Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0735266
Nº Convencional: JTRP00041070
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
DIREITO DE PROPRIEDADE
AQUISIÇÃO
REGISTO PREDIAL
TERCEIRO
Nº do Documento: RP200802070735266
Data do Acordão: 02/07/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: LIVRO 747 - FLS. 174.
Área Temática: .
Sumário: I – O embargante que se arrogue proprietário dos bens cuja apreensão foi ordenada ou realizada, invocando tê-los adquirido de pessoa diversa do executado, tem de alegar os factos integradores da aquisição do direito por qualquer um dos modos previstos na lei e, se não tiver a seu favor a presunção registral emanada do art. 7º do CRP, tem de alegar factos integradores de uma forma de aquisição originária (v. g., a usucapião) e de uma forma de aquisição derivada (compra e venda, doação, sucessão por morte, partilha subsequente a divórcio, etc).
II – O embargante que tenha adquirido do executado não tem de alegar nem provar uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, bastando-lhe alegar e provar o acto translativo do direito de propriedade da esfera jurídica do executado para a sua (aquisição derivada).
III – Em tal situação, resta ao exequente, como meio de defesa, infirmar a transmissão ou o respectivo título, alegando, por exemplo, a sua invalidade ou ineficácia.
IV – O nº4 do art. 5º do CRP, na esteira do AU nº3/99, ao restringir o conceito de terceiro nos termos em que o fez, excluiu ab initio os casos em que o titular inscrito não tem intervenção voluntária na transmissão do direito, mas é sujeito passivo desse direito, abrangendo, assim, os direitos reais de garantia, tais como o arresto, a penhora, a hipoteca judicial, etc.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B………………… e C……………. deduziram embargos de terceiro por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa que D…………………, LDA instaurou contra E………………, LDA e F………………….
Pediram que fosse reconhecido o seu direito de propriedade sobre o prédio descrito no artº 1º da petição inicial e que fosse levantada a penhora que incide sobre o mesmo.
Como fundamento, alegaram que compraram o referido prédio e que não registaram a propriedade na altura da compra.
A embargada/exequente contestou, impugnando os factos alegados pelos embargantes e alegando, sumariamente, que a celebração do negócio de compra e venda realizado pelo executado F……………. e pelo embargante B………….. apenas se destinou a evitar que os bens pertencentes àquele fossem executados, que o comprador nada pagou e o vendedor nada recebeu, tendo o referido negócio sido o resultado de um acordo entre o executado e embargante com o intuito de enganar terceiros, designadamente, a exequente/embargada.
Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença que julgou os embargos procedentes e, em consequência, ordenou o levantamento da penhora sobre o prédio urbano identificado nos autos.

Inconformada, a embargada/exequente recorreu, formulando as seguintes
Conclusões
1ª – O regime dos embargos de terceiro encontra-se hoje regulado nos artºs 351º a 358º do CPC e contempla a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência.
2ª – Ao embargante incumbe o ónus de alegar e provar a sua qualidade de possuidor ou de titular de outro direito incompatível.
3ª – O embargante deve aduzir factos e argumentos que demonstrem a posse ou direito. Não basta a simples alegação de que é possuidor ou proprietário, conforme resulta da regra de que a quem invoca um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (artº 342º, nº 1 do CC).
4ª – Os embargantes só estariam dispensados dessa alegação e prova se existisse a inversão do ónus da prova (como no caso do registo).
5ª – Não tendo os embargantes o benefício da presunção do direito derivado do registo, não estavam dispensados da alegação e prova do direito invocado.
6ª – Não pode considerar-se preenchido esse ónus com a junção aos autos de uma cópia de uma escritura com a simples alegação de que se é proprietário.
7ª – A cópia simples não pode ser considerado documento autêntico e não tem a força probatória prevista no artº 371º, nº 1 do CC.
8ª – Na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos provados por documento, fazendo o exame crítico das provas (artº 659º, nº 3 do CPC).
9ª – A sentença recorrida não fez o exame crítico das provas e condenou em quantia superior e diversa do pedido, pois que não podia considerar provados factos que não foram alegados e cuja alegação e prova competia aos embargantes.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
Estão provados os seguintes factos:
Por escritura pública celebrada em 28.12.99, F………….. declarou vender a B………….. pelo preço de 2 000 000$00, que dele já recebeu, um prédio urbano, composto de terreno destinado a construção urbana, com a área de 816 m2, sito no ……. ou ……….., freguesia e concelho de Soure, designado por lote nº 36, a confrontar do Norte com o lote nº 35 de G…………….., do Sul com H………………., Ldª, do Nascente e Poente com a rua, que se encontra descrito na CRP de Soure sob o nº 4576 daquela freguesia, estando inscrito na matriz predial urbana sob o artº 5725, tendo o B……………. dito que aceita o presente contrato nos termos exarados. (A)
O prédio aludido em A) encontra-se registado na CRP de Soure em nome de F……………... (B)
Nos autos de acção executiva em que figura como exequente D……………, Lda e executados E……………, Lda e F…………….., no dia 06.02.04, foi efectuada a penhora do prédio identificado em A). (C)
A penhora aludida em C) foi registada em 06.02.04. (doc. de fls. 33 e 34 do processo executivo)
*
III.
São questões a decidir (delimitadas pelas conclusões da alegação da agravante - artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC):
- Se o documento junto a fls. 7 e seguintes faz prova plena da compra e venda do bem imóvel penhorado;
- Se os embargantes tinham de alegar e provar uma forma de aquisição originária do seu direito de propriedade sobre o bem penhorado.

1. Valor probatório do documento de fls. 7 e seguintes
A nossa lei civil consagrou uma noção ampla de documento, definindo-o como qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto (artº 362º do CC – Diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem).
Os documentos escritos podem ser autênticos ou particulares (artº 363º, nº 1).
Documentos autênticos são aqueles que são exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os documentos que não tenham sido exarados naqueles termos são documentos particulares (nº 2 do normativo citado), que podem, no entanto, haver-se por autenticados, se forem confirmados pelas partes, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais (nº 3 da mesma norma).
No artº 273º estabelecem-se os requisitos dos documentos particulares: estes devem ser assinados pelo seu autor ou por outrem a seu rogo (nº 1), admitindo-se, em certos casos, a substituição da assinatura por simples reprodução mecânica (nº 2).
Só os documentos particulares que satisfaçam os requisitos previstos naquele normativo podem ter força probatória formal nos termos previstos nos artºs 374º a 376º.
A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular, consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe terem sido atribuídos, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras (artº 374º, nº 1).
Os documentos particulares cuja autoria seja reconhecida nos termos do normativo anterior, fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (artº 376º, nº 1). Já os factos compreendidos na declaração se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível nos termos prescritos para a prova por confissão (nº 2 do mesmo normativo).
O requisito legal dos documentos particulares que releva para o efeito de lhe atribuir força probatória formal nos termos dos normativos acima citados é apenas o que consta do artº 373º, ou seja, a assinatura do seu autor.
Como refere Vaz Serra[1], a assinatura é requisito essencial do verdadeiro e próprio documento particular. A assinatura é o acto pelo qual o autor do documento faz seu o conteúdo deste, o acto, portanto, que lhe confere a sua autoria e que justifica a força probatória do mesmo documento.
Os documentos que não tenham os requisitos legais, - o que, tratando-se de documentos particulares, repetimos, são os que não contenham a assinatura do seu autor - não podem fazer prova plena nem quando às declarações atribuídas ao seu autor, nem quanto aos factos contidos nas mesmas, nos termos do citado artº 376º.
Aqueles documentos são assim livremente apreciados pelo tribunal, de acordo com o princípio geral ínsito no artº 366º, cuja doutrina vale para todo o tipo de documentos[2].
A lei atribui, no entanto, força probatória especial a alguns documentos que não contêm a assinatura do seu autor.
É o caso das certidões, certidões de certidões, públicas-formas e fotocópias de documentos, previstas nos artºs 383º, 384º, 386º e 387º.
As certidões são cópias de documentos autênticos ou particulares arquivados nas repartições notariais ou noutras repartições públicas, cujo teor reproduz por meio não fotográfico (artº 383º, nº 1); as públicas-formas são cópias, expedidas por oficial público autorizado (maxime, o notário) de documentos autênticos ou particulares avulsos, cujo teor reproduzem por meio não fotográfico (artº 386º, nº 1). De acordo com as mesmas disposições legais, a elas é atribuída a força probatória do respectivo original, que só pode ser invalidada pelo confronto com o original nos termos prescritos nos artº 385º e 386º.
As certidões e as públicas-formas, para o serem, têm de conter os requisitos mencionados nos artºs 167º e segs. do C. do Notariado.
Quanto às fotocópias de documentos arquivados nas repartições notariais ou noutras repartições públicas têm a força probatória das certidões de teor, se a conformidade delas com o original for atestada pela entidade competente para expedir estas últimas, têm a força probatória das certidões de teor (artº 387º, nº 1), aplicando-se-lhes também o disposto no artº 385º.
A competência para certificar a autenticidade de todo o género de fotocópias, incluindo as de documentos emanados de entidades públicas, pertence aos notários (artº 171º-A do C. do Notariado) e a diversas outras entidades, designadamente as Juntas de Freguesia, os operadores de serviço público dos CTT, as Câmaras de Comércio e Indústria, os Advogados e os Solicitadores (artº 1º do DL 28/00 de 13.03). As fotocópias certificadas por aquelas entidades de acordo com o formalismo previsto no nº 4 do mesmo normativo têm o mesmo valor dos originais (nº 5 da referida norma).
A compra e venda de bem imóvel só é válida se for celebrada por escritura pública (artº 875º e artº 89º, al. a) do C. do Notariado). Como tal, só pode ser provada pelo original da respectiva escritura (que é um documento autêntico) ou por certidão da mesma, emitida nos termos acima referidos (cfr. artº 164º, nº 1 do C. do Notariado), que tem o mesmo valor que o original.

O documento junto a fls. 7 e seguintes dos autos é uma fotocópia simples de uma certidão da escritura de compra e venda do imóvel penhorado nos autos principais emitida nos termos do artº 164º do C. do Notariado.
Trata-se, pois, de uma fotocópia que não foi certificada de acordo com o disposto no artº 387º, nº 1, ou seja, com a aposição da menção de conformidade com o original por qualquer uma das entidades competentes acima mencionadas.
Faltando-lhe essa menção de conformidade com o original, não pode a mesma ser considerada como fotocópia pública, ou seja, como fotocópia autenticada nos termos do normativo citado.
Assim, tem de se classificar como uma fotocópia particular, aplicando-se-lhe o regime previsto no artº 368º.
Diz este preceito que as reproduções fotográficas ou cinematográficas, os registos fonográficos e, de um modo geral, quaisquer outras reproduções mecânicas de factos ou de coisas fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exactidão.
Dali resulta que à parte a quem for oposta a fotocópia, bastará impugná-la, negando a sua exactidão. Nada mais tem que fazer. O ónus probatório desloca-se para o apresentante da cópia, sendo a este que caberá demonstrar que a cópia é fiel, reproduzindo com verdade o original[3].
Ora, na contestação de embargos, a embargada/exequente não impugnou o documento, pelo que não pode agora suscitar a questão da sua validade em sede de recurso, por se tratar de uma questão nova[4]. A falta de impugnação equivale ao reconhecimento implícito da conformidade da fotocópia com o original[5].
A fotocópia junta a fls. 7 e seguintes tem assim exactamente o mesmo valor que o original, fazendo prova plena do conteúdo deste, ou seja, da compra pelos embargantes ao embargado/executado, em 28.12.99, do imóvel penhorado nos autos principais[6].

2. Aquisição do direito de propriedade pelos embargantes
Segundo o artº 351º, nº 1 do CPC, se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte da causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.
Como resulta da redacção daquele preceito, uma das inovações da reforma processual introduzida pelo DL 329-A/95 de 12.12 foi a de permitir a defesa não só da posse como de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, v. g., o direito de propriedade.
Já no domínio de aplicação da lei anterior se entendia que, quando o embargante invocava também o seu direito de propriedade sobre os bens penhorados, não necessitava de descrever os actos materiais que praticava sobre os mesmos nem o modo como estava a fruí-los.
Invocando o embargante o direito de propriedade e a posse que é inerente a este direito, ocorria uma inversão do ónus da prova, passando a caber ao embargado provar que o embargante não exercia aquela posse, nos termos dos artºs 342º, nº 2 e 344º do CC[7].
O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei (artº 1316º do CC).
Assim, o embargante que se arrogue proprietário dos bens cuja apreensão foi ordenada ou realizada, tem de alegar os factos integradores da aquisição do direito por qualquer um dos modos previstos na lei. E, se não tiver a seu favor a presunção registral emanada do artº 7º do CRP, tem de alegar factos integradores de uma forma de aquisição originária (v.g., a usucapião) e de uma forma de aquisição derivada (compra e venda, doação, sucessão por morte, partilha subsequente a divórcio, etc.).
Porém, aqui impõe-se distinguir se o embargante alega ter adquirido o bem do próprio executado ou de outrem.
Se alega ter adquirido o bem de pessoa diversa do executado, tudo se passa como acima se referiu: inexistindo presunção registral a seu favor, não lhe basta invocar uma forma de aquisição derivada do direito, tendo de invocar também uma forma de aquisição originária.
Mas se alegar que adquiriu o bem do próprio executado, a situação tem contornos diferentes.
A penhora de um bem tem como pressuposto que aquele existe no património do executado, pois que, em regra, apenas este responde pelo cumprimento coercivo da obrigação (artº 817º e artº 821º, nº 1 do CPC). Só nos casos especialmente previstos na lei (artºs 610º e 818º) é que a execução pode incidir sobre bens de terceiro.
Por isso, quando penhora um bem, o exequente não põe em causa o direito de propriedade do executado sobre aquele bem. Pelo contrário, parte do pressuposto da existência daquele direito na titularidade do executado, aceitando toda a situação jurídica anterior à aquisição do bem pelo executado.
Por isso, o embargante que adquira do executado, não tem de alegar nem provar uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, bastando-lhe alegar e provar o acto translativo do direito de propriedade da esfera jurídica do executado para a sua (aquisição derivada).
E, ao contestar os embargos, o exequente não pode pôr em causa o direito de propriedade do executado, porque estaria em contradição com o comportamento anteriormente assumido quando penhorou o bem e, dessa forma, implicitamente reconheceu a existência daquele direito na esfera jurídica do executado. Resta-lhe, apenas, como meio de defesa, infirmar a transmissão ou o respectivo título, alegando, por exemplo, a sua invalidade ou ineficácia.
No caso concreto da compra e venda, o direito de propriedade dela derivada transfere-se e consolida-se no património do comprador por efeito do contrato (artºs 408º e 879º, al. a), pelo que, se for aquela a forma de aquisição derivada do direito invocada pelo embargante, basta a junção aos autos da escritura pública (ou de documento com o mesmo valor do original) para que se mostre provada a aquisição do direito de propriedade.
Nos presentes autos, ao contrário do que sustenta o embargado/exequente, os embargantes não se limitaram a dizer que eram proprietários do bem imóvel penhorado, mas alegaram que o compraram ao executado F…………, embora tenham feito essa alegação por remissão para os documentos juntos aos autos, maxime, para a escritura pública de compra e venda.
Como refere Lebre de Freitas[8], o facto constitutivo do direito pode ser feito mediante a junção do documento em que ele conste. Por isso, não traduz inexistência ou ininteligibilidade da causa de pedir a remissão feita na petição inicial para a matéria constante de documentos com ela juntos, desde que deles se infira com certeza o que se pretende e foi realmente articulado e percebido pelo réu[9].
Assim, ao elaborar a base instrutória, a Mª Juíza a quo considerou como facto assente o contrato de compra e venda alegado pelos embargantes, com base na fotocópia da respectiva escritura, sobre cujo valor probatório já nos pronunciámos.
A embargada/exequente não provou os factos que alegou, em sede de excepção (simulação e impugnação pauliana), como se depreende das respostas negativas aos quesitos da base instrutória.
Não logrando assim infirmar a validade e a eficácia da transmissão do direito de propriedade do bem penhorado do executado para os embargantes e não carecendo estes de alegar e provar uma forma de aquisição originária daquele direito, tanto basta para que se conclua que os embargantes adquiriram o direito de propriedade sobre aquele bem.
Essa aquisição foi efectuada em 28.12.99, não foi registada em nome dos embargantes e a penhora foi registada em 06.02.04.
Diz o artº 5º, nº 1 do CRP os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo.
A noção de terceiro para efeitos de registo predial é questão amplamente debatida na doutrina e na jurisprudência e resultou na formação de duas correntes jurisprudenciais:
A primeira, na esteira da doutrina defendida pelo Prof. Manuel de Andrade[10], restringe a qualidade de terceiro aqueles que do mesmo transmitente adquirem direitos incompatíveis sobre o mesmo prédio[11].
Assim, para esta corrente, o penhorante e o adquirente do mesmo bem não seriam terceiros um em relação ao outro porque os seus direitos, ainda que incompatíveis, não provêm do mesmo autor.
O que significa que a compra e venda anterior, ainda que não registada, pode ser oposta à penhora posterior registada, prevalecendo a primeira.
A segunda corrente defende um conceito mais amplo de terceiro para efeitos de registo predial, definindo-o como todo aquele que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veria esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente.
Com amplo apoio doutrinário[12], esta corrente jurisprudencial mostrou-se, no entanto, sempre minoritária, embora tenha sido acolhida nalguns arestos, quer das Relações, quer do STJ[13].
A divisão da jurisprudência neste domínio levou a que viesse a ser proferido o AU do STJ nº 15/97 de 20.05.97[14].
Este acórdão consagrou a segunda corrente jurisprudencial acima mencionada, preferindo o conceito amplo de terceiro para efeitos de registo predial que por aquela corrente vinha sendo defendido.
A jurisprudência ficou, pois, na altura, uniformizada do modo seguinte, conforme se pode ler no referido acórdão:
“Terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente”.
Entende-se naquele acórdão que o conceito amplo de terceiro é mais consentâneo com os fins do registo predial, argumentando-se que, se este se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (cfr. artº 1º do CRP), tão digno de tutela é aquele que adquire um direito com a intervenção do titular inscrito (compra e venda, doação, etc.) como aquele a quem a lei permite obter um registo sobre o mesmo prédio sem essa intervenção (credor que regista uma penhora, hipoteca judicial, etc.).
A questão, no entanto, continuou longe de ser pacífica, o que levou a que viesse a ser proferido o AU do STJ nº 3/99, de 18.05.99[15], que reviu a posição tomada no referido Acórdão nº 15/97.
O acórdão mais recente considera “radical” e “provocatória” a posição tomada no acórdão anterior e entende que a mesma foi tomada no pressuposto de que a ela se seguiria uma intervenção legislativa urgente no sentido de tornar certo o registo predial, nomeadamente estabelecendo a sua obrigatoriedade e a obrigatoriedade de imediata comunicação pelo notário ao conservador do registo predial da celebração da escritura pública.
Dessa forma se daria pleno cumprimento ao comando do citado artº 1º do CRP, assegurando a intenção ali expressa de publicitar a situação jurídica dos prédios para alcançar segurança no comércio jurídico imobiliário. Não se tendo verificado a esperada actuação do legislador no indicado sentido, a aplicação da doutrina do aresto nº 15/97 acabou por conduzir à situação contrária da insegurança de quem comprou, pagou e cumpriu a formalidade da escritura notarial se ver mais tarde confrontado com o facto de o bem objecto da compra pertencer a outrem por efeito de um registo efectuado posteriormente.
Com tais fundamentos (acima expressos de uma forma muito sumária) entendeu o STJ ser necessário repensar a doutrina do acórdão 15/97.
O actual acórdão considerou, em síntese, que: a) no estado legislativo vigente o registo predial não tem natureza constitutiva, conforme resulta do disposto no artº 7º do CRP; b) a legislação registral tende a agredir princípios fundamentais de natureza substantiva e essa agressão é frontal com a adopção do conceito alargado de terceiro (v.g., no caso de compra e venda, o direito de propriedade transfere-se no momento da celebração da escritura que a formaliza); c) a eficácia do registo não é independente da boa ou má fé de quem regista, argumento que se extrai dos casos em que se atribui ao registo relevância especial e em que esta se faz sempre depender da boa-fé do adquirente (v.g. artº 291º artº 17º, nº 2 do CRP).
Pelas razões expostas, entendeu-se unificar a jurisprudência no seguinte sentido:
“Terceiros, para efeitos do disposto no artº 5º do C. Registo Predial, são os adquirentes de boa-fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”.
A boa-fé a que se faz referência no aresto é a boa-fé do adquirente posterior que regista. O adquirente que regista a aquisição do seu direito, não sabendo nem lhe sendo exigível que soubesse que o titular inscrito já havia alienado ou onerado o prédio sem que o adquirente anterior tivesse registado a aquisição está de boa-fé e por isso é terceiro para efeitos de registo predial, não lhe podendo então ser oposta a primeira aquisição não registada.
A doutrina do AU nº 3/99 foi transposta para o CRP pelo DL 533/99, de 11.12, que acrescentou ao artº 5º daquele Diploma um nº 4, onde se fez constar que "terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si".

Pode ler-se no preâmbulo do DL 533/99 que "se aproveita tomando partido pela clássica definição de Manuel de Andrade, para inserir no artigo 5º do Código do Registo Predial o que deve entender-se por terceiros, para efeitos de registo, pondo-se cobro a divergências jurisprudenciais geradoras de insegurança sobre a titularidade dos bens".

Donde, a redacção dada ao nº 4 do artº 5º do CRP não pode deixar de se ter como interpretativa para os efeitos do nº 1 do artº 13º do CC, como tal se integrando na lei interpretada.

Na redacção dada ao preceito em causa, omitiu-se a referência à boa fé como requisito da qualidade de terceiro, mas essa boa fé não pode deixar de ser exigida.

Como se escreveu no Ac. do STJ de 05.05.05, a boa fé constava expressamente do segmento uniformizador do Ac. do STJ nº 3/99 e correspondia à noção defendida por Manuel de Andrade, a que o legislador declarou aderir. E, na verdade, o que se pretende com a publicidade registral é informar os terceiros acerca das titularidades sobre os prédios, a fim de evitar que sejam feitas aquisições a quem não tenha legitimidade para alienar. Sendo assim, parece legítimo concluir que a letra do artigo 5º, nº 1, apenas pretendeu proteger os terceiros que, iludidos pelo facto de não constar do registo a nova titularidade, foram negociar com a pessoa que no registo (ou fora dele) continuava a aparecer como sendo o titular do direito, apesar de já o não ser.

Sucede que, in casu, o acto registado é uma penhora: o que significa que a embargada/exequente, embora tenha adquirido sobre o mesmo prédio um direito incompatível com o dos embargantes, adquiriu esse direito sem intervenção voluntária do titular inscrito e, portanto, não é “adquirente de um mesmo transmitente comum”, pelo que, desde logo, não é terceiro para efeitos de registo predial.
O nº 4 do artº 5º do CRP, na esteira do AU nº 3/99, ao restringir o conceito de terceiro nos termos em que o fez, excluiu ab initio os casos em que o titular inscrito não tem intervenção voluntária na transmissão do direito, mas é sujeito passivo desse direito, abrangendo assim os direitos reais de garantia, tais como, o arresto, a penhora, a hipoteca judicial, etc.
Para justificar aquela exclusão, sustenta-se no citado AU que quando estão em causa dois direitos reais da mesma natureza, é justo que a segunda aquisição registada deva prevalecer sobre a primeira não registada. Por exemplo, perante dois compradores sucessivos do mesmo prédio, só o segundo tendo registado, “...a negligência, ignorância ou ingenuidade do primeiro deve soçobrar perante a agilidade do segundo, cônscio não só dos seus direitos, como os ónus inerentes”. Neste caso, a prioridade do registo ultrapassa a incompatibilidade dos direitos, desde que o adquirente que registou esteja de boa-fé.
Já quando estão em confronto, v.g., o direito real de propriedade não registado e o direito real de garantia resultante da penhora registada, permitir a prioridade do registo, mantendo a viabilidade executiva, quando, por via de embargos de terceiro, se denunciou a veracidade da situação, seria, no fundo, permitir que um direito de crédito (embora sob a protecção de um direito real de garantia) prevalecesse sobre um direito real, e seria permitir que o credor executasse bens de terceiro em situação não abrangida pela previsão dos artºs 818º do CPC[16] e 610º (ainda que o credor estivesse originariamente de boa-fé: ou seja, que, ao penhorar os bens não soubesse nem devesse saber que aqueles já haviam saído da esfera jurídica do devedor).
Estando então actualmente o conceito de terceiro restringido nos termos acima expostos, relembramos que, segundo tal doutrina, o exequente nunca é terceiro para efeitos de registo predial porque não adquiriu o seu direito com intervenção voluntária do titular inscrito (não há portanto aquisição de um mesmo transmitente comum) e, por isso, nem sequer há que apreciar se agiu de boa ou má-fé.
Não sendo a exequente/embargada terceiro, o direito anterior dos embargantes não registado pode pois ser-lhe oposto.
De onde resulta que os presentes embargos têm necessariamente de proceder, com o consequente levantamento da penhora que incide sobre o prédio urbano identificado na matéria de facto, como bem se decidiu na sentença recorrida.

*
IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, em consequência:
- Confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
***

Porto, 07 de Fevereiro de 2008
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Evaristo José Freitas Vieira
Manuel Lopes Madeira Pinto
_____________
[1]BMJ 111º-155 e 161.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, I, 3ª ed., 323.
[3] Galvão Teles, Contrato-Promessa de Compra e Venda, Parecer inserido na CJ-84-IV-8.
[4] Neste sentido, ver o Ac. deste Relação de 15.03.95, www.dgsi.pt.
[5] Ac. desta Relação de 12.01.98, www.dgsi.pt.
[6] Cfr. os Acs. do STJ de 26.06.84, 09.02.93 e 12.01.95, www.dgsi.pt.
[7] Cfr., entre outros, o Ac. da RC de 16.06.87, CJ-87-III-39.
[8] CPC Anotado, I, 323.
[9] Ac. desta Relação de 07.05.96, www.dgsi.pt.
[10] Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 19 e 19 vº.
[11] Neste sentido, ver, entre outros, os Acs. do STJ de 29.09.93, CJ/STJ-93-III-29, 18.05.94, CJ/STJ-94-II-111, 22.11.95, CJ/STJ-95-III-109 e 13.02.96, CJ/STJ-96-I-89, deste Relação de 07.04.92, CJ-92-II-230, da RC de 24.05.88, CJ-88-III-79, 26.06.90, CJ-90-III-62 e 05.05.96, CJ-96-2-7, e da RL de 14.01.93, CJ-93-I-105.
[12] V.g., Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 408 e segs., Antunes Varela e Henrique Mesquita, RLJ, Ano 127º, 20, Vaz Serra, RLJ, Ano 103º, 165, Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, II, 3ª ed., 94, e Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3ª ed., 161.
[13] Neste sentido se pronunciaram, entre outros, os Acs. do STJ de 17.02.94, CJ/STJ-I-105, desta Relação de 11.04.94, CJ-94-II-207 e da RL de 26.09.89, BMJ 389º-640.
[14] DR I Série-A, de 04.07.97.
[15] DR I Série-A, de 10.07.99.
[16] Actual artº 821º, nº 1.