Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10795/08.8TBVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP00043991
Relator: TEIXEIRA RIBEIRO
Descritores: REGISTOS FONOGRÁFICOS
INADMISSIBILIDADE
MEIOS DE PROVA
Nº do Documento: RP2010041510795/08.8TBVNG-A.P1
Data do Acordão: 04/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I – Não sendo o CPC tão claro como o C. Proc. Pen. (art. 126º) quanto à nulidade das provas e à sua inadmissibilidade no processo civil, hão-de, todavia, as suas normas conformar-se – tal como as demais de todo o nosso ordenamento jurídico – às normas e princípios constitucionais em vigor (art. 204º da CRP), particularmente, e no que agora releva, às dos arts. 26º, nº1 e 32º, nº8, da CRP.
II – Por isso, a disciplina normativa deste art. 32º, nº8, apesar de epigraficamente referenciada para o processo penal, tem aplicação analógica ao processo cível, sendo a interpretação por analogia possível devido a não ser excepcional a regra deste art., nem as suas razões justificativas (dimanadas dos direitos individualmente reconhecidos no art. 26º, nº1 da mesma Constituição) serem válidas apenas para o processo penal (art. 126º, nº3 do Cod. Proc. Pen.).
III – Constitui abusiva intromissão na vida privada a gravação de conversas ou contactos telefónicos, sem consentimento do outro interlocutor ou autorização judicial concedida pela forma prevista na lei processual, sendo nulos quanto à sua obtenção os respectivos registos fonográficos e, como tal, inadmissíveis como meio de prova, mesmo no processo civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rel. 114
Apelação nº 10795/08. 8TBVNG -A.P1
2ª Secção Cível
Relator – Teixeira Ribeiro
Adjuntos – Desembgdrs: Pinto de Almeida e
Telles de Menezes

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Na acção declarativa, com processo sumário, registada sob o número em epígrafe, do 6º Juízo Cível da Comarca de Vila Nova de Gaia, intentada por B…………. contra C…………, a Ré, no seu requerimento de provas, requereu a reprodução em audiência de julgamento de dois registos fonográficos de conversas pessoais mantidas com o Autor, para prova da matéria relativa aos artºs 56º, 57º, 65º e 67º da contestação, juntando, depois, os respectivos suportes de gravação em disco-compacto.

Notificado o Autor do teor desse requerimento, veio informar (fls. 38 destes autos de recurso em separado) desconhecer de que forma, quando e em que contexto foram obtidos tais alegados registos fonográficos, que, a existirem de facto, foram registados sem a sua autorização, constituindo, por isso, prova ilícita e inadmissível; declarou, ainda, que, a serem, apesar disso, tais registos admitidos, impugnava a sua exactidão.

Notificada, a Ré, para esclarecer se tais registos foram colhidos com o conhecimento e consentimento do Autor, veio informar( fls. 44 destes autos) que o registo fonográfico em causa foi colhido com o conhecimento e o consentimento do Autor, esclarecendo ainda que possui mensagem “SMS”, remetida por este do seu telemóvel para o telemóvel da Ré, do seguinte teor: “Estou em casa podes vir e fazer outra gravação”, prontificando-se a exibi-la se tal fosse necessário.

Tal requerimento mereceu do Mmº Juiz do processo, quanto aos registos fonográficos como meio de prova, o seguinte despacho:
“Quanto aos registos fonográficos de conversas pessoais mantidas entre as partes, requerido pela Ré, o Autor expressamente refere que não autorizou quaisquer registos dessa natureza de conversas mantidas com a Ré.
Não foi junto aos autos qualquer elemento probatório comprovativo da autorização do Autor na gravação das conversas em causa.
Tão pouco se mostra feita prova de qualquer autorização judicial para a gravação dessas conversas, ainda que noutra sede.
Assim sendo e porque, como é evidente, a gravação de conversas sem o consentimento de um dos interlocutores é ilícita porque atentatória do princípio da reserva da intimidade da vida privada, consagrado no art. 26º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, não pode admitir-se como meio de prova gravações dessa natureza sem que se encontre suficientemente garantida a autorização de todas as pessoas cujas palavras foram captadas mecanicamente.
Face ao exposto, indefiro a requerida prova por registos fonográficos e determino que os mesmos sejam devolvidos à sua apresentante”.
*
Inconformada, a Ré interpôs a presente apelação (admitida para subir em separado), cujas alegações concluiu da seguinte forma:
…………..
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…………..
…………..
…………..
Contra-alegando, o Autor reiterou que jamais consentiu ou autorizou a gravação da alegada conversa mantida com a Ré e defendeu, em tudo o mais, a decisão recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir
Considerando que são as conclusões alegatórias do recorrente que definem o objecto e o âmbito do recurso ( Artºs 684º, 684º-A e 685º-B, todos do Cód. Proc. Civil, na redacção, aplicável, concedida pelo Dl. nº 303/2007, de 24/8), temos somente que dizer se os questionados registos fonográficos devem ou não ser admitidos como meio de prova, nos termos requeridos pela Ré, ora Apelante.

II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – Relevam para o conhecimento do objecto do recurso os factos descritos no ponto I deste acórdão, que ora evitamos reproduzir, por razões de brevidade.

II.2 - Fundamentação Jurídica. O direito aplicável:

Na decisão recorrida considerou-se que por ser ilícita a gravação de conversas sem o consentimento de um dos interlocutores, dado atentar contra a reserva da vida privada, era inadmissível como meio de prova o respectivo registo fonográfico.
A Recorrente questiona esta asserção, defendendo, por um lado, que um tal registo fonográfico (obtido sem o consentimento do Apelado) não poderá deixar de ser admitido como meio de prova para através da sua audição se saber se o respectivo conteúdo atenta ou não contra a reserva privada e, por outro, que, no caso concreto, houve consentimento na gravação, atento o teor de uma “SMS” que recebera do Recorrido, do seguinte teor - “Estou em casa podes vir fazer a gravação”.

Na nossa lei processual civil não encontramos qualquer disposição que nos diga directa e expressamente o que são e quais são as provas ilícitas ou proibidas, ao contrário do que acontece na lei processual penal, onde, pelo que consta do Artº 126º do Codígo de Processo Penal, e sob a epígrafe de “Métodos proibidos de prova”, se determinou que “ 1 – são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2 – São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com o consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e) Promessa de vantengem legalmente inadmissível.
3 – Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
4 – Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo” ( Sublinhado nosso).

Só indirectamente encontramos um afloramento no Código de Processo Civil à inadmissibilidade de certos meios de prova, como limitação ao amplo princípio do chamado “direito à prova” enunciado no seu Artº 515º (“ O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas...”), que resulta do que também aí se contém no Artº 519º, nº3, em relação à recusa ao dever genérico de colaboração de todos, sejam ou não partes, para a descoberta da verdade, quando nessa disposição se diz que “A recusa (à colaboração) é, porém, legítima se a obediência importar:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou deo segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no nº4.
“ (Sublinhado nosso)

Estes fundamentos de recusa de cooperação têm na sua génese
formas ilícitas de obtenção de provas e obrigam o juiz a dizer, depois de assegurado o contraditório, em que medida são inadmissíveis no processo cível, sendo certo, também, que nem todas as provas lícitas aí são admissíveis, como acontece quanto são oferecidas intempestivamente ( Artºs 512º, 523º e 524º do C.P.C.) .
Como nos diz Manuel Tomé Soares Gomes - in “Um Olhar Sobre a Prova em Demanda da Verdade no Processo Civil”, na Separata da Revista do CEJ ( 2005), nº3, Almedina, pag. 154 - “ Prova inadmissível será aquela que a lei não permite que ingresse no processo pelos mais diversos fundamentos nela previstos, a saber:
(…)
- por inadmissibilidade nos termos do nº3 do art. 519º, do Código de Processo Civil;
(…)
competindo, pois, ao juiz o controlo da admissibilidade dos meios de prova, quer das provas pré-constituídas, quer das provas constituendas. E é facultado à parte o contraditório quanto a tal admissibilidade, como decorre da norma geral do art. 517º, nº2, e mais especificamente do disposto nos art.s 542º, 554º, 578º, nº1, a contrario sensu, 635º e 637º, do Código de Processo Civil”.

Não sendo o Código de Processo Civil, pelo que já se disse, tão claro como o Código de Processo Penal (no citado artº 126º), quando à nulidade das provas e à sua inadmissibilidade no processo cível, hão-de, todavia, as suas normas e a aplicação que delas se faça judicialmente conformar-se – tal como as demais de todo o nosso ordenamento jurídico – às normas e princípios constitucionais em vigor (Artº 204º, da Constituição da República Portuguesa), particularmente e no que agora releva, às dos Artºs 26º nº1, e 32º, nº8, da CRP. A primeira, dispõe que “ A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”, enquanto a segunda, sob a epígrafe de “Garantias de processo criminal”, preceitua que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.
Apoiando-se nesta última disposição (do Artº 32º, nº8), alguma doutrina e jurisprudência mais recentes vem sustentando que a sua disciplina, apesar de expressamente referenciada para o processo penal, tem
aplicação analógica ao processo civil, sendo a interpretação por analogia possível devido a não ser excepcional a regra deste artigo, nem as suas razões justificativas (dimanadas dos direitos individualmente reconhecidos no citado artº 26º, nº1) serem válidas apenas para o processo penal. Neste sentido, Paulo Mota Pinto e Isabel Alexandre – in “Provas Ilícitas em Processo Civil – 1998- Almedina, pag.s 287 e 263-265 – ao concluirem que “ No direito português, a obtenção ilícita de um meio de prova tem consequências a nível da sua admissibilidade processual, em virtude da aplicação analógica da regra do artº 32º, nº8 da CRP ao processo civil”, e ao defenderem que nas situações em que se comprove ter havido uma abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas comunicações, estará o juiz obrigado a não admitir a prova apresentada que tenha sido obtida através desses meios.
Idêntica interpretação defende José João Abrantes, no seu Estudo intitulado “Prova Ilícita – da sua relevância no Processo Civil”, apud Revista Jurídica, nº7, Julho-Setembro 1986, edição da Associção Académica da Faculdade de Direito de Lisboa (AAFDL), quando realça o facto de naquele Artº 32º, nº8, da Constituição, nada mais se fazer do que especificar alguns dos direitos previstos genericamente nos artºs 25º, 26º e 34º, da mesma Constituição, direitos esses que, face ao nosso ordenamento constitucional (artº 18º, nº1), são directamente aplicáveis aos particulares, e, nessa medida, podem fundamentar a inadmissibilidade de certos meios de prova, sejam estes obtidos por autoridades públicas ou particulares, em processo criminal ou em processo Cívil; cfr, ainda, no sentido da aplicação analógica ao processo civil do citado Artº 32º, nº8 da Constituição Política, e entre outros, os Acs. da Rel. Porto, de 06-01-2009 (procº nº 0825375), Rel. Lisboa, de 03-06-2004 (procº nº 1107/2004-6) e 07-05-2009 (procº nº2465/08-2), todos acessíveis nos respectivos sítios da “dgsi”.

Está por definir com mais precisão, na nossa ordem jurídica, o conceito de reserva da intimidade da vida privada. Assim o vem reconhecendo, inclusivamente, alguns Acórdãos do Tribunal Constitucional, como, por exemplo, os Ac.s Nº 278/95 (publicdo no Diário da República II Série, de 28 de Julho de 1995) e nº 607/2003 (este acessível in www.tribunalconstitucional.pt/tc), em que se escreveu, neste último, que “ ...O texto constitucional não estabelece o conteúdo e alcance do direito à reserva da intimidade, nem define o que deva entender-se por intimidade como bem jurídico constitucionalmente protegido...”.
Se isto é assim sob o ponto de vista constitucional, as normas do direito substantivo ordinário, tanto civil como penal, não logram melhor explicitação do conceito, se bem que contribuam para densificar a sua axiologia normativa, ao situarem a protecção da reserva da intimidade da vida privada no núcleo dos direitos de personalidade (conferindo-lhe uma tutela directa), prevista nos Artºs 70º a 81º, do Código Civil, com particular destaque para o seu Artº 80º, que, sob a epígrafe Direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, assim dispõe - “1. Todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem.
2 . A extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas" – dando-lhe maior ou menor relevância prática e objectiva em função da natureza do caso, ou seja, e como nos lembram Pires de Lima e Antunes Varela (no seu Código Civil anotado), conforme a divulgação dos factos da vida íntima da pessoa possa ofender em maior ou menor grau o seu decoro, a sua respeitabilidade e o seu bom nome, que também varia em função da sua condição por ser diversa a reserva que as pessoas guardam ou exigem quanto à sua vida particular.
Por sua vez, o Código Penal tipifica, no seu Artº 199º, nº1, a) e b), como crime, a conduta de “ I – Quem, sem consentimento:
a) Gravar palavras proferidas, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou
b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas;
é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias”. (sublinhado nosso).

São as normas supra-citadas, sobretudo as relativas à Constituição Política e ao Código de Processo Penal, onde – segundo afirma o Prof. Manuel da Costa Andrade, in “Sobre as proibições de prova em Processo Penal”, Coimbra, 1992, pag. 188 – “...no essencial, se encontra vertido o direito positivo português das proibições de prova”, que, entre nós, constituem, basilarmente, a tutela do direito à reserva da intimidade da vida privada.
E tem sido, de facto, a doutrina, bem como, de modo muito incisivo, a jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional, quem, com recurso aos ensinamentos do direito comparado (com destaque para a doutrina e jurisprudência do Tribunal constitucional Federal Alemão), nos vêm dando a dimensão ou amplitude dos conceitos de intimidade e de reserva da vida privada.
Assim, e segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira – in “A Constituição da República Portuguesa, Anotada”, 3ª edição, Coimbra, 1993, pag. 181 – o direito à intimidade da vida privada e familiar “ analisa-se principalmente em dois direitos menores: (a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b)o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familair de outrem ( cfr. Cod. Civil, artº 80º”.
Está em causa “o interesse em impedir ou em controlar a tomada de conhecimento, a divulgação ou, simplesmente, a circulação de informação sobre a pessoa, isto é, sobre factos, comunicações ou situações relativos (ou próximos) ao indivíduo, e que previsivelmente ele considere como íntimos, confidenciais ou reservados. Trata-se do interesse na autodeterminação informativa, entendida como controlo sobre informação relativa à pessoa” - Paulo Mota Pinto, in “A Protecção da vida privada e a Constituição”, no Boletim da Faculdade de Direito – BFD – Coimbra, 2000, pag.164. A sua protecção origina “um núcleo de intimidade, de solidão ou anonimato que desempenha importantes funções, sociais, psicológicas, etc. para a pessoa” - Do mesmo Autor, in BDF, Coimbra, 1993, pag. 504 e segts.
Tratando esta questão sob a perspectiva juscivilística, Capelo de Sousa (in “O direito geral de personalidade, Coimbra, 1995, pag. 318 e segts) também afirma que o direito à reserva “abrange não só o respeito da intimidade da vida privada, em particular a intimidade da vida pessoal, familiar, doméstica, sentimental e sexual....bem como a própria reserva sobre a individualidade do homem no seu ser para si mesmo, v.g., o sobre o seu direito a estar só e sobre os caracteres de acesso privado do seu corpo, da sua saúde, da sua sensibilidade e da sua estrutura intelectiva e volitiva”.
O direito fundamental à reserva absoluta da intimidade da vida privada, que se impõe a qualquer sujeito de direito – diz-nos Benjamim Rodrigues, in “Sigilo Bancário”, Lisboa, 1997, pag. 104 – “só abrange aqueles domínios que, sendo emanação da personalidade humana, expressam valores ou opções do foro íntimo que não têm de ser conhecidas relacionalmente por encararem valores de dignidade do Homem enquanto Homem, visto como dono exclusivo do seu corpo, do seu espírito e das suas manifestações segundo a concepção civilizacional vigente (opções filosóficas, religiosas, políticas, sexuais, etc”.

O direito à reserva da intimidade da vida privada é – agora na compreensão do nosso Tribunal Contitucional – “ o direito de cada um ver protegido o espaço interior da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias; o direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular” (Acórdão nº 319/95, publicado no D. Rep. II Série, de 2 de Novembro de 1995); Nesse âmbito privado ou de intimidade “...está englobada a vida pessoal e familiar (o lar ou o domicílio), a relação com outras esferas da privacidade (v.g., a amizade), e bem assim os meios de expressão e comunicação privados (a correspondência, o telefone, as conversas orais, etc.”) - Acórdão nº 128/92, in D. Rep. II Série, de 24 de Julho de 1992; redunda na tutela de uma “esfera pessoal íntima” (Acórdãos nºs 456/93 e 355/97, in, respectivamente, D. Rep. 1-A Série, de 9 de Setembro de 1993 e 7 de Maio de 1997) e “inviolável” (Acórdão nº 319/95), de “um núcleo mínimo onde ninguém penetre salvo autorização do próprio titular” ( Acórdãos nº 264/97 e 355/97, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt/tc), que “abrange, no âmbito desse espaço próprio inviolável”, além de outros, e como nos salienta Paulo Mota Pinto, in “A Protecção da Vida Privada, já citada, “ os aspectos relativos à vida...conjugal, amorosa e afectiva da pessoa (tais como, por exemplo, os projectos de casamento e separação, as aventuras amorosas, as amizades, afeições e ódios”.

Apesar deste enfático reconhecimento do direito à reserva da intimidade da vida privada como afirmação da dignidade do Homem enquanto tal, a doutrina e Jurisprudência do Tribunal Constitucional também reconhecem que esse direito não é, em absoluto, ilimitável e irrestringível, porque – como nos lembra Vieira de Andrade, in “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, 2ª edição, Coimbra, 2001, pag. 79 – “ ...o homem individual, destinado ou condenado a viver em comunidade, tem também deveres fundamentais de solidariedade para com os outros e para com a sociedade, obrigando-se a respeitar as restrições e as compressões indispensáveis à acomodação dos direito dos outros e à realização dos valores comunitárias, ordenados à felicidade de todos...”.
É na medida em que as marcas de sua vivência podem atingir a esfera jurídica de outrem, nomeadamente no âmbito penal e processual-penal, que, em sede de prova e da sua valoração, se admite, em certos termos, uma ingerência dos poderes públicos na intimidade da vida privada, para salvaguarda de valores ou interesses superiores, analisados e ponderados segundo exigências de proporcionalidade – no âmbito do que permite o Artº 34º, nºs 2, 3 e 4, do Constituição, e, designadamente, Artºs 177º, 179º, 180º, 181º (quanto a buscas domiciliárias e apreensão de documentos e correspondência), 187º, 188º e 189º (quanto a escutas telefónicas e a intercepção de comunicações), todos estes do Código de Processo Penal – mas sempre, porém, sem sacrifício da esfera da intimidade mais restrita e próxima da pessoa, a qual – no dizer de Costa Andrade in ob. supra-citada, pag.s 94-96 – constitui a “área nuclear, inviolável e intangível da vida privada, protegida contra qualquer intromissão das autoridades ou dos particulares e, por isso, subtraída a todo o juízo de ponderação de bens ou interesses”. É esta mesma área nuclear da intimidade da vida privada que, segundo o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Processual Penal”, Primeiro Volume, Coimbra Editora, 1974, pag. 154 e segts) representa a livre realização da personalidade ética do homem e que põe limites ao interesse comunitário na prevenção e repressão da criminalidade, quando estiver em causa a dignitas humana que pertence mesmo ao mais brutal delinquente, e também constitui fundamento da proibição de provas obtidas com violação da autonomia ética da pessoa, mesmo que nisso esta consinta.

No Acórdão nº607/2003, do Tribunal Constitucional (tirado sobre a relevância probatória de diários apreendidos em buscas policiais, e acessível no respectivo sítio da “DGSI”), depois de uma desenvolvida explanação de doutrina nacional e internacional sobre este tema, em grande parte por nós abordada atrás, formulou-se a seguinte conclusão, à volta do citado Artº 32º, nº8, da Constituição: “...deve considerar-se que quando a Constituição prescreve, no artº 32º, nº8, concretizando, neste plano, o valor da dignidade humana assumido como princípio estruturante no seu artº 1º, que “são nulas” todas as provas obtidas “mediante abusiva intromissão na vida privada”, está a prever não só a imposição de condicionamentos formais ao acesso aos meios de prova que represente uma intromissão na vida privada, como, também, a existência de restrições à valoração de provas, que devem aferir-se, conforme o exposto, pelas exigências do princípio da proporcionalidade, sempre ressalvando a ineliminável dignidade e integridade da pessoa humana”(sublinhado nosso).
Esta esclarecida e admirável síntese deixa-nos perante a evidência de que, no caso sub judice, tratando-se de saber se os questionados registos fonográficos, obtidos sem consentimento do Réu, são nulos e inadmissíveis como meio de prova (por abusiva intromissão na vida privada, face à aplicação analógica ao processo civil do disposto, conjugadamente, nos Artºs 32º, nº8, da nossa Constituição Política, e 126º do Código de Processo Penal, quanto a provas nulas pelo método como foram obtidas), pois que tão pouco foi ponderada pela autoridade pública, nomeadamente através de qualquer autorização judicial formalmente admissível, a sua obtenção como elemento de prova, para eventualmente ser valorada em sede de julgamento.

Admitindo-se que os registos fonográficos podem ser meio de prova – tal como se prevê nos Artºs 368º do Código Civil e 527º do Cod. Proc. Civil – só lograrão, todavia, esse estatuto, se demonstrado o consentimento do outro interlocutor na sua obtenção, ou esta tiver sido determinada, na ponderação de outros valores ou interesses comunitariamente superiores segundo o aludido princípio da proporcionalidade, pela autoridade pública competente (também nos termos já aflorados) e sempre sem afronta, nesse caso, sobretudo quanto à sua valoração, do respeito devido à dignidade humana.

Posto isto, não fará sentido – como afirma a Apelante – e salvo o devido respeito – sustentar que os questionados registos fonográficos devem ser sempre admitidos por somente depois de se conhecer o seu conteúdo se poder dizer se atentam ou não contra a reserva da intimidade da vida privada. Estaria encontrada, com efeito, a forma de, por esta via processual cívil, promover a prática do crime previsto e punido no supra-citado Artº 199º do Código Penal.
Do que se trata é de uma prova nula na sua obtenção, nos sobreditos termos, e por isso inadmissível. Depois, não tendo sido autorizada judicialmente, também se não vislumbra que a sua obtenção e utilização probatória possa ocorrer em nome de um superior valor ou interesse sobrelevante. Repare-se que o pedido formulado na acção assenta, simplesmente, na nulidade de um empréstimo (mútuo) feito pelo Autor à Ré (ora Apelante), com vício de forma (sem escritura pública), que a Ré reconhece como tendo-lhe sido prestado pelo Autor (ora Apelado), mas alega que quando se prestava para restituir a este o respectivo montante ele (Autor) o não aceitou dizendo que lho dava. Tudo isto – segundo alegou – no decorrer de um lanche que deu em sua casa, em nome da duradoura amizade e intimidade existentes entre as respectivas famílias...
E com os ditos registos fonográficos a Apelante alegou pretender provar a matéria de facto dos artigos 56º, 57º, 65º e 67º, da sua contestação, de fls.85. Ou seja, que:

“Sabedor que era desta situação (entenda-se da carência de dinheiro pela Ré par amortizar um outro empréstimo), o A. ofereceu-se para emprestar tal quantia” ( 56º);
“ A R., agradecida, aceitou” (57º);
“Então, disse o A. que não aceitaria o dinheiro da R., porque lho dava” (67º).

Ora, estes factos são, efectivamente, da esfera privada do Autor (ora Apelado). Dizem respeito a um relacionamento interpessoal com a Ré ( Apelante), que pode ou não ser de grande amizade, mas que – como vem alegado – também se terá revelado através de conversas e contactos telefónicos, com o sentido e a interpretação que só os interlocutores podem ter, dado segundo a sua maneira própria de pensar e de reagir, adequadas à sua singular personalidade, e que, por isso, não são obrigados a revelar a outrem, nem mesmo num processo judicial cível, como este.
Não deixa de ser surpreendente – e até grotesco – que a Apelante tenha gravado tais conversas ou contactos telefónicos (sem autorização e consentimento do seu interlocutor), dizendo-se muito amiga deste, para agora, numa situação de litígio, fazer uso da respectiva gravação e demonstrar que ele lhe fez doação do dinheiro que lhe havia emprestado.
Mais ainda, quando, por meios idênticos (também nulos e inadmissíveis como meio de prova, nos termos anteriormente descritos), pretende demonstrar que houve consentimento ou autorização daquele para a gravação fonográfica, apoiada num simples “SMS” do seguinte teor : “ Estou em casa, podes vir e fazer outra gravação”, como se (e independentemente de se não saber a que gravação se reportava o “SMS) o Apelado fosse o fomentador de um cenário para documentar a amizade existente entre ambos, bem como a suposta doação.
Porque tais meios de prova são nulos na sua obtenção, e, por isso, inadmissíveis nos termos acabados de explicitar, a decisão que não admitiu a sua junção aos autos não nos merece qualquer censura.

Sumário ( Artº 713º, nº7, do C.P.C.):

1 – Não sendo o Código de Processo Civil tão claro como o Código de Processo Penal ( Artº 126º), quanto à nulidade das provas e à sua inadmissibilidade no processo civil, hão-de, todavia, as suas normas conformar-se – tal como as demais de todo o nosso ordenamento jurídico – às normas e princípios constitucionais em vigor ( Artº 204º, da Constituição da República Portuguesa), particularmente, e no que agora releva, às dos Artºs 26º, nº1, e 32º, nº8, da CRP;

2 – Por isso, a disciplina normativa deste Artº 32º, nº8, apesar de epigraficamente referenciada para o processo penal, tem aplicação analógica ao processo cível, sendo a interpretação por analogia possível devido a não ser excepcional a regra deste artigo, nem as suas razões justificativas (dimanadas dos direitos individualmente reconhecidos no Artº 26º, nº1, da mesma Constituição) serem válidas apenas para o processo penal ( Artº 126º, nº3, do CPP);

3 – Constitui abusiva intromissão na vida privada a gravação de conversas ou contactos telefónicos, sem consentimento do outro interlocutor ou autorização judicial concedida pela forma prevista na lei processual, sendo nulos quanto à sua obtenção os respectivos registos fonográficos e, como tal, indamissíveis como meio de prova, mesmo no processo civil.

III – DECIDINDO

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se (ainda que com outros fundamentos) a decisão recorrida.
Custas pela Apelante.

Porto, 15/04/2010
Manuel de Sousa Teixeira Ribeiro
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo