Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0640507
Nº Convencional: JTRP00039267
Relator: CUSTÓDIO SILVA
Descritores: DEFENSOR
CO-ARGUIDO
Nº do Documento: RP200606070640507
Data do Acordão: 06/07/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 226 - FLS. 17.
Área Temática: .
Sumário: Um arguido não pode ser defensor de um co-arguido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão elaborado no processo n.º 507/06 (4ª Secção do Tribunal da Relação de Porto)

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Relatório
Do despacho de 14 de Junho de 2.005 consta o seguinte:
“Através dos requerimentos de fls. 126 e 130, vieram os arguidos arguir as seguintes irregularidades de inquérito:
a) conexão de processos fora das condições legais;
b) não aceitação da procuração que a arguida juntou aos autos conferindo poderes ao outro arguido para a representar no processo;
c) falta de notificação ao mandatário da arguida da decisão que determinou a junção ou apensação de processos;
d) falta de notificação ao defensor da arguida do despacho de acusação.
No essencial, pretendem que seja admitida a procuração passada pela arguida, ordenando-se que ao arguido, na qualidade de defensor daquela, sejam feitas as legais notificações.
Para o efeito, invocam a ilegalidade da decisão que ordenou a conexão de processos, com o propósito de, cessando esta, nada colocar em causa a legitimidade de intervenção do mandatário constituída pela arguida, arguido no processo cuja apensação foi decidida pelo Ministério Público.
São várias, portanto, as questões que devem apreciar-se:
I – saber se a conexão de processos foi operada fora das condições legais, pressupondo que, como se crê estar correcto, em tal caso está verificada uma irregularidade processual que, mesmo em inquérito, pode ser conhecida pelo tribunal;
II – saber se o arguido, sendo advogado, pode actuar simultaneamente no mesmo processo como defensor da co-arguida;
III – saber, em caso de resposta negativa a esta questão, se a arguida não pode ser assistida pelo defensor que escolheu;
IV – determinar as consequências das respostas às questões anteriores, em especial quanto às apontadas irregularidades.
I – Segundo resulta da douta acusação, e em síntese esquemática, nos autos está em causa a indiciação do estado civil de casados, aquando da renovação do bilhete de identidade, no mesmo dia e lugar, por pessoas que, tendo anteriormente contraído casamento entre si, no momento da declaração eram já divorciados.
Salta à vista que, em tal situação, o critério que preside à conexão de processos – o da economia processual e uniformidade de julgados – está verificado, pois é manifesto que os meios de prova numa e noutra situação são os mesmos e que a ausência de conexão pode implicar decisões contrárias para a mesma situação.
Importa, também, no entanto, que o caso tenha enquadramento em alguma das hipóteses previstas no art. 24º, n.º 1, do C. de Processo Penal, sendo indiscutível que a conexão foi determinada quando os processos se encontravam na mesma fase, como exige o n.º 2 da citada disposição legal.
Não decorre da acusação a prática dos factos segundo um plano e uma execução conjunta, necessários à comparticipação, a que se refere a al. c) do n.º 1 do art. 24º do C. de Processo Penal.
Estão verificados, porém, os dois requisitos que, segundo hoje se entende, na correcta interpretação desse preceito, são exigíveis para a conexão de processos ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art. 24º: I. a prática de diversos crimes por vários agentes em comparticipação ou na mesma ocasião ou lugar; II. sendo uns causa ou efeito de outros, ou destinando-se uns a continuar ou a ocultar os outros.
A ligação temporal e espacial dos factos em causa nos dois processos é evidente, face ao texto da acusação. E resulta do teor desta, para além disso, que os crimes têm a ligação funcional a que se refere o aludido ponto II., visto que sem a prática do crime (indiciado) por um dos arguidos, muito mais facilmente seria descoberto o cometimento da infracção (indiciada) pelo outro.
Neste sentido, e de modo ainda mais abrangente para fundamentar a conexão, referindo-se à forma alternativa das diversas hipóteses configuradas na al. d), depõe igualmente a doutrina (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 12ª ed., p. 146).
II – De acordo com o disposto no art. 62º, n.º 1, do C. de Processo Penal, o arguido pode constituir advogado em qualquer altura do processo.
Trata-se de emanação do direito constitucional à escolha de defensor (art. 32º, n.º 3, da Constituição ...), garantia directamente aplicável e cuja limitação, nos termos da Lei Fundamental, apenas pode ocorrer na medida do necessário para tutela de outros direitos análogos salvaguardados na Constituição ... (art. 18º, n.ºs 1 e 2).
O direito consagrado na Constituição da República Portuguesa não comporta excepções.
No entanto, uma tem sido admitida, pelos Tribunais Superiores, inclusivamente pelo Tribunal Constitucional, no sentido de ser aceitável à luza da Lei Fundamental que, em lugar de escolher-se a si próprio, o arguido que seja advogado seja assistido por outro causídico (cfr. acs. do T. C. n.º 578/2001, in D. R., II Série, n.º 50, de 28 de Fevereiro de 2002, e do S. T. J., de 19 de Março de 1998, B. M. J., n.º 475, pág. 498; e, na doutrina, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, tomo I, 4ª ed., p. 316).
O primordial fundamento de tal excepção radica, no essencial, na circunstância de os poderes que por lei são atribuídos ao defensor não serem em muitas situações conciliáveis com a sua posição de arguido, embora também se saliente a existência de respeitáveis interesses do próprio advogado, no sentido de beneficiar de uma defesa conduzida de forma desapaixonada.
E essa incompatibilidade de posições entre defensor e arguido aplica-se inteiramente ao caso em apreciação, pelo menos na fase da audiência, bastando pensar na hipótese de o tribunal determinar, caso se realize o julgamento, a audição separada dos arguidos, nos termos do art. 343º, n.º 4, do C. de Processo Penal, pois em tal situação o defensor da arguida não assistiria às declarações por ela prestadas.
III. Tem toda a razão, pois, o Ministério Público, quando entende que a conexão de processos é incompatível com a escolha de um dos arguidos como defensor do outro.
No entanto, como se disse, o direito constitucional à escolha de defensor não comporta excepções, para além da referida.
A admitida excepção radica, face à forma como está estruturado o processo penal, numa restrição inevitável, para a realização do julgamento, à livre escolha do defensor, estando por isso materialmente justificada como indispensável, e na medida necessária, à tutela da realização da justiça, elemento inerente ao conceito de Estado de direito em que se baseia a Constituição (art. 18º, n.º 2).
Por outro lado, mais que excepção, ela configura com maior propriedade uma proibição de dispensa de patrocínio ou de ‘auto-representação’.
Por fim, abstractamente, a assistência por outro defensor não prejudica o arguido, mantendo ele incólumes os direitos processuais que lhe são reconhecidos pelo art. 61º do C. de Processo Penal, incluindo o de prestar declarações sobre os factos se e como melhor entender e o de escolher (outro) advogado para defensor.
No caso de a escolha de advogado ficar inviabilizada por força da conexão de processos, porém, não é isso que se passa.
Em primeiro lugar, os valores que a conexão de processos procura tutelar – economia processual e uniformidade de julgados – não têm assento constitucional e podem ser alcançados de forma diversa, mesmo em processos separados (com a utilização, por exemplo, de certidão da decisão que num dos processos seja primeiramente proferida), sendo certo que, sem a junção, a realização da justiça ainda se obtém.
A falta de eficácia da procuração, para além disso, traduz efectiva limitação no direito de escolha do defensor (consagrado no art. 32º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa), mesmo que o escolhido tenha todas as condições legais para o patrocínio judiciário, e não representa proibição de ‘auto-representação’, não podendo abonar-se na garantia de defesa desapaixonada que está na base da excepção admitida.
Enfim, essa limitação não é inerente à realização do julgamento, apenas uma implicação da decisão de proceder à conexão de processos.
Assim sendo, não nos parece materialmente fundada, à luza da Lei Fundamental, a limitação do direito de escolha do defensor que é reconhecido ao arguido, em consequência da conexão de processos, porque não é indispensável à realização dos interesses que esta visa tutelar e porque estes não se sobrepõem às garantias constitucionalmente atribuídas ao arguido.
De tal modo que, havendo realmente incompatibilidade entre a conexão de processos e o direito de escolha de advogado pelo arguido, por força dos ditames da Constituição, entendemos que é a primeira que deve ceder.
Noutros termos: a Constituição não permite, em nossa perspectiva, que o direito de escolha de advogado possa ficar limitado em consequência da conexão de processos, devendo o tribunal recusar a aplicação da norma que infrinja o Texto Fundamental (art. 204º).
Assim não deveria decidir-se, segundo pensamos, se a fase do processo, por força dos princípios que regem o segredo de justiça, também inerentes à realização do processo criminal e da justiça, obstasse a que o arguido num processo pudesse exercer noutro os direitos que lhe são atribuídos como defensor, mas essa hipótese já não se coloca, no caso dos autos, pois já foi deduzida acusação e a manutenção do segredo depende da vontade dos arguidos (art. 86º, n.º 1, do C. de Processo Penal).
Tal como não deveria prevalecer o direito do arguido se houvessem elementos que denunciassem suficientemente a ideia de que a escolha do advogado teria sido feita, precisamente, para obstar à conexão de processos, hipótese que igualmente não se coloca, no caso dos autos, visto que a procuração emitida pela arguida foi outorgada e junta ao processo antes da decisão que determinou a conexão, como resulta de fls. 66, 78 e 79
IV. Embora, por se referir ao inquérito, a prática das diligências necessárias para a cessação da conexão de processos pertença ao Ministério Público (art. 263º, n.º 1, do C. de Processo Penal), a verdade é que, formalmente, com a dedução da acusação se encerrou essa fase processual (art. 267º, n.º 1, do C. de Processo Penal).
Por isso, justifica-se aplicar à cessação da conexão o mesmo regime que tem sido perfilhado para a fase de julgamento.
Ora, segundo o ac. do S. T. J., de 30 de Abril de 1996 (embora proferido ao abrigo da redacção do Código de Processo Penal anterior à reforma que introduziu a al. e), disponível na base de dados da DGSJ na Internet, mantém inteira actualidade), «não se verificando a identidade de ocasião e lugar entre os factos imputados aos vários arguidos, justificativos da conexão de processos regulada no art. 24º do CPP de 1987, o tribunal, oficiosamente ou por requerimento (...) deve declarar-se incompetente para conhecer da infracção que não tenha sido cometida nas circunstâncias caracterizadoras (...) da conexão, declarando nula a parte respectiva da acusação, e ordenar o prosseguimento do processo, se for caso disso, para se conhecer da responsabilidade criminal da parte não afectada pela nulidade (...) – cfr. B. M. J., n.º 456, p. 297.
Importa, pois, para garantir a cessação da conexão, declarar nula a parte da acusação respeitante a um dos arguidos, mas porque existem indícios da responsabilidade criminal dele, e tendo em conta que os autos ainda não foram remetidos a juízo (para instrução ou julgamento), determinar se extraia certidão do processado, remetendo-o ao Ministério Público para dedução de acusação em processo autónomo.
Para esse efeito, seria injustificado recorrer aos critérios do art. 28º do C. de Processo Penal, mas esse recurso, no caso dos autos, é inviável, visto que ambos os crimes são punidos da mesma forma, não existem arguidos presos e foi o mesmo o local onde primeiro houve notícia das infracções.
Resta, por isso, atender à ordem de indicação dos arguidos que consta da acusação e, assim, determinar a instauração de processo autónomo em relação à arguida, prosseguindo estes autos apenas para averiguação da responsabilidade criminal do arguido.
Como em relação a este nenhuma irregularidade foi invocada, nada mais haverá a ordenar, sendo certo que o conhecimento dos vícios apontados em relação à arguida fica prejudicado, em função da decisão de determinar a cessação de processos e suas consequências.
Face ao exposto, decide o tribunal:
I. Declarar conforme às condições legais, previstas no art. 24 do C. de Processo Penal, a conexão de processos operada pelo Ministério Público.
II. Declarar, no entanto, nos termos do art. 204º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucional esse art. 24º do C. de Processo Penal, quando interpretado no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase processual subsequente à dedução da acusação, à escolha de um arguido, advogado, como defensor de outro arguido, através de procuração previamente junta aos autos, por violação das garantias de defesa do arguido em processo penal e do direito de escolha do defensor (art. 32º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa).
III. Determinar a cessação da conexão e, em consequência, declarar nula a douta acusação, na parte respeitante à arguida B…….., decidindo que, após trânsito, se extraia certidão de todo o processado, remetendo-a aos serviços do Ministério Público desta comarca para procedimento criminal contra tal arguida.
IV. Declarar prejudicado, face ao acima decidido, o conhecimento das demais irregularidades suscitadas pelos arguidos”.
Ministério Público veio interpor recurso, tendo terminado a motivação pela formulação das seguintes conclusões:
“1ª - A arguida B…….., aquando da sua constituição e interrogatório nessa qualidade, escolheu e constituiu como seu mandatário o Dr. C……, seu ex-marido e arguido no inquérito n.º 504/04.6 TAESP, que a assistiu durante essa diligência.
2ª - Na sequência das diligências de inquérito realizadas em ambos os processos-crime, o Ministério Público entendeu que existia uma conexão relevante entre os dois inquéritos, determinando assim que se organizasse um só inquérito, o que levou à incorporação do inquérito n.º 387/04.6 PRT, nos presentes autos, no qual era arguido o Dr. C……, mandatário da arguida B…… .
3ª - No que concerne à conexão de processos operada, é notório que os critérios que a determinaram estão verificados (harmonia, unidade e coerência do processamento, prevenção da contradição de julgados, salvaguarda dos direitos fundamentais dos sujeitos processuais, celeridade e economia processuais), uma vez que os meios de prova num e noutro caso são os mesmos e a separação de processos poderia implicar soluções contrárias para a mesma situação.
4ª - Estão igualmente preenchidos os requisitos do art. 24º, n.º 1, al. d), pois dos elementos probatórios constantes dos dois processos-crime resulta evidente a ligação temporal e espacial dos factos em causa («prática de diversos crimes por vários agentes em comparticipação, ou na mesma ocasião ou lugar»), bem como a ligação funcional existente entre ambos os crimes, visto que sem a prática da infracção por um dos arguidos, mais facilmente seria descoberto o cometimento do crime pelo outro («sendo uns causa ou efeito de outros, destinando-se uns a continuar ou a ocultar os outros»).
5ª - Por fim, a conexão de processos ocorreu dentro da mesma fase processual, ou seja, durante o inquérito, tal como determina o art. 24º, n.º 2, do C. de Processo Penal.
6ª - Em virtude da conexão de processos, foi a arguida notificada para vir aos autos constituir novo defensor, com a advertência de que não o fazendo ser-lhe-ia nomeado defensor oficioso pela Ordem dos Advogados.
7ª - No seguimento desta notificação e mais uma vez no exercício de um direito que lhe assiste, veio a arguida manter como seu mandatário o Dr. C……., juntando aos autos nova procuração para o efeito, não obstante ambos os arguidos saberem que não o podiam fazer, devido ao facto de esse concreto defensor ser co-arguido no mesmo processo-crime.
8ª - Antes de proceder à dedução da acusação contra os arguidos, o Ministério Público, considerando que os estatutos processuais de defensor e de arguido, reunidos simultaneamente numa única pessoa, eram incompatíveis, de acordo com a lei processual penal (arts. 64º, n.º 1, al. b), 63º, n.º 1, 61º, n.º 1, al. e), e art. 62º, n.º 2, todos do C. de Processo Penal), não sendo, por isso, possível ao arguido defender-se a si próprio em processo penal, nem tão-pouco o podendo fazer, por maioria de razão, em relação à arguida B……., oficiou à Ordem dos Advogados solicitando a indicação de advogado para desempenhar as funções de defensor oficioso dos arguidos, salvaguardando sempre a possibilidade de a arguida vir aos autos nomear outro mandatário.
9ª - A Ordem dos Advogados nomeou para defensor dos arguidos a Dr.a D……. .
10ª - A conexão de processos operada não violou o direito de escolha de defensor, consagrado no art. 32º, n.º 3, da Constituição.
11ª - A conexão de processos em nada prejudicou ou impediu tal escolha, pois a arguida poderia ter nomeado ou constituído o defensor que quisesse, exceptuando por razões óbvias o seu co-arguido.
12ª - À conexão de processos presidem não só interesses de economia e celeridade processuais, como também e sobretudo, ponderações subjacentes à realização da própria justiça, que se traduz num valor essencial ínsito no princípio de estado de direito, também ele consagrado constitucionalmente.
13ª - Não faz qualquer sentido que a insistência da arguida em querer como seu defensor o seu co-arguido prevaleça e determine a cessação da conexão, pondo em causa a descoberta da verdade e a realização da justiça, quando estes valores e aquele direito são perfeitamente conciliáveis.
14ª - O arguido não pode recusar a assistência de defensor ou de advogado, nos casos em que por lei essa assistência é obrigatória, pois ‘o interesse objectivo da realização da justiça por meios processuais adequados sobrepõe-se aos interesses subjectivos do arguido, sem prejuízo da sua defesa pessoal’.
15ª - O direito de escolha de defensor não é um direito absoluto, podendo e devendo, em certos casos como o presente, impor-se a obrigação de a defesa ser assegurada por um advogado diferente daquele que foi previamente escolhido pelo arguido, sem que tal imposição ponha em causa o cerne daquele direito constitucional ou afecte o seu direito de defesa.
16ª - A decisão proferida pelo M.mo Juiz a quo, ao fazer cessar a conexão de processos, viola o preceituado nos arts. 24º e 62º, ambos do C. de Processo Penal, e 32º da Constituição da República Portuguesa”.
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Fundamentação
O objecto do recurso é parametrizado pelas conclusões (resumo das razões do pedido) formuladas quando termina a motivação, isto em conformidade com o que dispõe o art. 412º, n.º 1, de C. de Processo Penal – v., ainda, o ac. de S. T. J., de 15 de Dezembro de 2.004, C. J., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 179, ano XII, t. III/2.004, Agosto/Setembro/Outubro/Novembro/Dezembro, pág. 246.
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Há que, então, definir qual a questão que se coloca para apreciação e que é a seguinte: o art. 24º do C. de Processo Penal, quando interpretado no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase processual subsequente à dedução da acusação, à escolha de um arguido, advogado, como defensor de outro arguido, através de procuração previamente junta aos autos, é inconstitucional por violação das garantias de defesa do arguido em processo penal e do direito de escolha do defensor, previstas no art. 32º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa?
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Eis os elementos (de facto) que, por relevantes, estão assentes:
A 2 de Novembro de 2004, B……. conferiu, por documento particular, mandato judicial a Lic. C…… .
A 15 de Novembro de 2004 foi B…… constituída arguida.
Por despacho de 18 de Janeiro de 2005, foi pelo Ministério Público determinada a incorporação dos autos de inquérito n.º 387/04.6 P6PRT nos n.º 504/04.6 TAESP, por se estar face ao caso de conexão previsto no art. 24º, n.º 1, al. d), do C. de Processo Penal, sendo que naqueles era arguida B……. e nestes era arguido o Sr. Advogado a quem esta havia conferido aquele mandato judicial (Lic. C…….. ).
Neste mesmo despacho foi ordenada a notificação da arguida para “constituir novo mandatário”, exactamente porque aquele era arguido nestes últimos autos de inquérito.
A arguida veio juntar um outro instrumento através do qual conferiu o mandato judicial, mas relativamente ao mesmo Sr. Advogado.
A 8 de Abril de 2005 foi deduzida acusação contra ambos os arguidos, imputando-lhes o crime de um crime de falsificação de estado civil (art. 248º, al. b), do C. Penal) e foi determinado que se oficiasse à Ordem dos Advogados no sentido da indicação de defensor para os mesmos, que, desde logo, e nada dizendo os arguidos, se nomeou.
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Apreciemos, então, a questão.
É seguro: a verificação, em concreto, do caso de conexão de processos previsto no art. 24º, n.ºs 1, al. d), do C. de Processo Penal (que, se bem vemos, o despacho sob recurso considerou ser o contido no art. 24º, n.º 1, al. b), do C. de Processo Penal), é ( porque não posta em causa pelo recurso que ora se conhece ) pacífica.
Sucede que no processo então organizado a arguida (B…….) conferiu mandato judicial ao arguido (Lic. C……..).
O despacho sob recurso, e em relação a este específico aspecto, não deixou de consignar (em coerência com os seus fundamentos) três certezas: a primeira, foi a de que, rebus sic stantibus, esse mandato judicial não podia deixar de ser insubsistente (como incompatibilidade o considerou); a segunda foi a de que não podia retirar-se à arguida o direito de conferir ao arguido mandato judicial, tal como se acolhe no art. 32º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa; a terceira foi a de que, nesta medida, somente pela cessação da conexão, com a consequente separação de processos, esse direito podia ser exercido (para o que propendeu através da declaração da inconstitucionalidade da interpretação do art. 24º, n.º 1, al. b), do C. de Processo Penal, que determinasse a impossibilidade de exercício desse direito; em jeito de nota, cabe deixar esta questão, unicamente como princípio de reflexão: por qual razão se não procedeu em conformidade com o disposto no art. 30º, n.º 1, al. a), do C. de Processo Penal, sopesando, decisivamente, em coerência, haver um interesse ponderoso e atendível da arguida? ).
Mas será que as coisas são ( ou têm de ser ) assim?
Temos para nós que não.
O art. 32º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, estatui:
« O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória ».
Temos por evidente que esta prescrição se assume, definitivamente, como expressão e concretização das garantias de defesa que um processo criminal deve assegurar.
Ora, e então, será que, sempre, tem o arguido esse direito, ou por outras palavras, que, em certas e precisas (contidas, mesmo) circunstâncias, não pode o mesmo direito ser comprimido, de forma, claro, que não corresponda a uma diminuição considerável (logo, constitucionalmente censurável) das garantias que um processo dessa natureza tem de assegurar?
A resposta não pode deixar de ser negativa, até porque são essas mesmas garantias que o demandam.
A propósito de essa escolha, digamos assim, recair em si mesmo, teve oportunidade de se pronunciar o ac. do Tribunal Constitucional de 18 de Dezembro de 2001 ( n.º 578/01 ), in http://www.tribunalconstitucional.pt:
« Efectivamente, a tese do recorrente só seria de aceitar se se partisse de uma posição de harmonia com a qual, sendo o arguido um advogado (regularmente inscrito na respectiva Ordem ), a sua “auto-representação” no processo criminal contra si instaurado representasse, de modo objectivo, um melhor meio de se alcançar a sua defesa e se a lei processual penal não reconhecesse ao arguido um conjunto de direitos processuais estatuídos, verbi gratia, no art. 61º, n.º 1, e 63º, n.º 2, quanto a este último avultando o de poder, pelo mesmo arguido, ser retirada eficácia a actos processuais praticados pelo seu defensor em seu nome, se assim o declarar antes da decisão a tomar sobre tal acto.
E é justamente dessa posição que se não pode partir.
Não se nega que, na óptica (naturalmente subjectiva) do recorrente, este possa entender que a sua defesa em processo criminal seria melhor conseguida se fosse prosseguida pelo próprio na qualidade de “advogado de si mesmo”, do que se fosse confiada a um outro advogado.
Só que, como este Tribunal já teve oportunidade de salientar (cfr. ... Acórdão n.º 252/97 ), “’há respeitáveis interesses do próprio interessado, a apontar para a intervenção do advogado, mormente no processo penal’, sendo certo que, ‘mesmo no caso de licenciados em Direito, com reconhecida categoria técnico-jurídica, a sua representação em tribunal através de advogado, em vez da auto-representação, tem a inegável vantagem de permitir que a defesa dos seus interesses seja feita de modo desapaixonada’”, ou, como se disse no Acórdão n.º 497/89 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º volume, 227 a 247), “mesmo relativamente aos licenciados em Direito (enquanto parte) se pode afirmar, com Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, p. 85 ), que ‘às partes faltaria a serenidade desinteressada (fundamento psicológico ) [ ... ] que se fazem mister à boa condução do pleito’”.
A opção legislativa decorrente da interpretação normativa em causa, que exige que o arguido, mesmo que advogado, seja defendido por um advogado que não ele, não se vê que seja contraditada pela Constituição.
O agir desapaixonado torna-se, desta arte e de modo objectivo, uma garantia mais acrescida no processo criminal, o que só poderá redundar numa mais valia para as garantias que devem ser perseguidas pelo mesmo processo, sendo certo que, como se viu acima, ao se não poder silenciar a corte de outros direitos consagrados ao arguido pela lei adjectiva criminal, isso redunda na conclusão de que se não descortina uma diminuição constitucionalmente censurável das garantias que o processo criminal deve assegurar ».
Ora, se isto é assim em casos como aquele sobre que recaiu esse aresto do Tribunal Constitucional, por maioria de razão ( se um arguido não pode ser defensor de si mesmo, também o não pode ser de outro arguido ) deve ser no caso em apreço, em que num mesmo processo, um dos arguidos confere mandato judicial a outro ( e de tal maneira as coisas são, nesta perspectiva, evidentes, mesmo, óbvias, que no despacho sob recurso se escreveu somente, como se sabe, que tal situação é incompatível em termos de um arguido ser defensor do outro).
É que, aqui, refira-se em exabundância, até as normas que regem sobre o arguido e o seu defensor (arts. 52º a 67º do C. de Processo Penal ) são claríssimas ( sem necessidade, portanto, de qualquer interpretação) quanto à completa demarcação entre o estatuto processual de um e do outro.
Ademais, não se pode esquecer que as garantias de defesa do arguido, que como acima se viu, se alcançam, também, com o direito de escolha do defensor, não são unicamente estabelecidas em favor daquele, tendo como propósito, igualmente, o bom funcionamento da justiça, como nos diz Cavaleiro de Ferreira, in Curso de Processo Penal, vol. I, 1.995, págs. 156/157, a obtenção das finalidades próprias do processo penal, que se materializam com a realização da justiça e da descoberta da verdade material, e aquele e estas estariam, em casos tais, acentuadamente (se não, mesmo, completamente), postos em causa.
Mas não será, então, que as coisas se modificam com a separação dos processos, decorrente da cessação da conexão?
Não vemos que assim seja.
É que não podemos esquecer, desde logo, que os arguidos continuam a ser, em relação a uma mesma prática criminosa (cuja configuração em termos de substância é a dos círculos concêntricos, sem que se nos depare, nela, qualquer sentido centrífugo; dito de outro modo, a forma do crime, em relação aos arguidos, permanece rigorosamente igual), os mesmos, somente divergindo, então, uma certa perspectiva formal, qual seja a da inexistência de uma unidade processual.
Mas mesmo nesta hipótese, a realidade não é totalmente cortada (veja-se o impedimento e seu específico recorte constante do art. 133º, n.ºs 1, al. a), e 2, do C. de Processo Penal).
Depois, e agora na perspectiva das garantias de defesa de que aquela prescrição, como se disse, é emanação, certamente que se não pode questionar que as mesmas, à partida, e em tese, não são (ou podem ser) realizadas, com segurança bastante, quando alguém confere mandato judicial a advogado que se indiciou ter participado na prática criminosa que se imputa àquele.
E de tal maneira as coisas assim são que não deixamos de ver este aspecto como que demonstrado por normas estatutárias, que, se bem vemos, não aconselhava (impunha, mesmo, que em circunstâncias tais o segundo não se disponibilizasse para que o primeiro lhe conferisse mandato judicial), sendo elas as que regem os impedimentos (art. 78º, n.º 1), a independência (art. 84º), os deveres para com a comunidade (art. 85º, n.º 1), os princípios gerais nas relações com os clientes (art. 92º, n.º 2) e os conflitos de interesses ( art. 94º, n.º 1, este e aqueles do Estatuto da Ordem dos Advogados ).
É claro que este aspecto das coisas acarreta uma compressão do direito contido naquele art. 32º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
Só que se configura numa compressão, digamos assim, positiva para as ditas garantias de defesa e que corresponde, não a imposição de qualquer defensor, mas a exclusão de um determinado, que, nas circunstâncias, se impõe que tenha lugar, sob pena de as normas constitucionais, desta natureza, se verem numa perspectiva praticamente absoluta, logo formal e esvaziadas de conteúdo, propendendo por ver, sempre, nas perspectivas completamente subjectivas aquelas que melhor se adequam, a final, às ditas garantias de defesa.
Dito isto, a conclusão impõe-se: a interpretação dada ao art. 24º ( n.º 1, al. d), ou b) ) do C. de Processo Penal no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase processual subsequente à dedução da acusação, à escolha de um arguido, advogado, como defensor de outro arguido, através de procuração previamente junta aos autos, não padece de inconstitucionalidade por violação das garantias de defesa do arguido em processo penal e do direito de escolha do defensor, previstos no art. 32º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
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3. Dispositivo
Concede-se provimento ao recurso e, em consequência, não se declara a inconstitucionalidade da interpretação dada ao art. 24º ( n.º 1, al. d), ou b) ) do C. de Processo Penal no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase processual subsequente à dedução da acusação, à escolha de um arguido, advogado, como defensor de outro arguido, através de procuração previamente junta aos autos, por violação das garantias de defesa do arguido em processo penal e do direito de escolha do defensor, previstos no art. 32º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa, com o que se revoga o despacho sob recurso no segmento que afirmou o juízo de inconstitucionalidade que se acabou de não acolher e, consequentemente, naquele outro que determinou a cessação da conexão dos processos, com o respectivo consectário (nulidade da acusação, na parte respeitante à arguida B…….), e o não conhecimento “das demais irregularidades suscitadas pelos arguidos” (conhecimento que agora, na medida do ajustado, é necessário).

Porto, 07 de Junho de 2006
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva
Arlindo Martins Oliveira
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob