A palavra preço utilizada pelo legislador no artº 913º nº2 C.P.Civ. (e no anterior nº2 do artº 912º do mesmo diploma legal), não foi utilizada no sentido rigoroso ou técnico, mas antes em sentido amplo, de modo a abarcar, numa palavra só, todas as despesas feitas pelo adquirente com vista à aquisição da coisa e bem assim a indemnização prevista naquele nº2 do artº 913º.
5ª - Por isso, tendo a remidora/agravada depositado nos autos quantia insuficiente para cobrir as despesas suportadas pelo agravante, não ser mostram reunidos, no caso presente, os requisitos necessários ao êxito da remição.
6ª - Consequentemente, a remição exercida pela aqui Agravada não devia ser autorizada.
7ª - O despacho recorrido violou o preceituado nos artºs 3º nºs 2 e 3, 668º nº1 al. d) e 913º nº2 C.P.Civ.

Em contra-alegações, a Agravada pugnam pela manutenção do despacho recorrido.

Factos Apurados
Encontram-se provados os factos supra resumidamente descritos e relativos à tramitação processual.
O ora Agravante exerce as funções de Juiz Desembargador neste Tribunal da Relação do Porto.

Fundamentos
A pretensão do Agravante resume-se ao questionar de dois itens:
- em primeiro lugar, saber se o despacho recorrido é nulo, porque proferido sem a observância do princípio do contraditório e ainda por omissão de pronúncia, tendo deixado no olvido o direito dos proponentes compradores;
- em segundo lugar, saber se, tendo a Remidora/Agravada depositado nos autos quantia insuficiente para cobrir as despesas suportadas pelo Agravante (preço, em sentido estrito, demais despesas feitas pelo adquirente com vista à aquisição da coisa e a indemnização prevista no artº 913º nº2 C.P.Civ.), não se mostram reunidos, no caso presente, os requisitos necessários ao êxito da remição.
Vejamos então.
I
Consoante já foi suficientemente debatido nos autos, o direito de remição previsto, no processo executivo, nos artºs 912º a 915º C.P.Civ., constitui um verdadeiro direito de preferência, que alguns autores classificam como preferência qualificada ou preferência reforçada (ut F.A. Ferreira, Curso, §71 e doutrina que cita).
Da mesma forma, J. A. dos Reis: “Na sua actuação prática, o direito de remição funciona como um direito de preferência: tanto por tanto, os titulares desse direito são preferidos aos compradores ou adjudicatários. A família prefere aos estranhos” (Processo de Execução, 2º, pg.477).
Ora, o direito de preferência, quando exercido pela via judicial, corresponde, na esfera jurídica do respectivo titular, ao direito de este último se substituir ou subrogar ao adquirente da coisa, no contrato por este celebrado, tudo se passando juridicamente, após a substituição e pelo que respeita à titularidade do direito transmitido, como se o contrato de alienação houvesse sido celebrado com o preferente (cf. M.H. Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, pg.227; como refere o Autor, a qualificação do direito de preferência, na respectiva fase judicial, como direito potestativo é referida pacificamente pela doutrina).
Direito potestativo, recorde-se, “é o direito que se caracteriza por o seu titular o exercer por sua livre vontade, desencadeando determinados efeitos na esfera jurídica de outrem, independentemente da vontade deste; o sujeito passivo nada pode fazer, nem para cooperar na realização do direito nem para o impedir” (cf. Ana Prata, Dicionário Jurídico, pg.371).
Ponto será, porém, que o remidor, ao invocar o direito de remir os bens adjudicados ou vendidos judicialmente, exercido por sua livre vontade (reunindo, como reúne, as condições para esse exercício), proceda ao depósito do preço, seja no momento do exercício do direito (artº 912º nº2 C.P.Civ.61), seja nos termos actuais do artº 913º nº2 C.P.Civ.03.
Se não se encontra em causa que a remidora, nos autos, procedeu ao depósito do preço, no momento que lhe era assinado pelo disposto no artº 913º al. b) C.P.Civ.95 ou artº 913º nº1 al. b) C.P.Civ.03, o Agravante, enquanto adquirente preterido pelo exercício do direito de remição, entende que a remidora deveria igualmente ter feito depósito das demais despesas feitas pelo adquirente com vista à aquisição da coisa e da indemnização prevista no artº 913º nº2 C.P.Civ.03.
Quid juris?
II
Na estrita leitura da norma, apenas se encontraria em causa o preço por que tivesse sido feita a adjudicação ou a venda.
A questão, como é consabido, foi largamente discutida a propósito do exercício do direito de preferência.
Varela (in Revista Decana, 119º/105ss., acompanhado por toda uma ilustre doutrina que cita) entendia, a esse propósito, que a solução mais criteriosa era a que não forçasse o adquirente preferido a abrir mão da quota ou da coisa comprada antes de ser compensado ou reembolsado de todos os encargos da aquisição, libertando-o, por conseguinte, do ónus eventual do procedimento executivo e do risco de insolvência do devedor. Assim, o depósito exigido do preferente deveria incluir, para além do preço, todos os demais encargos da compra.
Sem olvidar que, por se verificar apenas a substituição do comprador pelo preferente, não há lugar ao pagamento de novo imposto de transmissão (por todos, Ac.S.T.J. 25/10/05 Col.III/95 e 99).
Não obstante, a leitura adversa sempre suscitou melhor compreensão da doutrina – defendia-se que “visando o depósito apenas garantir o vendedor contra o perigo de, finda a acção, o preferente ser desinteressar da compra ou não ter possibilidades financeiras para a concretizar, perdendo também o contrato com o primeiro comprador, o depósito dessa contraprestação basta para evitar esse perigo” (veja-se, entre inúmera jurisprudência das Relações, o Ac.S.T.J. 17/3/93 Bol.425/564 ou Col.II/11).
No que concerne o concreto direito de remição, porém, já se pronunciava Lopes-Cardoso, entendendo que o remidor deveria assumir todos os encargos do comprador ou do adjudicatário (Manual, §229; no mesmo sentido, J. A. dos Reis, op. cit., pg.485).
Na matéria substantiva da preferência, a qual, como vimos, mutatis mutandis, é de inteiro cabimento ser aplicada ao caso do direito de remição, cabe sublinhar que, inexistindo unanimidade na doutrina, é hoje opinião francamente dominante que o preço devido, abrangendo apenas a contraprestação que deve ser paga ao vendedor, não incluindo outras despesas, v.g. tributárias, de registo ou de escritura, não significa que o preferente não deva pagar tais outras quantias ao comprador, desde que pedidas no processo, designadamente por reconvenção (cf. Ol. Ascensão Bol.219/217ss., S.T.J. 22/2/05 Col.I/92, S.T.J. 26/4/95 Col.I/153 ou Ac.R.L. 6/11/01 Col.V/72).
Tal posição parece-nos ser inteiramente de sufragar, para o caso dos autos. Neste caso, não era de exigir à remidora, no momento do depósito do preço ou do exercício do direito, que conhecesse todas as despesas efectuadas pelo futuro comprador, em vista da compra (e daí que nunca se pudesse dizer que precludira o respectivo direito de remir, como pretende o Agravante).
Todavia, do lado desse adquirente e Agravante, parece elementar compensá-lo ou reembolsá-lo de todos os encargos da aquisição, dessa forma o libertando do ónus eventual do procedimento executivo, do qual sempre poderia, em todo o caso, lançar mão.
Em suma, e por todo o exposto, justificava-se que o Mmº Juiz “a quo” tivesse exarado despacho no qual tivesse colocado à consideração do adquirente o direito exercido por via de remição, permitindo ao adquirente reclamar da remidora a totalidade das quantias despendidas em vista da aquisição dos bens por venda extrajudicial através de negociação particular. Tais quantias, após serem reclamadas, passariam a integrar o montante a ser depositado em exercício do direito de remição e cuja exacta extensão era desconhecida à data em que a remidora efectuou o exclusivo depósito da quantia devida a título de contrapartida monetária (“preço”), acordada para os prédios cuja escritura de compra e venda, por força de venda judicial por negociação particular, se encontrava já projectada.
Contra este entendimento não valeria também esgrimir o disposto no artº 912º nº2 C.P.Civ.61, já que a remidora ainda se encontrava em tempo de perfeccionar o exercício do direito (artº 913º al.b) C.P.Civ.95).
É claro que, até ao momento da decisão definitiva sobre o direito da ora Agravada, se deve sempre pressupor a suspensão da projectada venda ao Agravante.
III
O Agravante reclama da remidora o pagamento da indemnização prevista no artº 913º nº2 C.P.Civ.03.
Não tem, porém, o concreto jus a tal quantia, pois que, conforme artº 21º do D.-L. nº 38/2003 de 8 de Março (“as alterações ao Código de processo Civil (...), só se aplicam nos ou relativamente aos processos instaurados a partir do dia 15 de Setembro de 2003”), as normas aplicáveis aos autos são as que vigoravam antes da reforma operada no processo executivo por este diploma, nanja as decorrentes das alterações aí introduzidas ao processo.
De facto, o exercício do direito de remição não se constitui processualmente com qualquer autonomia da execução, antes se tratando de um incidente, ou na fórmula preferida de A. dos Reis (Comentário, III, pg.563), uma intercorrência no processo, destinada à composição da lide (sobre a matéria, parece elucidativa a consulta do Ac.R.P. 11/5/06 in dgsi.pt, pºnº0632162).
A citada norma, na redacção actualmente vigente, também não assume qualquer carácter interpretativo – na verdade, não se conhece qualquer conflito jurisprudencial ou doutrinal que tenha vindo resolver (artº 13º nº1 C.Civ.).
Fora das despesas directamente efectuadas em vista da aquisição do bem (v.g., tributárias, despesas de registo e escritura), não tinha o projectado adquirente, à luz da lei processual de 61 e 95, direito a qualquer outra indemnização.
Também é de afastar o entendimento da Agravada no sentido de o negócio projectado pelo Agravante ser nulo, face à proibição de cessão de direitos litigiosos a juízes (artºs 579º nº1 e 876º C.Civ.).
De facto, inexiste qualquer litígio que seja, quer acerca da venda de bens no processo executivo, quer, de outra banda, acerca dos próprios bens projectados adquirir pelo Agravante – o eventual litígio que subsista sobre o crédito exequendo não engloba a posição do comprador na venda executiva judicial ou extrajudicial.

Resumindo a fundamentação:
I – O direito de remição previsto, no processo executivo, nos artºs 912º a 915º C.P.Civ., constitui um verdadeiro direito de preferência, que alguns autores classificam como preferência qualificada ou preferência reforçada.
II – No exercício do direito de remição, em processo executivo, o preço devido, abrange apenas, em princípio, a contraprestação a pagar pelo adquirente, não incluindo outras despesas, v.g. tributárias, de registo ou de escritura; tal não significa, porém, que o remidor não deva pagar essas outras quantias ao projectado adquirente que as haja suportado efectivamente, desde que este, notificado do exercício do direito de remição, as não deixe de pedir no processo.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, acorda-se neste Tribunal da Relação:
No parcial provimento do agravo, revogar-se o despacho recorrido, determinando-se que seja notificada a remidora para, em prazo a fixar, depositar nos autos, à ordem do Mmº Juiz de Comarca, as quantias despendidas, a título de I.M.T. e demais certidões, em vista da aquisição projectada nos presentes autos, pelo adquirente e ora Agravante.
Custas, em ambas as instâncias, por Agravante e Agravada, na proporção de metade.

Porto, 21 de Novembro de 2006
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
José Gabriel Correia Pereira da Silva
Maria das Dores Eiró de Araújo