Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2001/05.3TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: SOARES DE OLIVEIRA
Descritores: EXTINÇÃO DA SOCIEDADE
OBRIGAÇÃO DE RESPONDER PELO PASSIVO SOCIAL
RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP201209102001/05.3TVPRT.P1
Data do Acordão: 09/10/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 163º DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Sumário: I - Após a extinção da sociedade, para que nasça para os seus sócios, de responsabilidade limitada, a obrigação de responder pelo passivo social é necessário que tenha havido, entre eles, partilha dos bens da sociedade.
II - A obrigação de responder pelo passivo social está limitada pelo valor dos bens recebidos pelos sócios.
III - Recai sobe o credor o ónus de provar que ocorreu essa partilha e qual o valor recebido, se da escritura de liquidação e extinção constar que a sociedade não tinha bens.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2001/05.3TVPRT.P1
Apelação n.º 427/12
T.R.P. – 5ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

1 -
B…, S.A., com sede na …, Rua ., nº ., …, Vila do Conde, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum ordinária, contra
C…, L.DA, tendo, entretanto, sido habilitados na posição processual desta demandada
1º D…, residente na Rua …, …, …, …, Sintra;
2ª E…, residente na Rua …, nº …, …, Matosinhos, e
3ª F…, L.DA, com sede na Rua …, …, …, …, Sintra, pedindo a sua condenação:
a pagarem-lhe a quantia de € 10.516,39, a título de indemnização contratual correspondente a 2018,5 quilos de café não consumidos; e
a pagarem-lhe a quantia de € 4.412,00 referente ao material publicitário e comparticipação publicitária, tudo no montante de € 14.928,38, a ser acrescido dos respectivos juros legais vencidos desde a data da interpelação, no montante de € 2.110,42, bem como em juros vincendos.
Alega, para tanto e em síntese, ser a A. uma sociedade que se dedica ao comércio, importação e exportação e produtos alimentares, nomeadamente café e actividades conexas;
que, no decorrer da sua actividade e quando ainda tinha a denominação G…, Limitada (Grupo B1…), celebrou com C…, Ldª, em 2 de Outubro de 2002, um contrato de fornecimento, com o teor de fls. 21 e ss., que aqui se dá por integralmente reproduzido;
que, através de tal contrato, esta sociedade se comprometia a consumir em exclusivo os produtos comercializados pela A., no seu estabelecimento comercial "H…", a quantidade mínima mensal de 35 quilos e pelo período necessário até consumir um total de 2 080 quilos de café;
que, através do mesmo contrato e como contrapartida das obrigações assumidas, colocou à disposição de tal sociedade diverso material, equipamento e comparticipação publicitária (€ 4.412,00), que tudo lhe devia ser devolvido uma vez terminado este contrato;
que fora acordado o pagamento pela Ré de uma indemnização à A. no montante de € 5,21 por cada quilo de café não consumido;
mais alega que a sociedade C…, L.da, deixou de cumprir com as suas obrigações contratuais, pelo que a A. rescindiu o contrato, exigindo o pagamento de € 10.516,39 (indemnização) e a restituição da comparticipação publicitária (€ 4.412,00).
2 –
Os RR. contestaram, tendo concluído pela improcedência da ação.
Alegaram para tal e em resumo que:
o contrato em causa se destinava unicamente ao estabelecimento comercial I…;
em consequência de acordo celebrado, em 6-11-2002, com J…, Ldª, cessou a sua atividade e encerrou aquele estabelecimento;
o estabelecimento I… só esteve em funcionamento até finais de Outubro, início de Novembro de 2002;
a C…, Ldª, cedeu a K…, Ldª, a sua posição no contrato celebrado com a A., o que comunicou à A., a quem devolveu todas as máquinas e todo o material publicitário descrito no Anexo 1 do contrato;
em 25-6-2003 foi outorgada a escritura de dissolução de C.., Ldª;
o incumprimento é imputável à K….
3 –
Os RR. requereram a intervenção principal provocada de K…, Ldª, pedido que veio a ser indeferido.
4 –
A A. replicou, tendo alegado que a ter existido a invocada cessão, esta nunca lhe foi comunicada, nem lhe deu o seu assentimento;
não exonerou a sociedade extinta;
e sempre forneceu crendo que estava a vender à sociedade extinta.
5 –
Foi dispensada a realização da Audiência Preliminar.
6 –
O processo foi saneado e ocorreu a seleção dos Factos já Assentes e dos que passaram a integrar a Base Instrutória.
7 –
Teve lugar a Audiência Final, que culminou com a Decisão de Facto (fls. 463-467).
8 –
Foi proferida Sentença em cuja parte dispositiva se lê:
Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, condenam-se os Réus habilitados D…, E… e "F…, L.DA" a pagar à Autora "B…, S.A." a quantia de € 10 516,39 (dez mil quinhentos e dezasseis Euros e trinta e nove cêntimos), a título de indemnização contratual, acrescida de juros de mora comerciais, vencidos desde a data de citação dos Réus, às sucessivas taxas legais divulgadas semestralmente por Aviso da Direcção-Geral do Tesouro na 2ª Série do Diário da República, e até efectivo e integral pagamento – absolvendo os Réus do demais contra si peticionado.”

9 –
Os RR. apelaram desta Decisão, tendo, nas suas Alegações formulado as CONCLUSÕES que se passam a transcrever:
«1. Na douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, os Recorrentes D…, E… e F…, Lda., na qualidade de sucessores habilitados da sociedade C…, Lda., foram condenados, a pagar à sociedade B…, S.A., a quantia de 10.516,39€, a título de indemnização contratual, acrescida de juros de mora comerciais, vencidos desde a data de citação dos Réus, às sucessivas taxas legais divulgadas semestralmente por Aviso da Direcção-Geral do Tesouro na 2ª Série do Diário da República, e até efectivo e integral pagamento, visto ter ficado provado o incumprimento contratual da extinta sociedade C…, Lda., no contrato de fornecimento celebrado com a ora Recorrida;
2. Conforme decorre da douta sentença recorrida, a condenação dos ora Recorrentes, no pagamento da quantia de 10.516,39€, a título de indemnização contratual, não se funda em actos praticados pelas suas pessoas, mas sim, na circunstância da sociedade C…, Lda., estar extinta, por dissolução, e nessa medida, ter sido substituída pelos seus sócios /liquidatários, à data da sua dissolução, atenta a aplicação analógica do artigo 371.º do Código de Processo Civil;
3. Com efeito, no dia 06 de Abril de 2007, a ora Recorrida intentou a presente acção declarativa de condenação contra a C…, Lda., com fundamento no incumprimento contratual daquela sociedade, tornado definitivo, no dia 28 de Janeiro de 2004 (data da comunicação da rescisão do contrato de fornecimento celebrado com a C…, Lda.), e esta sociedade, foi dissolvida e liquidada por escritura pública, datada do dia 25 de Junho de 2003 - tendo o registo da dissolução e do encerramento da liquidação sido efectuado no dia 24 de Julho de 2003, conforme decorre da fotocópia certificada da escritura de dissolução e da certidão emitida pela 3.ª Conservatória do Registo Comercial, juntas aos autos pelos Recorrentes, respectivamente, nos dias 01-03-2006 e 15-03-2006;
4. Atenta a data da rescisão contratual operada pela Recorrida e os factos dados como provados na douta sentença proferida, é patente que, à data da dissolução da C…, Lda., esta sociedade não tinha qualquer dívida relativamente à ora Recorrida, pelo que, a condenação efectuada pela douta sentença proferida no dia 25-10-2011, constitui passivo superveniente.
5. Nos termos do preceituado no n.º1 do artigo 163.º do Código das Sociedades Comerciais, “encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada.”
6. Esta norma é uma excepção ao consignado no n.º 3 do artigo 197.º do Código das Sociedades Comerciais, o qual consigna o “Princípio da Limitação da Responsabilidade dos Sócios”, relativamente às sociedades de responsabilidade limitada, como é caso “sub judice”;
7. Da articulação do n.º1 do artigo 163.º e do n.º 3 do artigo 197.º do Código das Sociedades Comerciais, resulta que, com a extinção de uma sociedade por quotas, por dissolução e liquidação, os antigos sócios não respondem de forma ilimitada pelas dívidas da sociedade, supervenientes à data da sua dissolução, mas, apenas até ao montante que receberam da partilha;
8. Na presente acção declarativa de condenação, a Recorrida nunca alegou, nem provou (conforme decorre dos factos dados como provados) que, aquando da dissolução da C…, Lda., esta sociedade tinha bens e que esses bens foram partilhados entre os seus sócios, ora Recorrentes, em detrimento da satisfação do seu crédito;
9. E, mesmo no incidente de habilitação, a Recorrida, apenas alegou que a C…, Lda., tinha sido dissolvida e liquidada por escritura pública, datada de 25 de Junho de 2003, sem que o passivo social, tivesse sido satisfeito;
10. E isto, certamente porque, como decorre da escritura pública lavrada no dia 25 de Junho de 2003, no Cartório Notarial de Odivelas, junta aos autos, aquando da dissolução da C…, Lda., foi liquidado todo o seu activo e o seu passivo, não tendo sido efectuada qualquer partilha entre os seus sócios, ora Recorrentes, por inexistirem bens a partilhar ou saldo de liquidação conforme decorre da fotocópia certificada da escritura de dissolução, junta aos autos pelos Recorrentes, no dia 01-03-2006;
11. Dado os factos supra mencionados serem constitutivos do direito consignado no n.º1 do artigo 163.º do Código das Sociedades Comerciais, cabia à Recorrida, o ónus de alegar e provar que os ora Recorrentes partilharam entre si, o património da C…, Lda., nos termos gerais do art.º 342º do Código Civil, salvo se, em concreto, se viesse a demonstrar terem os ora Recorrentes culposamente tornado impossível a prova à Recorrida, nomeadamente por violação ou não cumprimento das regras de registo e publicidade dos actos sociais, o que poderia, eventualmente, determinar a inversão do ónus da prova nos termos do n.º2 do art.º 344º do Código Civil, situação esta cuja apreciação não ocorre no caso em apreço;
12.No mesmo sentido do exposto no número precedente, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto, de 15-12-2010, o Acórdão da Relação do Porto, de 28-04-2009, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18-01-2011, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-06-2008 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-11-2007;
13. Sem prescindir, ainda que, por mera hipótese académica se entendesse estar em causa a aplicação da responsabilidade pessoal dos ora Recorrentes, nos termos do disposto no n.º1 do artigo 158.º do Código das Sociedades Comerciais, dado a dívida dos autos, ser pré-existente à extinção da referida sociedade, também cabia à Recorrida, o ónus de alegar e provar que, à data da dissolução da C…, Lda., a dívida dos autos já existia, que os ora Recorrentes agiram com culpa quando, indicaram que os direitos de todos os credores desta sociedade já estavam satisfeitos e que sociedade possuía bens, partilhados entre os ora Recorrentes;
14.No mesmo sentido do supra exposto, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto, de 26-05-2009, e o Acórdão da Relação de Guimarães, de 18-01-2011;
15.Não tendo a ora Recorrida alegado e provado, como lhe competia que, aquando a dissolução da C…, Lda., os ora Recorrentes partilharam entre si, o património da extinta sociedade, salvo o devido respeito, a douta sentença recorrida, nunca podia ter condenado os Recorrentes, a pagar à ora Recorrida, a quantia de 10.516,39€, a título de indemnização contratual, acrescida de juros de mora comerciais, vencidos e vincendos. E, muito menos, podia ter responsabilizado pessoalmente e indiscriminadamente todos os sócios da extinta sociedade C…, Lda.
16.De facto, em momento algum, a douta sentença proferida, menciona que os sócios apenas serão responsáveis até ao montante que eventualmente tenham recebido na partilha!
17. Isto, quando, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 197.º do Código das Sociedade Comerciais "só o património social responde para com os credores pelas dívidas da sociedade."
18.Ao decidir nos termos supra referidos, é patente que, a douta decisão impugnada violou o disposto no n.º1 do artigo 158.º, no nº2 do artigo 163.º e no nº3 do artigo 197.º do Código das Sociedades Comerciais.»
10 –
Terminam pedindo a revogação da Sentença recorrida.
11 –
Contra-alegando, formulou a Recorrida as CONCLUSÕES que, de seguida, se transcrevem:
«1ª Os R.R. apelantes foram habilitados para, em substituição da dissolvida e liquidada «C…, Lda», contestarem a acção contra esta instaurada.
2ª E foram habilitados por serem os seus sócios à data da sua dissolução e liquidação, constituindo-se, outrossim, seus liquidatários.
3ª Sucede que os R.R. apelantes, sócios da ré inicial, «C…, Lda», ao deliberarem dissolvê-la e liquidá-la não acautelaram o direito de crédito da A., aqui apelada.
4ª Preceitua o art.154º/1 do Código das Sociedades Comerciais (CSC) que “os liquidatários devem pagar todas as dívidas da sociedade para as quais seja suficiente o activo social”.
5ª Em anotação ao art.158º do mesmo código refere Raul Ventura, in Dissolução e Liquidação de Sociedades, Comentário ao Código das Sociedade Comerciais, Almedina, 1987, p.419/420, “O art.158º constitui sanção para uma das possíveis formas de violação do dever atribuído ao liquidatário no art.157º, nº2: os liquidatários deverão indicar expressamente no relatório que estão satisfeitos ou acautelados todos os direitos dos credores.
(…). Se o disposto nos arts.157º, nº2, for frontalmente violado, porque o liquidatário não indica expressamente no relatório que estão satisfeitos ou acautelados todos os direitos dos credores da sociedade, o liquidatário poderá ser responsável (…). A responsabilidade do liquidatário consiste no pagamento a esses credores insatisfeitos dos créditos que estes não puderam satisfazer contra a sociedade (…). Acresce, assim, à responsabilidade da sociedade a responsabilidade directa e pessoal do liquidatário, o que para este funciona como uma pena e para o credor como um reforço do seu crédito. Quando dizemos sociedade, pensamos tanto na pessoa colectiva, antes de extinta, como nos sócios que, depois de extinta a sociedade, são responsáveis pelo passivo superveniente, nos termos do art.163º”.
6ª Como se alcança dos autos e da decisão da matéria de facto, não consta que os R.R., ora apelantes, sócios e liquidatários da sociedade «C…, Lda», que tenham cumprido o dever ou ónus legal de elaboração de um relatório completo da liquidação onde deviam ter declarado expressamente que estavam satisfeitos ou acautelados todos os direitos dos credores e que os respectivos recibos e documentos estavam à disposição para exame.
7ª Além da violação do disposto no art.157º/1/2 do CSC, também não alegaram os R.R., sócios e liquidatários da sociedade «C…, Lda», nem provaram que não havia quaisquer bens ou direito da dissolvida sociedade para partilhar não tendo, por isso, havido qualquer partilha.
8ª As declarações prestadas pelos R.R. no documento notarial de dissolução e liquidação da «C…, Lda», de 25 de Junho de 2003, não satisfazem, minimamente, a injunção prevista no já referido art.157º/1/2 do CSC.
9ª Na alegação desta apelação vêm os R.R. dizer que, conforme foi por eles declarado na escritura notarial de 25-06-2003, não houve partilha do activo.
10ª Todavia essa alegação devia ter sido feita no momento processual próprio, na contestação à acção, não agora.
11ª Sendo que o ónus de provar a não existência de partilha cabe aos sócios liquidatários que fizeram a liquidação da sociedade dissolvida. Eles melhor do que ninguém sabem por que não a fizeram, mas sempre através do relatório exigido pelo art.157º/1/2 do CSC.
12ª Dispõe o art.163º/1 do CSC que “Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante da partilha (…)”.
13ª Quer isto dizer que os sócios só respondem pelo passivo da sociedade liquidada e extinta se houver partilha dos bens desta e na medida da mesma partilha,
14º pelo que de trata de um facto impeditivo do exercício do direito da A., ora apelada,
15ª matéria de excepção cujo ónus recai sobre os sócios da Ré inicial, a sociedade «C…, Lda», os aqui apelantes, nos termos do art.342º/2 do CC.
16ª Não alegando, nem provando, que da liquidação não resultou qualquer partilha de bens ou de direitos para os sócios daquela «C…, Lda», a decisão da matéria de facto é e foi suficiente para a condenação dos R.R, apelantes.
17ª os R.R. apelantes não cumpriram os ónus previstos no art.157º/1/2 do CSC e no art.342º/2 do CC
12 –
A Recorrida terminou pronunciando-se pela improcedência da apelação.

II – FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

A -
Constam da Sentença como estando adquiridos para os autos os seguintes FACTOS, que daquela se transcrevem:
«1) A Autora é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio, importação e exportação de produtos alimentares, nomeadamente cafés e actividades conexas (Alínea A)).
2) No dia 02/10/2002, Autora e Ré celebraram o contrato de fornecimento junto aos autos a fls. 21 a 23 cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais (Alínea B)).
3) Desse contrato fazia parte integrante o "Anexo 1", junto aos autos a fls. 23, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais (Alínea C)).
4) A Autora enviou à Ré a carta junta aos autos a fls. 25, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais (Alínea D)).
5) Tal carta foi devolvida ao remetente com indicação "não reclamada" (Alínea E)).
6) A Autora enviou à Ré, que a recebeu, cópia da carta junta aos autos a fls. 28, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais (Alínea F)).
7) Por escritura pública de 25 de Junho de 2003 foi a Ré, por deliberação dos respectivos sócios, dissolvida e liquidada (Alínea G)).
8) A “C…, L.da” só encomendou à Autora um montante não superior a 61,5 quilos de café (Itens 1º e 2º).
9) A “C…, L.da” cessou em data não posterior a Janeiro de 2004 qualquer encomenda ou consumo (Item 3º).
10) Em 06 de Novembro de 2002, a "C…, L.da" celebrou com a sociedade "J…, L.da" o acordo de revogação cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 188 e 189 (Item 5º).
11) Em virtude desse acordo, em data não posterior a 06 de Novembro de 2002, a referida sociedade cessou a exploração do estabelecimento comercial “I…” (Item 6º).
12) Tendo para o efeito entregue as chaves da Loja nº … à sociedade "J…, L.da" (Item 7º).
13) Em data não posterior a 12/12/02, a ora Autora tomou conhecimento que na Loja … onde se encontrava o estabelecimento comercial “I…” ficariam sediados os estabelecimentos comerciais “H…” e “L…” (Item 10º).
14) Em finais de 2003, a sociedade “C…, L.da” entregou à Autora todas as máquinas e todo o material publicitário descrito no Anexo 1 do contrato dos autos (Item 13º).»

B –
Relativamente a esta matéria de facto, por estar provado documentalmente e interessar para a boa decisão da causa, há que aditar os seguintes Factos aos já considerados adquiridos:
15) Da escritura referida em 7) consta o seguinte:
“Que eles (1ª e 2º outorgantes) e a sociedade representada pelo segundo outorgante, são os únicos sócios da sociedade comercial por quotas com a firma ”C… … Que nessa qualidade, decidem por unanimidade constituir-se em assembleia universal, com dispensa de formalidades prévias e deliberar dissolver a identificada sociedade, que já cessou a sua actividade, tendo sido liquidado todo o seu activo e passivo. Que não existem quaisquer bens a partilhar nem qualquer saldo de liquidação, tendo as respectivas contas sido encerradas e aprovadas nessa data, pelo que a consideram completamente liquidada.” (doc. a f1s. 82 e 83)
16) No registo comercial foi inscrito pela Apresentação 04, de 24-07-2003, a dissolução e encerramento da liquidação da C…, LDA. (doc. de fls. 86-88)
17) Foi requerida a Habilitação dos sócios de C…, Ldª, com dois fundamentos: responderem pelo respetivo passivo social não satisfeito, até ao montante que receberem na partilha; e, como liquidatários, por culpa na não satisfação ou acautelamento da dívida da Requerente, responderem pessoalmente pela totalidade da dívida.
18) A Sentença proferida nesse incidente declarou os sócios habilitados na posição processual de C…, Ldª, com base no disposto nos artigos 371º, 2, do CPC e 162º, 1, do CSC.
19) Desta Sentença não foi interposto recurso.

C – Há que corrigir o constante do ponto 14 dos factos dados como adquiridos, pois que face aos documentos juntos aos autos relativos à dissolução e liquidação da primitiva Ré, que já não existia no fim de 2003, só poderá ter a seguinte redação:
14) Em finais de 2003, foram entregues à A. todas as máquinas e todo o material publicitário descrito no Anexo 1 do contrato dos autos.

DE DIREITO

Ainda antes de instaurada a presente ação, foi lavrada escritura de dissolução da sociedade Ré e efetuada a respetiva inscrição na Conservatória competente, ficando a constar da sua ficha o cancelamento da matrícula.
Todo este processo de dissolução e liquidação ocorreu antes da entrada em vigor do DL 76-A/2006, de 29-3.
Este diploma, que veio criar a dissolução e liquidação administrativas, entrou em vigor a 30-6-2006, por força do disposto no artigo 64º, 1, do mesmo DL.
Com o registo da liquidação há que considerar extinta a sociedade Ré – ver artigo 160º, 2, do CSC[1].
Determina o artigo 162º do CSC: “1. As ações em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163º, n.ºs 2, 4 e 5, e 164º, n.ºs 2 e 5. 2. A instância não se suspende nem é necessária habilitação.” Este dispositivo visa evitar delongas[2].
Por seu turno o artigo 163º, 1, do CSC dispõe: “Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada.”
Apesar de extinta a sociedade, perdendo a sua personalidade jurídica e judiciária, não se extinguem as relações jurídicas de que era titular[3].
É ponto assente que as declarações constantes da escritura de dissolução, que não têm força probatória material – ver artigo 371º do CC[4].
Mas temos que ter presente que as declarações constantes dessa escritura não foram, ainda, objeto de qualquer procedimento judicial, mantendo-se válidas, assim como plenamente eficaz se encontra o registo da dissolução e liquidação.
A questão deste recurso centra-se, essencialmente, em saber se incumbia ou não à A. alegar e provar que os sócios partilharam entre si bens da sociedade e, no caso afirmativo, qual o respetivo valor ou montante.
A A., ora Recorrida, quando requereu o prosseguimento da ação contra os três únicos sócios da Ré, não alegou que a declaração de que a sociedade não tinha bens a partilhar pelos sócios não correspondia à verdade, pois que, contrariamente ao declarado, tinha bens e foram entre eles partilhados, em prejuízo do seu crédito.
A existência de bens e a sua partilha entre os sócios são elementos constitutivos do direito da A.[5]. Só nasce o direito da A. sobre os sócios se tiver havido partilha de bens. Sem existência de bens e sua partilha pelos sócios não nasce qualquer direito do credor da sociedade em relação aos sócios – ver artigo 342º, 1, do CC. A esta solução não obsta o facto de não ocorrer presunção de não existência de bens. Também a existência do crédito se não presume. Não estamos perante facto impeditivo, mas constitutivo, como referido.
Essa alegação era processualmente possível, através de um articulado superveniente – ver artigo 506º do CPC.
E sem ter alegado esses factos e posterior prova de ocorrência dos mesmos não é possível condenar os sócios no pagamento da dívida da sociedade. A obrigação de pagamento para estes só teria nascido se tivessem recebido bens da sociedade e no valor destes, o que faltou provar.
Face ao disposto nos artigos 64º a 70º-A do CSC e 3º, 1, n), e 15º, 1, do CRC não é legítimo alegar a impossibilidade de satisfação daquele ónus para que se proceda à sua inversão. Aqueles dispositivos legais visam informar os sócios, os credores e o público em geral da verdadeira situação da sociedade[6]. E não a devemos esquecer o direito de sub-rogação que o artigo 606º, 1, do CC confere, neste caso ao credor para, em substituição do sócio, exercer o seu direito de crédito em relação à sociedade, ainda que extinta.
A inversão do ónus de prova só se justifica, sob pena de abrirmos a porta à insegurança jurídica, em casos limitados e em que seja manifestamente impossível o conhecimento dos factos por aquele a quem incumbiria esse ónus.
Por outro lado, não integra a causa de pedir desta ação a atuação dos sócios como liquidatários, pelo que não pode ser tomada em consideração na Sentença.

III – DECISÃO

Pelo exposto acordamos em julgar procedente a Apelação, em revogar a Sentença e em absolver D…, E… e F…, L.DA, do pedido.
Custas, nesta e na 1ª Instância, a cargo da A., ora Recorrida.

Porto, 2012-09-10
José Alfredo de Vasconcelos Soares de Oliveira
Ana Paula Vasques de Carvalho
Manuel José Caimoto Jácome
________________
[1] AC. DO STJ, DE 26-6-2008, em www.dgsi.pt.
[2] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Código das Sociedades Comerciais Anotado, Almedina, Coimbra, 2009, p. 494.
[3] AC. DO STJ, DE 26-6-2008, já cit., e AC. DO STJ, DE 23-4-2008, www.dgsi.pt.
[4] AC. DO STJ, DE 26-6-2008, cit.
[5] Neste sentido os ACS. DO STJ, DE 26-6-2008 e 23-4-2008, já citados, e de 15-11-2007, www.dgsi.pt.
[6] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades, I, Almedina, Coimbra, 2004, p. 773.
________________
Tendo em atenção o acima escrito é possível elaborar o seguinte SUMÁRIO:
1 – Apesar de extinta uma sociedade não se extinguem as relações jurídicas de que era titular.
2 – Para que nasça para os seus sócios, que não fossem de responsabilidade ilimitada, a obrigação de responder pelo passivo social é necessário que tenha havido, entre eles, partilha dos bens da sociedade.
3 – Essa obrigação tem como limite o valor dos bens por cada um recebidos.
4 – Recai sobre o credor o ónus de provar que ocorreu essa partilha e o valor recebido, se da escritura de liquidação e extinção constar que a sociedade não tinha bens.

José Alfredo de Vasconcelos Soares de Oliveira