Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6074/09.1TBMAI-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: REQUISIÇÃO DE DOCUMENTOS
CONTRAPROVA
DECLARAÇÃO DE IRS
Nº do Documento: RP201109196074/09.1TBMAI-A.P1
Data do Acordão: 09/19/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O meio de prova previsto no artigo 528.º do CPC, ou as informações prestadas ao abrigo do princípio da cooperação previsto no artigo 519.º do CPC, podem ser requeridos em relação a factos alegados pela parte requerente, a quem cabe o respectivo ónus de prova, ou até pela parte contrária, para efeitos de contraprova desses factos, já que por via do princípio da aquisição processual consagrado no artigo 515.º do CPC, é irrelevante para a decisão que o meio de prova provenha de uma ou outra parte.
II - As declarações de IRS pertencem ao foro da vida privada e familiar dos contribuintes, não devendo, em princípio, ser divulgadas, a não ser que o interesse prevalecente da administração da justiça o justifique, por em concreto se afigurar serem necessárias à boa decisão da causa (artigo 519.º, n.º 1 e 519.º-A, do CPC).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 6074/09.1TBMAI-A.P1 (Apelação)
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Maia (2.º Juízo de Competência Cível)
Apelantes: B… e outros
Apelado: C…, S.A.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
B… e outros, réus na acção declarativa, sob a forma de processo comum ordinário, intentada contra os mesmos por C…, S.A., notificados do despacho proferido em 18/03/2011, não se conformando com o conteúdo do mesmo na parte em que admitiu os meios de prova requeridos pelo autor nos pontos 6 e 7 do respectivo requerimento probatório, dele interpôs recurso de apelação.
No requerimento probatório em causa, maxime a fls. 249 e 250, o autor requereu, para além do mais, o seguinte:
“6.Requer a notificação dos Réus, nos termos do art.º 528º do C.P.C., para juntarem os seguintes documentos:
l) Notificação dos 3º a 6º Réus:
i. cópia do cheque ou cheques mediante os quais foi pago aos 1º e 2º Réus o preço declarado nas escrituras referidas;
m) Notificação das entidades bancárias sacadas (de onde alegadamente saíram os montantes para “pagamento” do preços) para informarem qual a entidade bancária e conta onde foram feitos os depósitos correspondentes, isto é, onde foram creditados os “pagamentos” dos preços;
n) Notificação dos 1º e 2º Réus:
ii. identificação das contas dos 1º e 2º Réus onde foram efectuados os “depósitos” das compras e vendas articuladas, e junção do documento comprovativo dos depósitos/recepção efectiva do dinheiro;
o) Notificação dos Réus, e notificação das entidades bancárias onde foram feitos os depósitos, para juntarem:
iii. extractos bancários ou declaração bancária dos bancos onde os Réus possuem contas, de que não foram feitos movimentos bancários/transacções naquelas contas iguais ou superiores a €490.000,00, no período de Dezembro de 2005 a Março de 2006, ou
iv. na hipótese de terem sido efectuados, quem emitiu e à ordem de quem foi emitido e transmitido esse valor para prova da matéria vertida nos quesitos 30º e 31º da base instrutória, dado que pode ter havido entrada e saída do dinheiro correspondente ao valor das compras para aparentar o pagamento dos preços.

7. Requer ainda a notificação dos Réus, também nos termos dos art.º 528º do C.P.C., para juntar aos autos os seguintes documentos:
p) cópia da sua declaração de I.R.S. e todos os anexos juntos, respeitantes ao ano de 2006 e 2007, para prova da matéria vertida nos quesitos 1 a 6 da Base Instrutória.”

Em apreciação do requerido, o tribunal a quo emitiu o seguinte despacho:
“Notifiquem-se os réus nos termos indicados a fls. 249 e 250 dos autos.
Prazo: 10 dias.
Obtidas as informações a prestar pelos réus, notifiquem-se as instituições bancárias que vierem a ser indicadas para prestar as informações mencionadas a fls. 249 e 250 dos autos.
Prazo: 10 dias.”

Inconformados, apelaram os réus, pugnando pela revogação do despacho na parte transcrita.
Nas suas contra-alegações, o apelado defendeu a confirmação do decidido.

Conclusões da apelação:
I. O despacho que admitiu os requerimentos efectuados pela Recorrida nos pontos 6 e 7 do seu requerimento probatório, ao abrigo do art.º 528.º, do Código de Processo Civil, deve ser revogado, ora porque o preceito em causa não admite o requerido pela Recorrida, ora porque não foram observadas as exigências nele preceituadas.
II. Tal como decorre expressamente da sua letra, o artº. 528º. do Código de Processo Civil contempla apenas e só a possibilidade de requerer a junção de documentos em poder da parte contrária e não, como pretende e requereu a Recorrida, a prestação de informações, sendo o meio próprio para este efeito o art.º 519.º, do CPC, que consagra o dever de cooperação para a descoberta da verdade.
III. Tal dever está, no entanto, limitado pela ideia de não exigibilidade, sendo a recusa legítima em certos casos, os quais não se circunscrevem às situações previstas no n.º 3, do art.º 519.º, do Código de Processo Civil, cujo núcleo é meramente exemplificativo.
IV. Neste contexto, não pode o dever em causa ir tão longe que obrigue uma parte a prestar informações processualmente desfavoráveis à sua posição.
V. No caso das informações requeridas às entidades bancárias, estas, nos termos dos arts.º 78.,º n.º 2, e 79.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, não podem revelar as informações solicitadas sem o consentimento dos respectivos clientes, não podendo serem estes forçados a renunciar ao direito ao sigilo bancário.
VI. A Recorrida, tendo efectuado o requerimento ao abrigo do art.º 528.º, do CPC, deveria ter especificado os factos que com os documentos e informações quer provar, sendo que, a sua falta quanto ao ponto 6, alínea l – i) e alíneas m), n) – ii, deveria determinar o indeferimento da prova requerida.
VII. A relevância da indicação dos factos reside na circunstância de só perante esta poderá o juiz ponderar o seu interesse para a decisão da causa e a idoneidade do documento para a sua prova;
VIII. A relevância da indicação dos factos prende-se também com outro aspecto - ao prever-se, no art.º 528.º, n.º 1, do CPC, que o “interessado” requererá a apresentação de documento pela parte contrária, especificando “os factos que com ele quer provar”, deixa-se absolutamente claro que o referido requerimento se destina a permitir produzir prova sobre factos cujo ónus é do requerente.
IX. Quanto ao ponto 6, alínea o), - iii e iv., não obstante a Recorrida ter indicado os factos que pretende provar, deve o requerimento de junção dos documentos e informações aí mencionados ser indeferido, pois que os factos em causa, constantes dos art.ºs 30.º e 31.º, da base instrutória, são factos articulados pelos Recorrentes na sua contestação, cujo ónus da prova, por isso mesmo, lhe incumbe, e, como tal, é a ela que cabe, pelo princípio do dispositivo, decidir se, quando e qual a prova que pretende apresentar a esse respeito.
X. No que diz respeito ao ponto 7 do requerimento probatório da Recorrida, não se vislumbra a pertinência e idoneidade da sua junção para a prova dos factos por si indicados, com grave intromissão na vida privada dos Réus.
XI. O despacho recorrido violou o disposto nos art.ºs 528.º e 519.º do Código de Processo Civil, e nos arts.º 78.º e 79.º do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objecto do Recurso:
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objecto do recurso nos termos dos artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC), redacção actual, sem prejuízo do disposto no artigo 660.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, importa decidir se o despacho que admitiu o requerimento probatório do autor, na parte impugnada, deve ser revogado.

B- De Facto:
A factualidade relevante para a apreciação do recurso consta do antecedente relatório.

C- De Direito:
O objecto do presente recurso reporta-se à apreciação o despacho que deferiu o requerimento do autor, através do qual requereu que o tribunal procedesse à notificação dos réus para juntarem aos autos determinados documentos de cariz bancário e fiscal, bem como informações de natureza bancária, com vista à posterior notificação das entidades bancárias para as mesmas juntarem informações sobre movimentos bancários relacionados com as compras e vendas referidas nos autos.
O tribunal deferiu o solicitado, ordenando, ainda, a notificação das entidades bancárias, obtidas que fossem as informações solicitadas aos réus.
Vejamos, então, os argumentos dos apelantes de forma a decidir se deve ser mantido ou revogado o despacho recorrido.
Defendem os apelantes, em primeira linha, que o artigo 528.º do CPC, ao abrigo do qual foi requerida a junção de documentos e a prestação das informações solicitadas, apenas se aplica à junção de documentos, sendo o meio próprio para a prestação de informações o artigo 519.º do CPC, que, de qualquer modo, defendem não ser de aplicar por não lhes ser exigível prestarem informações processualmente desfavoráveis à sua posição.
O raciocínio dos apelantes, salvo o devido respeito, não pode ser acolhido.
No concernente ao âmbito do artigo 528.º do CPC, é certo que o mesmo se reporta à notificação da parte contrária para apresentar nos autos a documentação que esteja na sua posse e, consequentemente, a coberto deste normativo o tribunal pode ordenar a respectiva junção.
Porém, não estando o tribunal adstrito à alegação das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, conforme prescreve o artigo 664.º do CPC, não estava impedido de deferir o requerido por aplicação de normativo diferente do invocado, quanto à prestação das requeridas informações.
Ora, tal como referem os apelantes, o artigo 519.º, n.º 1 do CPC, ao estabelecer o dever de todos, incluindo as partes, cooperarem de boa fé para a descoberta da verdade, aliado ao poder de direcção do processo e ao princípio do inquisitório (cfr. artigos 265.º, 266.º e 266.º-A, do CPC), concede ao juiz o poder-dever de providenciar pela obtenção das referidas informações, notificando os réus para as prestarem, exactamente nos termos prescritos no despacho recorrido.
Defendem, porém, os apelantes que esse dever de colaboração não lhe é exigível, por aplicação do n.º 3 do artigo 519.º, dado o seu carácter exemplificativo, considerando que as informações solicitadas são processualmente desfavoráveis à sua posição.
Sem descurar as regras dos ónus da prova emergentes do artigo 342.º do Código Civil, o que releva em face dos mencionados princípios processuais da colaboração, do inquisitório e da boa fé processual, é se os documentos ou as informações solicitadas pela parte à outra (ou a terceiro), por intermédio do tribunal, são ou não relevantes e adequadas à prova dos factos. E se o forem, deve ser deferido o requerido, sendo que não é indiferente em termos probatórios a recusa de colaboração conforme decorre dos artigos 530.º a 533.º do CPC e 344.º, n.º 2 do Código Civil (sem prejuízo, ainda, da possibilidade de sancionamento da conduta omissiva, se injustificada, por aplicação n.º 2 do artigo 519.º do CPC).
Sinteticamente dir-se-á que o meio de prova previsto no artigo 528.º do CPC, ou as informações prestadas ao abrigo do princípio da cooperação previsto no artigo 519.º do CPC, podem ser requeridos em relação a factos alegados pela parte requerente, a quem cabe o respectivo ónus de prova, ou até pela parte contrária, para efeitos de contraprova desses factos, já que por via do princípio da aquisição processual consagrado no artigo 515.º do CPC, é irrelevante para a decisão que o meio de prova provenha de uma ou outra parte.[1]
Também aduzem os apelantes que não podem ser forçados a renunciar ao direito ao sigilo bancário, autorizando as instituições bancárias a fornecerem as informações pedidas nos termos dos artigos 78.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31.12, o que justificaria, do mesmo modo, o indeferimento do requerido pelo apelado.
Contudo, não está em causa a renúncia dos apelantes ao sigilo bancário, pois se entenderem não prestar esse consentimento, as instituições bancárias seguramente não fornecerão as informações pedidas. Porém, existem meios de reacção por parte do autor, que só poderão ser accionados após a existência dessa recusa. Consequentemente, impedir que a mesma exista através do indeferimento do pedido de prestação de informação, colide obviamente com o direito da parte afectada com a invocação do sigilo bancário poder reagir de forma a superar essa recusa.[2] Daí que o argumento dos apelantes não possa ser acolhido.
Referem, ainda, os apelantes que o autor não mencionou, como lhe é exigido pelo artigo 528.º do CPC, os factos que visa provar com a junção dos documentos e informações solicitadas, já que apenas alude aos quesitos 30.º e 31.º da base instrutória no ponto 6., o), iv., do requerimento.
Essa observação corresponde à verdade, conforme decorre da leitura do requerimento em causa.
Contudo, a factualidade mencionada por referência àquele ponto, alínea a subalínea referida, não é diferente da matéria factual mencionada nas restantes alíneas e subalíneas do ponto 6. Na verdade, o que está em causa no requerimento do autor é apurar se os 1.º e 2.º réus receberam, por os 3.º a 7.º réus terem pago com recurso ao crédito, o valor das compras e vendas de imóveis que entre eles foram celebradas, matéria esta que está inserida, para além de outros, nos pontos 30.º e 31.º da base instrutória.[3]
Por conseguinte, ainda que implicitamente, deve entender-se que o autor cumpriu os requisitos previstos no artigo 528.º do CPC, sendo certo que, mesmo que se entendesse o contrário, não constituía motivo de indeferimento, mas apenas de aperfeiçoamento do requerido, com indicação dos factos a provar.
Por conseguinte, não vingam os argumentos dos apelantes relativamente à defesa do indeferimento do requerido no ponto 6 do requerimento em causa.
De igual modo importa concluir em relação ao ponto 7, através do qual o autor pretende que os réus juntem aos autos declarações de IRS relativamente aos anos de 2006 e 2007.
Na verdade, para além dos negócios celebrados deverem ser reflectidos em termos fiscais (nomeadamente para efeitos de tributação das eventuais mais-valias), as declarações fiscais não são, ab initio, irrelevantes em termos probatórios relativamente à matéria em discussão (seja na perspectiva da simulação ou da impugnação pauliana), por poderem contribuir para o conhecimento das possibilidades económicas dos vendedores e compradores dos imóveis em causa. Ou seja, é inegável que tais declarações fiscais constituem mais um elemento probatório relevante e necessário para apuramento da verdade material sobre os factos em discussão.
Deste modo, não obstante as declarações fiscais apresentadas junto da administração fiscal pertencerem ao foro da vida privada e familiar dos contribuintes, não devendo, em princípio, ser divulgadas, o interesse prevalecente da administração da justiça justifica, em sede de aferição da admissão de meios de prova, a notificação da parte para as apresentar em juízo, por em concreto se afigurar serem necessárias à boa decisão da causa (artigo 519.º, n.º 1 e 519.º-A, do CPC).[4]
Em conclusão, improcede a apelação, mantendo-se o despacho recorrido.
As custas devidas, dado o vencimento, ficam a cargo dos apelantes (artigo 446.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

Em síntese (n.º 7 do artigo 713.º do CPC):
I. O meio de prova previsto no artigo 528.º do CPC, ou as informações prestadas ao abrigo do princípio da cooperação previsto no artigo 519.º do CPC, podem ser requeridos em relação a factos alegados pela parte requerente, a quem cabe o respectivo ónus de prova, ou até pela parte contrária, para efeitos de contraprova desses factos, já que por via do princípio da aquisição processual consagrado no artigo 515.º do CPC, é irrelevante para a decisão que o meio de prova provenha de uma ou outra parte.
II. As declarações de IRS pertencem ao foro da vida privada e familiar dos contribuintes, não devendo, em princípio, ser divulgadas, a não ser que o interesse prevalecente da administração da justiça o justifique, por em concreto se afigurar serem necessárias à boa decisão da causa (artigo 519.º, n.º 1 e 519.º-A, do CPC).

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando o despacho recorrido.
Custas pelos apelantes.

Porto, 19 de Setembro de 2011
Maria Adelaide de Jesus Domingos
Ana Paula Pereira Amorim
José Alfredo de Vasconcelos Soares de Oliveira
_______________
[1] Veja-se neste sentido, Ac. RP, de 23.06.2005, proc. 0533134, em www.dgsi.pt e LEBRE DE FREITAS et al., Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º Coimbra Editora, 2001, págs. 400 e 401.
[2] Neste mesmo sentido, veja-se Ac. RC, de 20.04.2010, proc. 424/08.5TBNLS-A.L1, em www.dgsi.pt.
[3] O ponto 30.º tem a seguinte redacção: “Os preços aludidos em F), H) e J) foram pagos com recurso ao crédito e através de cheques e dinheiro?”. Por sua vez, ao ponto 31.º foi dada a seguinte redacção: “Sendo que a totalidade dos valores que titulam os preços foram depositados na conta bancária dos réus B… e D…?”.
Sublinha-se, ainda, que esta matéria provém da contestação dos próprios réus, razão pela qual nem sequer faz sentido a alegação de que a junção dos documentos e informações prestadas os coloca numa posição que processualmente lhes é desfavorável.
[4] Neste sentido, cfr. Ac. RL, de 12/0172010, proc. 5784/08.5TBCSC-A.L1-7, em www.dgsi.pt.