Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0743233
Nº Convencional: JTRP00040641
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
OFENSAS CORPORAIS POR NEGLIGÊNCIA
OMISSÃO
Nº do Documento: RP200710100743233
Data do Acordão: 10/10/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 281 - FLS 02.
Área Temática: .
Sumário: Comete, por omissão, o crime de ofensa à integridade física por negligência do nº 1 do art. 148º do Código Penal aquele que passeia com um seu cão da raça “pastor alemão” num local público, onde também passeiam outras pessoas, e não impede, por falta de cuidado, que o cão salte sobre uma dessas pessoas, provocando-lhe ferimentos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

Nos autos supra em epígrafe identificados, foi deduzida acusação pública imputando ao arguido B………. a prática de factos susceptíveis de integrar o tipo legal de crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148°/1 do Código Penal e da contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 14°/1, alínea b) do Decreto Lei 314/2003, de 17 de Dezembro.
Por sua vez, o assistente/demandante cível C………. deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 5.000,00, metade a título de danos patrimoniais, lucros cessantes pela incapacidade para o trabalho, e metade a título de danos não patrimoniais.
A final veio a ser proferida sentença, que julgou improcedentes, quer a acusação pública, quer o pedido de indemnização civil.

I. 2. Inconformado com o assim decidido, recorreu o assistente e demandante cível, apresentando, as seguintes conclusões:

1. na altura dos factos, o cão não estava atrelado;
2. o cão mordeu no ofendido;
3. como ficou provado e decorre do senso comum, a mordidela de que foi alvo provocou dores e incómodos ao ofendido;
4. a situação só ocorreu porque o arguido não tomou as medidas necessárias para que tal não acontecesse;
5. nomeadamente não colocou trela, nem açaimo;
6. o arguido, mesmo com trela, deveria ter segurado no cão e interposto a sua pessoa entre o animal e os transeuntes, no caso o ofendido;
7. deste modo, face às circunstâncias concretas e previsíveis para o dono de um cão deste porte e às próprias circunstâncias concretas do local, aliadas à capacidade de diligência de um cidadão médio, o arguido não conseguiu, em segurança, fazer com que o seu canídeo não atingisse fisicamente o ofendido;
8. a sentença recorrida não se pronunciou sobre a acusação da prática da contra-ordenação p. e p. pelo art. 7°/2 do DL 314/2003;
9. a sentença recorrida violou os artigos 148º/1 C Penal, 483º e ss. e 562º do C Civil em virtude dos artigos 71º e 129º C Penal e ainda o artigo 410º/1 C P Penal.

I. 3. Respondeu o Digno Magistrado do MP, na 1ª instância, pugnando pela improcedência do recurso.

I. 4. Respondeu, ainda, o arguido, sustentando as seguintes conclusões:
1. o tribunal a quo absolveu o arguido da prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148º/1 C Penal e de uma contra ordenação, p. e p. pelo artigo 14º/1 alínea b) do Decreto Lei 314/2003 de 17 de Dezembro;
2. Tal decisão foi tomada tendo em atenção o depoimento do assistente testemunha de acusação, contraditórios com os testemunhos do arguido e restantes testemunhas de defesa;
3. da acareação da testemunha de acusação com a testemunha de defesa J………., não chegou o Tribunal "a quo" a qualquer conclusão, porque ambos permaneceram contraditórios;
4. não podia o Tribunal proferir outra decisão que não a de absolver o arguido, uma vez que a versão da defesa relativamente aos acontecimentos a serem julgados mostrou-se, de facto, mais credível;
5. os depoimentos das restantes testemunhas de defesa, foram convincentes e esclarecedores, não tendo sido postos em causa pelo assistente na motivação do seu recurso;
6. ficou provado, também, não ter praticado o arguido a contra ordenação pela qual vinha acusado;
7. deste modo a decisão proferida pelo Tribunal "a quo" foi a única possível, de molde a ser feita justiça.

II. Subidos os autos a este Tribunal o Exmo. Sr. Procurador Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, pugnando pela condenação do arguido como autor material de um crime de ofensa à integridade física por negligência.

No cumprimento do estatuído no artigo 417º/2 C P Penal, nada mais foi acrescentado.

Seguiram-se os vistos legais.

Procedeu-se a audiência de julgamento, com observância de todo o legal formalismo.

Cumpre agora apreciar e decidir.

III. Fundamentação

III. 1. Como é por todos consabido, são as conclusões, resumo das razões do pedido, extraídas pelo recorrente, a partir da sua motivação, que define e delimita o objecto do recurso, artigo 412º/1 C P Penal.
No caso presente, de harmonia com as conclusões apresentadas, suscitam o recorrente para apreciação, tão só, a questão da subsunção dos factos ao direito.

III. 2. Vejamos primeiro, a matéria de facto definida pelo Tribunal recorrido.

Factos provados.

No dia 22 de Outubro de 2005, pelas 16 horas, o arguido caminhava no passeio existente junto à Praia ………. com uma cadela, de raça "pastor alemão", de que era proprietário.
A cadela seguia junto ao arguido.
A dado momento, ao cruzar-se com o ofendido C………., que também se encontrava a passear nesse local, a cadela, de modo inesperado, saltou em direcção a C………., arranhando-o na parte dorsal da mão/pulso direita/o.
Em consequência de tal agressão, o assistente C………. sofreu “3 feridas superficiais na parte dorsal da mão direita”, conforme consta da declaração médica emitida pela clínica em que, logo de seguida, foi assistido. Tendo sido examinado posteriormente, no dia 28/10/05, relata o exame médico de fls. 27 que, se trata de “3 feridas fontiformes com cerca de 2,3 milimetros de diâmetro da face posterior e antebraço direito” as quais se supõe que devem ter acarretado, para a cura médico-legal, doze dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho
O arguido é casado e tem dois filhos a seu cargo; com quem vive, juntamente com a esposa, em casa própria, pagando de empréstimo para aquisição da habitação a quantia mensal de 650,00€.
É representante de electrodomésticos, recebendo comissão sobre as vendas, actividade em que aufere um rendimento mensal que ronda os 1500/1600 €.
O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais.

Factos não provados.

que a cadela não era conduzida à trela;
que a cadela mordeu o assistente;
que o arguido actou com falta de cuidado, violando elementares deveres de precaução e cautela,
que o arguido representou como possível que poderia colocar, como colocou, em perigo a integridade física de terceiros e, ainda assim, actuou da forma descrita, conformando-se com essa possibilidade;
que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei;
que o demandante tenha sofrido muitas e prolongadas dores;
que tenha tido de recorrer a medicamentos anti-inflamatórios, antibióticos e analgésicos;
que, ao ser mordido, tenha sido possuído pelo pânico;
que tenha tido profundas alterações do sono;
que o seu estado de ansiedade o tenha impedido de trabalhar durante dez dias.

Porque tal questão releva igualmente para a discussão do recurso, vejamos, também, o que em sede de fundamentação se deixou exarado no que concerne à convicção assim formada pelo Tribunal.

O Tribunal alicerçou a sua convicção probatória na apreciação crítica e articulada de toda a prova produzida em sede de julgamento, à luz das regras da experiência e do mais elementar senso comum.
Assim, e para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos, tomou-se em consideração as declarações e depoimentos prestados, em função das razões de ciência, das certezas e incertezas e ainda das lacunas, incoerências e demais inverosimilhanças, que transpareceram nesses mesmos depoimentos.
O Tribunal não ficou convencido, com aquela margem mínima de segurança exigível, de que a cadela não trazia trela, atenta a contrariedade de depoimentos nesta matéria, sem que se encontrem razões para privilegiar uma versão em detrimento de outra e, não obstante o Tribunal ter, oficiosamente, procedido a acareação, que se mostrou infrutífera.
O arguido e a testemunha D………., esposa que o acompanhava no passeio, asseguram que a cadela trazia colocada a trela de cerca de 1,20m. e como o passeio é estreito passaram uns lado a alado dos outros, altura em que a cadela lançou as patas ao ofendido, tendo-lhe feito os três arranhões na mão/pulso.
O assistente/demandante C………. e a sua namorada/amante E………. (que só a meio do depoimento e após várias insistências admitiu que mantém um relacionamento amoroso com o assistente) dizem que efectivamente passaram uns junto aos outros, mas referem que a cadela, naquele momento não tinha a trela colocada, que estava na mão da mulher do arguido.
Ambas as hipóteses são plausíveis, o que leva o Tribunal, atenta a inconcludência da actividade probatória levada a efeito a dar como não provado tal facto, tanto mais que a enfermeira que os atendeu na clínica afirma que tem ideia que, naquela altura, os ouviu comentar que a cadela trazia trela mas que o dono não a conseguiu segurar no primeiro impulso.
Onde o Tribunal definitivamente não pode dar crédito ao assistente e namorada é quando estes afirmam que ele foi mordido pela cadela, pois os arranhões que lhe foram observados são manifestamente incompatíveis com uma mordedura canina.
A enfermeira F………. e a médica G………. relataram que o assistente apenas apresentava 3 arranhões com 2 a 3 mm., que foram desinfectados com betadine e foram-lhe colocados 2 pensos rápidos, duas simples “curitas”, sendo que ao terceiro arranhão nem isso foi preciso colocar.
Tanto a referida enfermeira como a recepcionista relataram que o assistente aparentava estar perfeitamente calmo com a situação, pela sua falta de gravidade bem como pelo facto de saber que estava vacinado contra o tétano.
H………. e I………., que trabalhavam para o demandante, referiram, de modo pouco convicto e pouco convincente, que ele ficou incomodado com a situação.
Face à prova produzida é no mínimo absurdo o pedido de indemnização do demandante por alegada incapacidade para o trabalho pelo período de 10 dias, pouco compatível com o comportamento processual de quem litiga de boa fé.
Em suma a decisão probatória negativa derivou da ausência de produção de prova em julgamento, tendente a concluir-se de modo seguro pela verificação dos factos que foram dados como não provados e, bem ainda da prova de factos contrários a estes ou logicamente incompatíveis com estes.
Quanto ao circunstancialismo pessoal do arguido e ausência de antecedentes criminais revelaram as declarações do próprio bem como o respectivo CRC junto aos autos.

III. 3. Apesar de supra se ter afirmado que a única questão colocada na motivação se prendia com a irresignação do assistente pelo facto de o arguido ter sido absolvido – o que sendo verdade, não espelha na plenitude a sua real pretensão - do crime de ofensa à integridade física por negligência e por arrastamento, absolvido, igualmente, do pedido cível, pugnando agora o recorrente, pela sua condenação, em ambas as vertentes, certo é que para defender tal posição, o assistente, coloca em causa a decisão no tocante à matéria de facto, dada como não provada, invocando o artigo 410º/1 C P Penal, assim deixando transparecer a pretensão de que determinados factos dados como não provados, terão, necessariamente, que passar a ser dados como provados, para justificar e sustentar aquelas condenações.

Vejamos, então:

ao arguido eram imputados os seguintes factos.

No dia 22 de Outubro de 2005, pelas 16 horas, o arguido caminhava no passeio existente junto à Praia ………. com uma cadela, de raça "pastor alemão", de que era proprietário.
A cadela seguia junto ao arguido, não conduzida pela trela.
A dado momento, ao cruzar-se com o ofendido C………., que também se encontrava a passear nesse local, a cadela, de modo inesperado, saltou em direcção a C………., mordendo-o na parte dorsal da mão/pulso direita/o.
Em consequência de tal agressão, o assistente C………. sofreu “3 feridas superficiais na parte dorsal da mão direita”, conforme consta da declaração médica emitida pela clínica em que, logo de seguida, foi assistido. Tendo sido examinado posteriormente, no dia 28/10/05, relata o exame médico de fls. 27 que, se trata de “3 feridas fontiformes com cerca de 2,3 milimetros de diâmetro da face posterior e antebraço direito” as quais se supõe que devem ter acarretado, para a cura médico-legal, doze dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho
O arguido actou com falta de cuidado, violando elementares deveres de precaução e cautela.
O arguido representou como possível que poderia colocar, como colocou, em perigo a integridade física de terceiros e, ainda assim, actuou da forma descrita, conformando-se com essa possibilidade.
O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Produzida a prova, provou-se tão só que,

no dia 22 de Outubro de 2005, pelas 16 horas, o arguido caminhava no passeio existente junto à Praia ………. com uma cadela, de raça "pastor alemão", de que era proprietário.
A cadela seguia junto ao arguido.
A dado momento, ao cruzar-se com o ofendido C………., que também se encontrava a passear nesse local, a cadela, de modo inesperado, saltou em direcção a C………., arranhando-o na parte dorsal da mão/pulso direita/o.
Em consequência de tal agressão, o assistente C………. sofreu “3 feridas superficiais na parte dorsal da mão direita”, conforme consta da declaração médica emitida pela clínica em que, logo de seguida, foi assistido. Tendo sido examinado posteriormente, no dia 28/10/05, relata o exame médico de fls. 27 que, se trata de “3 feridas fontiformes com cerca de 2,3 milimetros de diâmetro da face posterior e antebraço direito” as quais se supõe que devem ter acarretado, para a cura médico-legal, doze dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho

e por isso resultou não provado, que

que a cadela não era conduzida à trela;
que a cadela mordeu o assistente;
que o arguido actou com falta de cuidado, violando elementares deveres de precaução e cautela,
que o arguido representou como possível que poderia colocar, como colocou, em perigo a integridade física de terceiros e, ainda assim, actuou da forma descrita, conformando-se com essa possibilidade;
que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

No seguimento deste julgamento sobre a matéria de facto se extraiu a conclusão, da improcedência da acusação pública, onde os factos tinham sido qualificados como susceptíveis de integrar o tipo legal de crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148º/1 C Penal e ainda a contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 14º/1 alínea b) do Decreto Lei 314/2003 de 17 de Dezembro.
O artigo 148º/1 C Penal, dispõe que, “quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Por sua vez o artigo 14º/1 alínea b) do Decreto Lei 314/2003, dispõe que, “constitui contra-ordenação, punível pelo presidente da junta de freguesia da área da prática da infracção, com coima cujo montante mínimo é de € 25,00 e máximo de € 3.740,00 ou € 44.890,00, consoante o agente seja pessoa singular ou colectiva, salvo se sanção mais grave lhe for aplicável por legislação especial … b) a falta de açaimo ou trela, nos termos do disposto no artigo 7º/2”.
Esta norma dispõe que, “é proibida a presença na via ou lugares públicos de cães sem estarem acompanhados pelo detentor e sem açaimo funcional, excepto quando conduzidos à trela, em provas e treinos ou, tratando-se de animais utilizados na caça, durante os actos venatórios”.

Decidiu, recentemente este Tribunal em 27.6.2007, no processo 2060/07 da 1ª secção, que “comete o crime p. e p. pelo artigo 148º/1 C Penal, o agente que previu que o seu cão, de raça Rottweiller, circulasse sozinho pela rua, seu açaimo ou qualquer vigilância, sem que tenha previsto, como podia e devia, que o mesmo poderia provocar, como provocou, lesões corporais no ofendido que circulava na via pública. No mesmo sentido havia decidido, anteriormente o Ac RG de 9.2.2004, in CJ, I, 296.

III. 4. Invocou ainda que imperfeitamente o recorrente a norma contida no artigo 410º/1 C P Penal, sem daí extrair, como estava obrigado, qualquer conclusão ou efeito.
Porventura tê-lo-á feito por inércia, pois que o artigo 410º C P Penal, é, seguramente, dos mais invocados em sede de recurso.
Mas é-o, na parte respeitante ao seu nº2 e não em relação ao seu nº. 1, que de resto, nunca tínhamos visto, antes, invocado.

Com efeito, dispõe o nº. 1 daquela norma que “sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”.
Por seu lado, o nº. 2, dispõe que, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) erro notório na apreciação da prova.

Como decidiu o STJ através do Ac. nº. 7/95 de 19.10, “é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no nº. 2 do artigo 410º C P Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
Os vícios contidos nesta norma traduzem-se sobretudo em deficiências na construção e estruturação da decisão e ou dos seus fundamentos, maxime na sua perspectiva interna, não sendo por isso o domínio adequado para discutir os diversos sentidos a conferir à prova.
Na sequência lógica destes pressupostos, a sua emergência, como resulta expressamente referido no artigo 410º/2 C P Penal, terá que ser detectada do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
Assim, ocorrerá insuficiência da matéria de facto provada, alínea a), quando da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo de condenação ou de absolvição.
A insuficiência da matéria de facto há-de ser de tal ordem que patenteie a impossibilidade de um correcto juízo subsuntivo entre a materialidade fáctica apurada e a norma penal abstracta chamada à respectiva qualificação, mas apreciada na sua globalidade e não em meros pormenores, divorciados do contexto em que se descreve a sucessão de factos imputados ao agente.
Por contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, alínea b), entende-se a omissão de 2 proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras ou falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo, diferem na quantidade ou na qualidade.
Para os fins desta norma, constitui contradição só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação, quando, de acordo com o raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados.
Já por erro notório na apreciação da prova, alínea c), deve-se entender aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente.
Verifica-se erro notório quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que normalmente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, tudo por forma susceptível de ser alcançada pelo cidadão comum minimamente prevenido ou, ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto, positivo ou negativo, contido no texto da decisão recorrida.

Como vimos já, na decisão recorrida julgou-se como não provado,
que a cadela não era conduzida à trela e que a cadela mordeu o assistente.
Ficamos então, sem saber se a cadela era ou não conduzida à trela, uma vez que a não prova de determinado facto, não implica necessriamente, a prova do facto contrário.
Nesta matéria ficamos sem facto algum; nem que era conduzida à trela, nem que não era conduzida à trela.
Ao contrário do constante da acusação, onde se referia que a cadela arranhou o assistente, deu-se como provado que a cadela arranhou o assistente.
Mais se julgou como não provado,
que o arguido tenha actuado com falta de cuidado, violando elementares deveres de precaução e cautela,
que o arguido tenha representado como possível que poderia colocar, como colocou, em perigo a integridade física de terceiros e, ainda assim, actuou da forma descrita, conformando-se com essa possibilidade e,
que o arguido soubesse que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Cremos bem com o devido respeito, por opinião contrária, que o julgamento destes 3 últimos factos, está viciado, inquinado.
Esta parte da decisão, ostenta uma manifesto erro notório, na apreciação da prova.
Os cães são animais, naturalmente perigosos. Uns mais que outros, seguramente. São-no, em função da sua envergadura, correspondente força física e carácter.
No caso estamos perante um pastor alemão, que é por definição um cão robusto, originário da Alemanha, de grande porte, pelagem preta, cinzento claro ou amarelado e orelhas pontiagudas, utilizado como cão de guarda, guia para cegos, mensageiro e rastreador, especialmente utilizado pelas forças policiais, nomeadamente para ajudar a controlar grandes massas humanas e movimentações de pessoas e concretamente para controlar e conter, motins., cfr. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa.
Esta última utilização, é sintomática do seu poder físico, da eficácia agressiva e do temor que os animais desta raça, infundem.
Sem embargo de se reconhecer que a perigosidade, pode ser diminuída através de um rigoroso adestramento e as suas manifestações, controladas, mediante restrições de ordem física, de que constituem um bom exemplo, o recurso a trelas e açaimes.
Com efeito, resulta, do senso comum, é evidente mesmo para o homem comum, é facilmente perceptível para um observador médio, que em relação a alguém que transita com a sua cadela, de raça “pastor alemão”, no passeio junto à praia, que, a dado momento ao cruzar-se com alguém no mesmo passeio, salta em direcção a este arranhando-o na parte dorsal da mão/pulso, direitos, não se pode concluir, sem mais, sem prova específica, pormenorizada e parcimoniosa, que levasse em consideração aspectos particulares, atinentes ao contexto e envolvente dos factos, ou atinentes a particularidades subjectivas de qualquer dos intervenientes, que, de todo se não provaram, que não se provou que o dono do cão tenha actuado com falta de cuidado, violando elementares deveres de precaução e cautela, que tenha representado como possível, a colocação em perigo da integridade física de quem ali passasse e se tenha conformado com tal eventualidade, como da mesma forma, que soubesse que tal conduta era contrária ao direito.

Este derradeiro facto, de resto, a ignorância da lei ou sobre a proibição, não escusa ninguém, como é princípio geral do direito.

Quanto aos restantes 2, cremos que a conclusão da sua não prova, é logicamente inaceitável, em face dos factos provados.
A conclusão da sua não prova, recorde-se que estamos perante os factos integradores da imputação subjectiva, que por definição é do foro intimo, inserida no âmbito de um processo racional e lógico, como será o do julgamento de factos em face das provas exibidas, resulta como ilógica, arbitrária e contraditória e, mesmo, notoriamente, violadora das regras da experiência comum, o que não deixa de ser facilmente, apercebido, de resto, pelo cidadão dito comum.
A conclusão de não prova daqueles factos, resulta, segura e manifestamente, como incompatível ou irremediavelmente contraditória com os factos provados.
A propósito da prova do elemento subjectivo, que não deixa de ser, porventura dos julgamentos mais difíceis de efectuar, em processo penal, se não resultar da afirmação do próprio agente, terá que ser conclusão, a extrair da materialidade objectiva apurada.

Esta conclusão, que vai de encontro à posição assumida pelo Sr. PGA, ao pugnar pela condenação do arguido pela prática do crime, por negligência, tem como pressuposto, que o elemento subjectivo, a omissão do dever de cuidado, a que o agente está obrigado e de que é capaz, tanto se pode verificar com o cão à trela, como não, tudo dependendo das circunstâncias concretas do caso, vg. amplitude e dimensão do lugar e características pessoais das pessoas e raça e temperamento do cão.
Como da mesma forma, mesmo, com o cão sem trela, pode-se não verificar os factos caracterizadores da negligência, igualmente, com o cão à trela, se pode afirmar a verificação da negligência. Tudo depende das circunstâncias do caso concreto. A existência da trela não sendo elemento decisivo, pode, apenas, configurar indício de que o acompanhante do cão tomou cautela com a sua presença.
Decidiu este Tribunal através do Ac. de 8.6.2005, in CJ, III, 210, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso que não comete este tipo de crime, “aquele que em terreno onde explora uma oficina, tem um cão preso a uma corrente, estando anunciada a existência do cão em, pelo menos 2 placas, com os dizeres “cuidado com o cão”, o qual veio a morder um individuo que ali se introduziu numa altura em que a oficina se não encontrava a funcionar e que assim, sofreu ferimentos”.

No caso, o que cremos, que bem evidencia a omissão de dever de cuidado, cautela e prudência, a que naturalmente o arguido estava obrigado e de que era capaz, é o facto de a cadela e o dono circularem num passeio, que permitiu o cruzamento, próximo, necessariamente, por definição do que possa ser um passeio, com o assistente, por forma a possibilitar que o animal o arranhasse.
Estes factos apenas podem ter ocorrido desta forma, porque o arguido não adoptou as cautelas necessárias, exigíveis e previsíveis, inerentes ao quadro que se lhe deparava, porque se o tivesse feito, o resultado não aconteceria, seguramente.

Perante a existência deste vício, nos termos do disposto no artigo 426º/1 C P Penal, o Tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento, se não for possível decidir da causa.
No caso, por ser possível conhecer da causa, na correcção do apontado erro notório na apreciação da prova, recupera-se os factos não provados, que acima se enunciou, erradamente julgados não provados em função do que a matéria de facto provada passa a ser a seguinte:

“no dia 22 de Outubro de 2005, pelas 16 horas, o arguido caminhava no passeio existente junto à Praia ………. com uma cadela, de raça "pastor alemão", de que era proprietário.
A cadela seguia junto ao arguido.
A dado momento, ao cruzar-se com o ofendido C………., que também se encontrava a passear nesse local, a cadela, de modo inesperado, saltou em direcção a C………., arranhando-o na parte dorsal da mão/pulso direita/o.
Em consequência de tal agressão, o assistente C………. sofreu “3 feridas superficiais na parte dorsal da mão direita”, conforme consta da declaração médica emitida pela clínica em que, logo de seguida, foi assistido. Tendo sido examinado posteriormente, no dia 28/10/05, relata o exame médico de fls. 27 que, se trata de “3 feridas fontiformes com cerca de 2,3 milimetros de diâmetro da face posterior e antebraço direito” as quais se supõe que devem ter acarretado, para a cura médico-legal, doze dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho.
O arguido actou com falta de cuidado, violando elementares deveres de precaução e cautela.
O arguido representou como possível que poderia colocar, como colocou, em perigo a integridade física de terceiros e, ainda assim, actuou da forma descrita, conformando-se com essa possibilidade.
O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

Definitivamente assente a matéria de facto, apreciemos agora se a mesma é susceptível ou não de integrar o tipo legal de crime de crime, bem como a contra-ordenação, imputada são arguido.

III. 4. Qualificação jurídico-penal dos factos.

A propósito da comissão de crimes, por acção ou, por omissão, no que ao caso interessa, dispõe o artigo 10º C Penal que “quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei”, nº1.
No nº. 2 dispõe-se que “a comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado” e o nº, 3, dispõe que “no caso previsto no nº. anterior, a pena pode ser especialmente atenuada”.
A acção, o resultado, a lesão na pessoa do ofendido, deu-se por acção do cão, que não do arguido, naturalmente.
O arguido não omitiu o dever objectivo de cuidado na realização da acção que causou o resultado, isto dado que a acção não lhe pertence, a si. A acção foi levada a cabo pelo seu cão, Entre o resultado causado pelo cão e o arguido, existe um nexo de imputação. Ao arguido incumbia a obrigação de vigiar o comportamento do seu cão e o dever jurídico de evitar o resultado.
Estaremos, então, perante a prática de um crime por omissão quando o não evitar de um resultado típico se pode equiparar à sua produção mediante um fazer positivo.
Os crimes por omissão, podem ser de omissão própria e de omissão imprópria. Naqueles é violada uma norma perceptiva, pela não realização de uma acção exigida por lei. Nestes, é violado o dever, imposto a quem esteja em posição de garante, de evitar um resultado típico, pelo que o garante é onerado com responsabilidade jurídico-penal pela verificação do resultado.
O caso sub judice será de integrar naquela segunda noção, de crime por omissão imprópria, sendo que o resultado típico, aqui, se imputa ao garante que não evitou a sua produção, como se o tivesse provocado mediante acção.
No caso, verificado:
a ocorrência de uma situação típica, passear o cão “pastor alemão”, num local público, num passeio junto à praia, onde, por definição, passam outras pessoas;
ausência de acção esperada e exigível por parte do dono, com capacidade para tal;
produção de um resultado típico, o acto de o cão arranhar o ofendido;
verificação de uma posição de garante por parte do arguido do resultado típico, conferida pelo estatuto de proprietário, acompanhante do cão na ocasião,
estaremos, sem margem para dúvida, perante a comissão por omissão, por parte do arguido, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, como vinha acusado pelo MP.

A perigosidade dos cães na via pública, foi assumida, originariamente através do Decreto Lei 317/85 de 2 de Agosto que estabelecia no seu artigo 6º, que é proibida a presença na via pública ou quaisquer outros lugares públicos de cães sem açaime funcional, excepto quando conduzidos à trela…
Posteriormente através do Decreto lei 276/2001 de 17 de Outubro, que diferenciava animal de companhia e a animal potencialmente perigoso e que estabelecia, como dever especial de cuidado do detentor, o de o vigiar por forma a evitar que o animal ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas.
Qualquer um destes conceitos, “animal potencialmente perigoso” e “dever especial de cuidado do detentor”, foram retomados no Decreto Lei 312/2003 de 17 de Dezembro.
Nesta tentativa de neutralização da perigosidade de determinados tipos e raças de animais, surge, a previsão da contra-ordenação, através do artigo 14º/1 alínea b) do Decreto Lei 314/2003, com a proibição da presença na via ou lugares públicos de cães sem estarem acompanhados pelo detentor e sem açaimo funcional, excepto quando conduzidos à trela, em provas e treinos ou, tratando-se de animais utilizados na caça, durante os actos venatórios”.

Assim, a verificação da factualidade típica da contra-ordenação, só por si, o que de qualquer forma não ocorre no caso, onde se julgou não provado que o cão não fosse conduzido à trela, permitia concluir, dado que pretendia evitar o resultado que veio a ocorrer, pela afirmação da negligência.
Em conclusão:
a conduta do arguido integra a previsão do tipo legal de crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148º/1 C Penal e não integra a previsão da contra-ordenação ao artigo 14º/1 alínea b do Decreto Lei 314/2003.

III. 5. A determinação da espécie e medida da pena.

A este crime corresponde a moldura penal abstracta de prisão até 1 ano, sendo o limite mínimo de 30 dias, ou pena de multa, cujo mínimo é de 10 dias, até 120 dias, sendo que a cada dia de multa corresponde uma quantia entre € 1.00 e € 498,80 que o tribunal fixa em função da situação económica do condenado e dos seus encargos pessoais, em conformidade com o disposto no artigo 47°/1 e 2 C Penal.
Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, artigo 70º C Penal, referindo o artigo 40º/1 C Penal, que a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

A escolha da pena, nos termos do artigo 70° C Penal, depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial, e será mediante uma apreciação dos elementos de prova disponíveis, que se legitimará uma escolha entre as penas detentivas e não detentivas.
No artigo 70° C Penal, condensa-se a filosofia subjacente ao sistema punitivo do Código, que embora aceitando a existência da prisão como pena principal para os casos em que a gravidade dos crimes ou de certas formas de vida a impõem, afirma-se claramente que o recurso às penas privativas de liberdade só será legitimo quando, dadas as circunstâncias, se não mostrem adequadas as sanções não detentivas”, cfr. Maia Gonçalves, in C Penal Português, 13ª ed. 247.
Neste tipo de ilícito criminal, de ofensa à integridade física, o bem jurídico protegido é a integridade física da pessoa humana.
O que se pretende punir é a ofensa no corpo ou da saúde, ou seja, toda a alteração ou perturbação da integridade corporal do bem estar físico ou da morfologia do organismo - ofensa ao corpo – ou toda a alteração ou perturbação do normal funcionamento do organismo – ofensa à saúde.

No caso, tendo presente a apontada qualificação jurídica dos factos e respectiva moldura penal abstracta, ponderando quer as exigências de prevenção especial de socialização, quer geral de integração, sem margem para dúvida que no caso, podemos concluir por que a opção pela pena não detentiva se mostra adequada e suficiente - dadas as apontadas circunstâncias do caso concreto, bem como a apurada personalidade do arguido, integrado em termos familiares e sócio-profissionais, sem antecedentes criminais - para satisfazer as necessidades de prevenção geral e especial, tendo em vista a recuperação social do arguido e o objectivo de dar satisfação às exigências de reprovação e de prevenção do crime.

Importa, então, agora determinar a medida concreta da pena não detentiva, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, artigo 71°/1 C Penal, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as circunstâncias enumeradas exemplificativamente, nas alíneas a) a f), do nº. 2 do citado artigo 71° C Penal.

Esta medida concreta da pena a aplicar ao arguido, tendo em atenção que a mesma assenta na “moldura de prevenção”, cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do quantum da pena imprescindível, no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, deve ser encontrada dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, artigo 71°/1 C Penal, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, artigos 40º/2 e 71°/1 C Penal.
Conforme salienta o Ac. do STJ de 11.5.2000, in CJ, S, II, 188 “a função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos, sem prejuízo da prevenção especial positiva, sempre com o limite imposto pelo princípio da culpa – nulla poena sine culpa. Citando o Ac. do STJ de 1.3.2000, in proc. nº. 53/200 – 3ª Secção, afirma-se no citado aresto, «a culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define em concreto, o seu limite mínimo absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está à finalidade principal de protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo; este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo de pena que, em concreto, ainda realiza, eficazmente, aquela protecção”.
Devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal, a pena tem de responder, sempre positivamente, às exigências de prevenção geral de integração. Continuando a citar, o mesmo Ac. do STJ de 1.3.2000, “se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura legal – a moldura da pena aplicável ao caso concreto - moldura de prevenção - há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social”.

Neste sentido, no caso sub judice, ponderando todo o descrito circunstancialismo, concretamente o mediano grau de ilicitude do facto, consubstanciado na sede e natureza das lesões, o facto de terem determinado consequências de diminuta gravidade, o facto de o arguido ter actuado com negligência, que constitui elemento do tipo, no caso ao permitir que a cadela saltasse na direcção do assistente, assim omitindo o dever geral de cuidado a que estava obrigado e de que era capaz e, ponderando, ainda, a circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais e tendo em atenção as suas condições pessoais e a sua situação económico-social, tudo consubstanciado nos factos seguintes: “a cadela arranhou o assistente na parte dorsal da mão/pulso direita/o; em consequência de tal agressão, o assistente C………. sofreu “3 feridas fontiformes com cerca de 2,3 milimetros de diâmetro da face posterior e antebraço direito” as quais se supõe que devem ter acarretado, para a cura médico-legal, doze dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho; o arguido é casado e tem dois filhos a seu cargo; com quem vive, juntamente com a esposa, em casa própria, pagando de empréstimo para aquisição da habitação a quantia mensal de 650,00 €; é representante de electrodomésticos, recebendo comissão sobre as vendas, actividade em que aufere um rendimento mensal que ronda os 1500/1600 €; não tem quaisquer antecedentes criminais”, julgamos adequada a pena de 75 dias de multa, à taxa diária de € 7.00.

Não obstante o nº. 3 do artigo 10º C Penal, já citado, prescrever que a pena pode ser especialmente atenuada, no caso, como o dos autos, em que o sobre o omitente recai o dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado, a única situação em que a comissão de um resultado por omissão é punível, o que tem subjacente o entendimento por parte do legislador de que, pode existir diferença objectiva da ilicitude entre as 2 formas de actuação no cometimento do crime, por acção e por omissão.
Como entende, Maia Gonçalves, in C Penal anotado, 17ª edição, 2005, 94, “a vida real fornece uma gama infinita de situações e, por isso, aquela diferença pode esbater-se ou até mesmo um caso concreto de omissão revelar elevado grau de ilicitude, não s devendo aqui fazer, uso da faculdade de atenuação especial”.
No caso, não obstante o grau de ilicitude, mediano, como acima o qualificamos, consubstanciado na natureza e gravidade das lesões, com diminutas consequências para a saúde do assistente e o grau de culpa, a título de negligência, porventura a aconselharem o recurso àquele expediente, cremos que, decisivamente, a necessidade da pena e consequentemente as exigências de prevenção, no caso, o desaconselham, vivamente.

III. 6. Apreciemos, agora o pedido cível formulado pelo assistente, através do qual pretende, a título de indemnização, a condenação do arguido no pagamento da quantia de € 5.000,00, metade a título de danos patrimoniais, lucros cessantes pela incapacidade para o trabalho, e metade a título de danos não patrimoniais.
Provado, então, no que a esta matéria se reporta, vem que:
a cadela, de raça "pastor alemão", de que era proprietário o arguido, qu ecom ela seguia, na ocasião, ao cruzar-se com o ofendido C………., de modo inesperado, saltou em direcção a este, arranhando-o na parte dorsal da mão/pulso direita/o.
Em consequência de tal agressão, o assistente C………. sofreu “3 feridas superficiais na parte dorsal da mão direita”, conforme consta da declaração médica emitida pela clínica em que, logo de seguida, foi assistido. Tendo sido examinado posteriormente, no dia 28/10/05, relata o exame médico de fls. 27 que, se trata de “3 feridas fontiformes com cerca de 2,3 milimetros de diâmetro da face posterior e antebraço direito” as quais se supõe que devem ter acarretado, para a cura médico-legal, doze dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho.
O arguido é casado e tem dois filhos a seu cargo; com quem vive, juntamente com a esposa, em casa própria, pagando de empréstimo para aquisição da habitação a quantia mensal de 650,00€.
É representante de electrodomésticos, recebendo comissão sobre as vendas, actividade em que aufere um rendimento mensal que ronda os 1500/1600 €.
O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais.

Não se provou que:

que o demandante tenha sofrido muitas e prolongadas dores;
que tenha tido de recorrer a medicamentos anti-inflamatórios, antibióticos e analgésicos;
que, ao ser mordido, tenha sido possuído pelo pânico;
que tenha tido profundas alterações do sono;
que o seu estado de ansiedade o tenha impedido de trabalhar durante dez dias.

Naturalmente, da mesma forma, com base no erro notório na apreciação da prova, se há-de aqui que recuperar, o facto de o assistente ter sofrido dores, ainda que não “as muito e prolongadas”, alegadas.

Quanto a danos de natureza patrimonial dano emergente, lucro cessante ou danos futuros, nada se provou.

Vejamos, no que concerne aos danos de natureza não patrimonial:
De harmonia com o estatuído no artigo 496°/1 C Civil, que rege sobre este categoria de danos, “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais, que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. E o seu nº 3, acrescenta que “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo, em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494°”.
O quantum indemnizatório correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado, sempre, “segundo critério de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular do direito à indemnização, aos padrões da indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda”, cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, I vol., 7ª ed., 601.
“A indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar, de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente”, ibidem, 602.
“A dificuldade de “quantificar” os danos não patrimoniais não pode servir de entrave à fixação de uma indemnização que procurará ser justa, correndo o risco, embora, de ser aleatória, tanto mais, que neste campo assume particular relevância a vertente da equidade”, cfr. Ac. RL de 15.12.94, in CJ, V, 135.
A reparação judicial dos danos ou prejuízos, na jurisdição criminal, quer para os danos patrimoniais, quer para dos danos não patrimoniais, deve ser determinada, quanto ao montante da indemnização, segundo o prudente arbítrio do julgador que atenderá à gravidade da infracção, ao dano material e moral por ele causado, à situação económica e à condição social do ofendido e do infractor.
Os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podendo ser reintegrados, mesmo por equivalência, ou seja, não visam reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento, mas sim compensar o lesado pelas dores e também sancionar a conduta do lesante.
A norma orientadora, artigo 494°/1 C Civil fornece elementos suficientes, ao julgador. A equidade funda-se, em suma, em razões de conveniência, de oportunidade e, principalmente de justiça concreta.
A reparação dos danos não patrimoniais, ou seja, o montante indemnizatório ao ser fixado equitativamente, deverá ter em consideração as circunstâncias apontadas no artigo 496°/3 C Civil e deve aproximar-se quanto possível dos padrões seguidos pela jurisprudência tendo em conta as flutuações da moeda e deve ser actual, aplicando-se aqui igualmente a regra do artigo 566º C Civil, que manda atender à data mais recente em que o facto é apreciado pelo Tribunal.
Equidade não é sinónimo de arbitrariedade pura e simples, mas sim um critério para a correcção do direito em ordem a que se tenha em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto.
Assim e, no caso concreto, atenta a materialidade acima descrita e o facto de naturalmente o assistente ter sofrido dores por causa das lesões, que sofreu por vida da omissão do arguido, em acautelar a sua cadela, do que resultaram as lesões superficiais supra descritas, que terão demandado, não é certo, este valor, 12 dias de doença sem incapacidade para o trabalho, “tendo em atenção que as indemnizações, em geral, não podem ser meramente simbólicas ou miserabilistas, pois visam compensar sofrimentos e frustrações, por meio de disponibilidade de certas quantias em dinheiro e que os tribunais, conscientes da natureza irremediável de muito grande número de situações, devem proceder a uma atribuição de montantes que, dado o nível de preços existente na sociedade actual, possam proporcionar, não propriamente prazer, mas talvez algum conforto, no sentido de compensar, pelo único modo possível, perdas afectivas e outros casos de grande sofrimento”, cfr. Ac. STJ de 2.7.98, consultável no site da dgsi., ponderando, assim, a apontada gravidade da infracção e também a situação económica, efectiva, no caso do arguido e desconhecida em relação ao assistente, à condição social daquele e tendo presente que a finalidade da indemnização por danos não patrimoniais é, não só compensar o lesado pelas dores e humilhação, mas, também sancionar a conduta do lesante, afigura-se-nos justo e equilibrado fixar em € 750,00 a indemnização a este título.

IV. DISPOSITIVO

Nestes termos e com os fundamentos mencionados, no

total provimento do recurso interposto pelo recorrente C………., quanto à matéria penal e,

parcial provimento quanto à matéria cível, em consequência, revogar a sentença recorrida, nos seguintes termos:

1. condena-se o arguido B………., enquanto autor material, por comissão por omissão, na forma consumada, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148/1° C Penal, na pena de 75 dias de multa à taxa diária de € 7.00, o que perfaz a multa global de € 525.00;

2. condena-se o arguido, demandado cível a pagar ao assistente, demandante cível, a quantia de € 750,00,

absolvendo-o do restante peticionado.

Custas da parte criminal pelo arguido fixando-se a taxa de justiça em 4 Uc,s e da parte cível, por demandante e demandado, na proporção do decaimento.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1º signatário.

Porto, 10 de Outubro de 2007
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
Olga Maria dos Santos Maurício
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
Arlindo Manuel Teixeira Pinto