Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
628/09.3PTPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA FIGUEIREDO
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
VEÍCULO APREENDIDO
FIEL DEPOSITÁRIO
Nº do Documento: RP20101027628/09.3PTPRT.P1
Data do Acordão: 10/27/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: Comete o crime de desobediência do art. 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal quem, sendo fiel depositário de veículo apreendido por autoridade policial, por falta de seguro de responsabilidade civil, o conduz, apesar de, no momento da apreensão e da nomeação como fiel depositário, haver sido advertido pelo agente policial de que, se o fizesse, incorreria na prática do crime de desobediência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1ª secção criminal
Proc. nº 628/09.3PTPRT.P1
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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:


I – RELATÓRIO:

No processo comum (tribunal singular) n.º 628/09.3PTPRT.P1, do 2º Juízo da 1ª secção, o Magistrado do Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B…….., pela prática como autor material de 1 (um) crime de desobediência p.p. pelo artº 348º, nº1, al.b) do Código Penal.
Remetidos os autos para julgamento aos juízos criminais do Porto, pela Srª Juiz a quo foi proferido o seguinte despacho: ( transcrição)
(…)IV) O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B…….., imputando-lhe a prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art. 348º, nº 1, al. b), do Código Penal.
Dispõe o art. 311º, nº 2, al. a), do Código de Processo Penal que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
A acusação é manifestamente infundada quando, além do mais, os factos não constituírem crime (cfr. al. d) do nº 3 do preceito legal supra citado).
Ora, no caso, a acusação pública deduzida contra o arguido é manifestamente infundada porquanto, em nosso entender, os factos nela descritos não constituem crime.
Senão vejamos:
O Ministério Público acusa o arguido de, no dia 9/Novembro/2008, em desobediência à ordem que lhe foi dada pela autoridade policial competente, ter conduzido um veículo que lhe havia sido anteriormente (em 21/Setembro/2007) apreendido, por falta de seguro de responsabilidade civil obrigatório, sendo que, aquando da referida apreensão, o arguido foi constituído fiel depositário do veículo em causa e advertido de que não o podia utilizar, sob pena de incorrer no crime de desobediência.
Dispõe o art. 348º do Código Penal que:
“1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados ou emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
2. A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.”
Como bem refere a Dr.ª Cristina Monteiro in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo III, pg. 351, “Faltar à obediência devida não constitui, porém, por si só, facto criminalmente ilícito. A dignidade penal da conduta exige, para além do que fica dito (comunicação regular), que o dever de obediência que se incumpriu tenha uma de duas fontes: ou uma disposição legal que comine, no caso, a sua punição; ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar a ordem ou o mandado”.
Não existindo nenhuma disposição legal que comine a punição da indiciada conduta do arguido com o crime de desobediência (simples ou qualificada), pois caso contrário o Ministério Público tê-la-ia referido na acusação que deduziu, temos de concluir que a fonte da desobediência não está prevista na lei, o que afasta, desde logo, a aplicação da alínea a) do nº 1 e do nº 2 do art. 348º do Código Penal.
Importa, por isso, averiguar se tal conduta é subsumível à alínea b) do n.º 1 do art. 348º do Código Penal.
Esta alínea b) existe para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza, prevê um determinado comportamento desobediente, caindo no âmbito da mesma, conforme nota Cristina Líbano Monteiro (ob. cit. pág. 354), desobediências não tipificadas, não previstas em qualquer ramo do direito sancionatório, que ficam dependentes, para a sua relevância penal, de uma simples “cominação funcional”.
Ora, «não podendo fugir à letra da lei, será tarefa dos tribunais ajuizar, caso a caso, se o princípio da insignificância ancorado no carácter fragmentário e de ultima ratio da intervenção penal, não levará com frequência a negar dignidade penal a algumas condutas arguidas de desobediência (do art. 348º) porventura pelo excesso de zelo de um dedicado servidor da administração pública. Aquilo que nem sequer foi considerado merecedor de tutela por parte de uma ordem sancionatória não penal, dificilmente (por maioria de razão) será merecedor de tutela penal. Como excepção, restarão porventura desobediências em matérias que, pelo seu recente aparecimento ou aquisição de importância aos olhos da comunidade jurídica, não foram ainda objecto de oportuna intervenção legiferante (sublinhado nosso)» (Cristina Líbano Monteiro, cit. 354).
No caso, apesar de não se discutir a legalidade da ordem e a legitimidade da autoridade que a proferiu (pois a falta de seguro constitui contra-ordenação, devendo o veículo ser apreendido pelas autoridades de fiscalização ou seus agentes quando transite naquelas condições – cfr. art. 162º, nº 1, al. f), do Código da Estrada, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23/02), bem como a regularidade da comunicação, o certo é que, existindo ilícito próprio no qual se subsume a conduta do agente que não respeite a proibição de conduzir um veículo apreendido por falta de seguro obrigatório (cf. art. 161º, nº 7, do Código da Estrada),considera-se que a autoridade policial não podia cominar como crime de desobediência o desrespeito pela ordem dada.
Face à clarividência da respectiva argumentação, com a qual concordamos na íntegra, atrevemo-nos a transcrever aqui as conclusões do recurso interposto pelo Ministério Público da sentença proferida em 30.03.2007, pelo 4º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, que condenou o arguido pela prática de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo art. 348º, nº 1, al. b), do Código Penal, por factos semelhantes aos destes autos, retiradas do Ac. da Relação de Lisboa, de 05.12.2007, votado por unanimidade, proferido no processo nº 9085/2007-3, visualizável em www.dgsi.pt:
«1. Estando a actividade policial sujeita ao princípio da legalidade estrita das medidas de polícia, previsto no art. 272.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, os agentes da Polícia de Segurança Pública apenas podem dar ordens ou determinar proibições aos cidadãos nas situações enquadradas nas suas competências específicas e nos termos expressamente previstos na lei, constituindo vício de incompetência dar ordens ou determinar proibições sobre matérias incluídas na competência de outros órgãos públicos e vício de violação de lei dar ordens ou determinar proibições em situações não previstas nas normas legais;
2. Devem, ainda, as medidas de polícia e as ordens dos agentes policiais em que se traduzem estas medidas, como todos os actos públicos potencialmente lesivos dos direitos fundamentais, estar sujeitas aos princípios da necessidade, exigibilidade e proporcionalidade, previstos no art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, ou seja, as ordens devem visar interesses públicos legalmente previstos e na prossecução destes interesses devem sacrificar no mínimo os direitos dos cidadãos;
3. Em obediência a estes princípios e ao princípio da fragmentariedade do Direito Penal, a punição pela prática do crime de desobediência, previsto no art. 348.º do C.P., conforme já era reconhecido na redacção do art. 188.º do Código Penal de 1886, tem natureza subsidiária relativamente a outras formas de sancionar a desobediência pelos particulares a normas legais ou a ordens e proibições concretas determinadas por órgãos ou agentes da administração pública, nos quais se enquadra a actividade dos agentes fiscalizadores do trânsito, nestas se enquadrando as normas que prevêem a aplicação de uma coima, sanção contra-ordenacional, para a desobediência a ordens ou proibições relativas à legislação rodoviária;
4. Nomeadamente a contra-ordenação prevista no art. 161.º, n.º 7, do Código da Estrada, que pune com coima de 300 € a 1500 € quem conduzir veículo automóvel cujo documento de identificação tenha sido apreendido, situação a que se subsume a condução de veículo automóvel apreendido nos termos do art. 162.º, n.º 1, do Código da Estrada, uma vez que a alínea e) do n.º 1 do art. 161.º do Código da Estrada prevê a apreensão dos documentos do veículo quando este for apreendido;
5. A própria evolução da legislação rodoviária sobre a apreensão e imobilização de veículos por violação deste tipo de normas legais, desde o Decreto-Lei n.º 110/90, de 3 de Abril – que punia a violação da imobilização do veículo com a desobediência qualificada -, passando pela Lei n.º 63/93, de 21 de Agosto, - que previa a revisão ou revogação de normas penais incriminadoras relativas à violação de normas sobre o trânsito -, passando pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio – Código da Estrada publicado ao abrigo da Lei n.º 63/93 e no qual se previa a revogação da legislação que estivesse em contradição com o novo Código da Estrada, prevendo este, no art. 162.º, n.º 6, a punição com coima para quem conduzisse veículo cujo livrete tenha sido apreendido e previa, ainda, a perda do veículo a favor do Estado se o registo de propriedade não fosse regularizado no prazo de 90 dias – até ao Código da Estrada actual, publicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, - que mantém basicamente o regime do Código da Estrada de 1994 -, permite concluir que existiu um movimento de descriminalização das sanções às normas rodoviárias, as quais permitiram a transformação de muitas situações tipificadas como crime de desobediência em contra-ordenações;
6. Excepto nos casos em que o legislador expressamente tipificou determinadas actuações como desobediências, e não foram poucas – arts. 138.º, n.º 2, 152.º, n.º 3, 154.º, n.º2, 155.º, n.º 4, 160.º, n.º 3, (situações estas relativas ao cumprimento de decisões ou de situações relacionadas com a condução com álcool, que podem colocar em grave perigo os restantes utentes da via) - todas as violações de normas previstas no Código da Estrada – de carácter meramente administrativo - são puníveis com coimas, nomeadamente no caso em que o veículo tenha sido bloqueado e removido, estando materialmente impossibilitado de circular, e alguém, que não a autoridade competente, desbloquear o mesmo (art. 164.º, n.º 5, do CE);
7. Podemos, desta feita, concluir que abrir a possibilidade de o arguido (C) ser punido com uma pena privativa da liberdade, através da norma penal em branco prevista no art. 348.º, n.º 1, al. b), do C.P. - por meio da cominação do agente fiscalizador do trânsito - numa situação que materialmente não justifica tal compressão dos direitos fundamentais do arguido e para a qual o próprio ordenamento jurídico prevê outras formas de resolver o problema da desconformidade do registo de propriedade automóvel, constitui uma clara violação do art.18.º, n.º 2, do C.P.»
Conforme decorre da argumentação supra transcrita, o carácter subsidiário da incriminação prevista no art. 348º, nº 1, al. b), do Código Penal, leva a concluir que a autoridade ou o funcionário só podem fazer uma tal cominação quando o comportamento em causa não constitua um ilícito previsto pelo legislador para sancionar essa conduta, seja ele de natureza criminal, contra-ordenacional, ou outra (v., neste mesmo sentido, José Luís Lopes da Mota, in “Crimes contra a Autoridade Pública”, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, Vol. II, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1998, p. 437, citado no douto Ac. da Relação de Lisboa supra referido).
No caso dos autos, a apreensão do veículo teve por base o disposto no art. 162º, nº 1, al. f), do Código da Estrada (correspondente ao art. 168º, nº 1, al. f), do mesmo código, na versão anterior).
Ora, implicando tal apreensão, de acordo com o disposto na alínea e) do nº 1 do art.161º do mesmo diploma (correspondente à alínea e) do nº 1 do art. 167º do mesmo código, na versão anterior) a apreensão do documento de identificação do veículo, a condução deste nessa situação constitui contra-ordenação e é sancionada com coima (cfr. art. 161, nº 7, do Código da Estrada).
Por isso, não podia o agente de autoridade efectuar tal cominação, por a mesma ser ilegal.
Sendo ilegal, nessas circunstâncias, a cominação do crime de desobediência feita pelo agente da autoridade, é evidente que não se mostram preenchidos os pressupostos do crime de desobediência previsto e punido pelo art. 348º, nº 1, al. b), do Código Penal.
A posição que aqui acolhemos foi recentemente sufragada no douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10.03.2010, proferido no processo nº 961/05.3PTPRT.P1, visualizável em www.dgsi.pt.
Assim, dado que os factos imputados ao arguido não integram os elementos objectivos do tipo de crime que lhe vem imputado, impõe-se a rejeição da acusação contra si deduzida, por manifestamente infundada.
Por tudo o exposto, ao abrigo do disposto no art. 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d), do Código de Processo Penal, decido rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público por se considerar a mesma manifestamente infundada.
(…)
Inconformado, o Magistrado do Ministério Publico interpôs recurso, desta decisão retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
(…) 1. O recurso é interposto do despacho que rejeitou a acusação por entender que a conduta de quem conduz um veículo automóvel que se encontra apreendido por falta de seguro obrigatório não integra a prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo(s) art.(s) 348º C.P., consubstanciando, ao invés, uma contra-ordenação, ainda que tenha sido feita a advertência de que a violação da apreensão fará incorrer no sobredito ilícito criminal;
2. De acordo com a argumentação expendida no despacho recorrido, a apreensão do veículo que circula não obstante estar apreendido integra a contra-ordenação prevista no art. 161º, 7 do Código da Estrada (C.E.), pelo que, considerando que o direito penal tem natureza subsidiária, a entidade policial não pode cominar com a prática do crime de desobediência a conduta de quem conduz um veículo apreendido, sendo tal ordem, se emitida, ilegal;
3. De acordo com José Luís Lopes da Mota in Crimes Contra a Autoridade Pública, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, II, Lisboa, 1998, fls. 428 e 429 o crime de desobediência tem uma estrutura eminentemente normativa e são seus elementos típicos “(…) a existência de um comando da autoridade ou do funcionário, sob a forma de ordem ou mandado, impondo uma determinada conduta, um dever de acção de omissão, nos termos concretamente definidos; a sua legalidade material e formal; a competência da entidade que o emite; a regularidade da comunicação ao destinatário; a violação do dever concretamente emergente desse comando” e, caso a punição a título de desobediência não esteja expressamente prevista, que a entidade competente faça a cominação da punição;
4. Devendo entender-se e interpretar-se dessa forma a matriz do crime de desobediência na modalidade prevista no art. 348º, 1, b) C.P., não nos parece que o propalado princípio da necessidade determine, inelutavelmente, a ilegalidade material da cominação efectuada pelo órgão de polícia criminal na específica situação que foi objecto de acusação;
5. Na realidade, “(…) não podem confundir-se duas realidades: uma, a prossecução de uma situação anti-jurídica, que consiste na condução em via pública de veículo a motor, sem contrato de seguro de responsabilidade civil; outra, a circulação desse veículo desacompanhado do documento de identificação” – Parecer do Ex.mo Sr. Procurador da República Jorge Reis Bravo integrado na Informação n.º 3/09 da PGD do Porto – ou, como se escreve no AcRP de 13/01/2010, “Enquanto que a apreensão dos documentos tem por finalidade primordial facilitar a fiscalização, evitando “a circulação do veículo desacompanhado do documento de identificação (…) A finalidade da apreensão do veículo na sequência de acidente em que interveio, quando circulava sem seguro obrigatório válido, é, em primeira linha, a de preservar a viatura, mantendo o seu valor intacto, com o qual se ressarcirão os prejuízos resultantes do acidente em que o veículo interveio; e ainda a de a evitar “a prossecução de uma situação antijurídica, que consiste na condução em via pública de veículo a motor, sem contrato de seguro de responsabilidade civil”;
6. A apreensão do automóvel que circula sem seguro obrigatório tem uma função cautelar ou preventiva, procurando anular-se a potencialidade lesiva que daí decorre, mais precisamente, o risco que resulta da ausência da garantia de reparação de danos que possam decorrer da circulação do veículo;
7. Assim, se o fiel depositário reincidir na condução do automóvel apreendido sem haver regularizado a situação cometerá o crime de desobediência, caso tenha havido a regular cominação com tal crime, cominação essa que deverá considerar-se legal;
8. O crime de desobediência nesta situação não se reconduz à circulação do veículo sem documento de identificação, mas sim ao desrespeito pela proibição de circular sem seguro obrigatório;
9. A interpretação dinâmica e integrada dos art. 348º, 1, b) C.P. e 161.º, 1, e) e 7 do C.E, discernindo o diverso âmbito de aplicação da contra-ordenação e do crime, está certamente implícita na argumentação que percorre o Acórdão para Fixação de Jurisprudência n.º 5/2009 (DR, I-A, 19/03/2009), que acima já se referiu;
10. Assim, a decisão recorrida deverá ser revogada por ter violado o disposto no art. 348º, 1, b) C.P. e no art. art. 311º, 2, a) e 3, c) e d) C.P.P., que interpretou erradamente, e substituída por outra que determine a marcação de data para realização da audiência de julgamento.
(…)
Pelo arguido não foi apresentada resposta.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.
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Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, as questões a decidir são a de saber se o fiel depositário de veículo apreendido e que circula com o mesmo na via pública, após ter sido advertido expressamente pela Plícia de Segurança Pública de que se desobedecesse incorreria num crime de desobediência, comete um crime de desobediência, ou apenas uma contra-ordenação como se decidiu na decisão recorrida.
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II - FUNDAMENTAÇÃO:
A questão colocada no recurso não é nova e também não tem merecido tratamento Jurisprudencial uniforme.
Assim e exemplificativamente no sentido de que a conduta imputada ao arguido – conduzir o veículo automóvel na via pública, após apreensão do mesmo por falta de seguro obrigatório, e ter sido nomeado fiel depositário – integra o crime de desobediência pronunciou se o acórdão desta Relação de 13/1/2010, sendo que em sentido contrário decidiu o acórdão de 10/3/2010. [1]
Pela nossa parte aderimos à posição daqueles que entendem que a conduta imputada ao arguido consubstancia a prática de um crime de desobediência, entendimento também por nós perfilhado em anterior decisão, sendo que com o respeito devido pela posição contrária, não surpreendemos razões no despacho recorrido que nos levem a alterar aquela .
Passemos assim a expor as razões de tal entendimento.
Nos termos do artº 348º nº1 do CP, comete o crime de desobediência “Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente (…), se”:
“Uma disposição legal cominar, no caso, a punição de desobediência simples; ou
Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.”
Como refere Cristina Líbano Monteiro,[2] exige-se para que a conduta tenha dignidade penal, que o dever de desobediência que se incumpriu resulte de uma dessas duas fontes, disposição legal ou cominação. E o bem jurídico protegido é a autonomia intencional do Estado. [3]
Na acusação deduzida é imputado ao arguido ter conduzido o veículo identificado nos autos, que havia sido apreendido pela PSP por inexistência de seguro de responsabilidade civil, tendo então ele arguido sido nomeado fiel depositário do veículo e notificado de que não podia utilizá-lo, com a advertência expressa de que, caso não cumprisse, incorreria na prática de um crime de desobediência.
Consta ainda que “aquando da notificação, o arguido ficou perfeitamente ciente das suas obrigações enquanto fiel depositário, designadamente que não poderia utilizar o veículo apreendido” e que “ quando conduziu tal veículo, arguido agiu, livre e conscientemente, voluntária e deliberadamente, bem sabendo que a apreensão havia sido efectuada pela entidade competente e que, com tal comportamento, desrespeitava uma ordem emanada da autoridade pública.”.
Para além do referido artºº 348º nº1 do CP, há ainda que ter em conta o teor do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº5/2009 que fixou Jurisprudência no sentido de que “ O depositário que faça transitar na via pública um veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório comete, verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do artº 348º nº1 al.b) do Código Penal, e não o crime de desobediência qualificada do artº 22º nºs 1 e 2, do Decreto –Lei nº54/75, de 12 de Fevereiro “ .
O tribunal recorrido entendeu com base na subsidiariedade da incriminação prevista no artº 348º, nº 1, al.b) do Código Penal, e no princípio da fragmentariedade do Direito Penal, que implicando a apreensão do veículo prevista no artº 162º nº1 al. f) do CP, a apreensão do documento de identificação do veículo, tal conduta constitui contra-ordenação sancionada com coima e como tal torna ilegal a cominação com crime de desobediência efectuada pelo agente de autoridade nos termos do artº 348º nº1 al.b) do CP.
Se analisarmos a fundamentação do acórdão de Fixação de Jurisprudência supra referido, constatamos que a fonte da fonte da legitimidade da proibição de o depositário fazer transitar o veículo é a norma do artº 150º nº1 do CE, como claramente resulta do excerto que se passa a transcrever:
“ Pode, pois concluir-se, que a apreensão do veículo por falta de seguro obrigatório de responsabilidade civil não se enquadra em nenhum dos actos regulados no Decreto-Lei nº 54/75 e não sendo uma «apreensão prevista neste diploma» (a ela se não referem os nºs 1 e 2 do artº 22º).
E que não existe ilícito próprio no qual se subsuma a conduta do agente que não respeite a proibição de conduzir um veículo apreendido por falta de seguro obrigatório, nem existe norma legal que a qualifique como desobediência simples ou qualificada. E, sendo assim, resta a subsunção directa dessa conduta à alínea b) do nº1 do artº 348º do Código Penal.
Sendo o artº 150º nº 1, do actual Código da Estrada («anterior nº1 do artº 131º») : «Os veículos a motor e seus reboques só podem transitar na via pública desde que seja efectuado, nos termos de legislação especial, seguro da responsabilidade civil que possa resultar da sua utilização.») a fonte da legitimidade da autoridade de trânsito que, ao apreender o veículo por falta de seguro, «proíba» o depositário de o fazer transitar.” (negrito nosso)
Entende-se pois, que a conduta em causa nos autos não é a condução de um veículo com o documento de identificação apreendido, prevista e sancionada no artº 161 nº 7 do CE, mas antes e diferentemente a conduta daquele que tendo sido nomeado fiel depositário de veículo apreendido por falta de seguro obrigatório, e que expressamente advertido pela autoridade competente, de que não podia utilizá-lo e que caso não cumprisse incorreria na prática de um crime de desobediência, transita com ele.
Neste sentido e com profícua fundamentação escreveu-se no acórdão desta Relação de 13/1/2010, supra referido “ Com facilidade se conclui que a condução do veículo com os documentos apreendidos nada tem a ver com a condução de veículo estando este apreendido, embora esta possa implicar aquela e não já o contrário. Trata-se por isso, de condutas diversas, distintas, a reclamar distinto tratamento jurídico.”[4]. Como se refere nesse acórdão “ enquanto a apreensão dos documentos tem por finalidade primordial facilitar a fiscalização, evitando a circulação do veículo desacompanhada do documento de identificação”, a finalidade da apreensão do veículo é ainda a de evitar “ a prossecução de uma situação antijurídica, que consiste na condução em via pública de veículo a motor, sem contrato de seguro de responsabilidade civil”.
Por isso que não se coloque aqui a questão do carácter meramente subsidiário da incriminação prevista na al.b) do artº 348º nº1 do CP, já que a conduta em causa nos autos não se encontra prevista por qualquer disposição legal, designadamente de natureza contra-ordenacional nos termos defendidos pela decisão recorrida.
A acusação não se revela manifestamente infundada nos termos afirmados na decisão recorrida, pelo que o recurso procede.
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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam os juízes desta Relação em julgar o presente recurso procedente, e consequentemente revogar a decisão recorrida, a qual deverá substituída por outra que pressuponha que os factos narrados na acusação são susceptíveis de integrarem o crime de desobediência que aí vinha imputado.

Sem tributação

Elaborado e revisto pelo relatora

Porto, 27/10/2010
Lígia Ferreira Sarmento Figueiredo
José Manuel da Silva Castela Rio
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[1] Proferidos respectivamente nos proc nº10452/08.5TDPRT.P1 (relator Francisco Marcolino) e no proc 961/05.3PTPRT.P1 relator Ricardo Costa e Silva).
{[2] Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora 2001, pág.351.
[3] Ibidem pág.350
[4] Proc. 10452/08.5TDPRT.P1, (relator Francisco Marcolino) acedido in DGSI .pt