Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0523106
Nº Convencional: JTRP00038367
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
Nº do Documento: RP200510040523106
Data do Acordão: 10/04/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: I- Na prescrição presuntiva o decurso do prazo não extingue a obrigação, mas origina a presunção do seu cumprimento.
II- A alegação do pagamento é obrigatória.
III- A possibilidade de o credor provar a dívida, apesar da prova só poder resultar de confissão do devedor, é uma porta que não deve fechar-se na ocasião do saneamento do processo, devendo este prosseguir para julgamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

RELATÓRIO

B................, casado, comerciante, residente no .............., freguesia de S. ............., concelho de Penafiel, propôs contra C.........., casado, comerciante, residente no .........., freguesia de ............. Concelho de Marco de Canaveses, a presente acção declarativa condenatória com processo comum, sob a forma ordinária, pedindo que o Réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 16.281,26, acrescida de juros de mora desde a propositura da acção até integral pagamento, alegando que dos diversos serviços de carpintaria e fornecimentos da sua especialidade que lhe prestou, discriminados na factura n.º 0767, no montante de € 14.451,17, só lhe foi paga a quantia de € 1.321,12, computando-se os juros de mora já vencidos em € 3.151,21.

O Réu, na contestação de fls. 18 e ss., defendeu-se por excepção, referindo que, nos termos do art. 317º, al. b), do CC se presume realizado o pagamento da dívida em causa, pagamento esse que, de resto, foi efectuado.
No mesmo articulado, o Réu defendeu-se por impugnação, rebatendo os factos alegados pelo Autor na petição inicial e assegurando que nunca recebeu qualquer factura emitida por este.

Na réplica, o Autor opôs-se à matéria de excepção, afirmando, entre o mais, que nos arts. 25º e 26º da contestação o Réu nega a dívida.

Realizou-se a audiência preliminar, no decurso da qual a Mmª Juiz julgou procedente a excepção da prescrição do crédito do Autor, julgando improcedente a acção e absolvendo o Réu do pedido.

O Réu, inconformado, recorreu.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – v. fls. 63.

Nas respectivas alegações de recurso, o apelante pede a revogação da decisão recorrida, formulando, para esse efeito, as seguintes conclusões:
1. A decisão proferida pelo Tribunal recorrido faz uma errada interpretação dos arts. 317º, al. b), 314º, 355º e 357º, n.º 2, do CC e dos arts. 502º e 552º do CPC.
2. Para que o Réu pudesse prevalecer-se da prescrição presuntiva do art. 317º, al. b), do CC, teria que fazer prova dos dois elementos necessários à sua verificação: a) a decorrência de dois anos após o fornecimento dos serviços e mercadorias alegados na petição inicial; b) o facto de não ser o devedor comerciante ou, sendo-o, não ter destinado tais serviços e mercadorias ao seu comércio.
3. Dos autos não resulta confessado que o devedor não seja comerciante, ou, sendo-o, não tenha destinado tais serviços e mercadorias ao seu comércio.
4. E tal prova competia ao Réu, tendo presente o art. 342º do CC, que impõe o ónus da prova àquele que invoca um direito e a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado àquele contra quem a invocação é feita.
5. Alegada a prescrição presuntiva da al. b) do art. 317º do CC, competia ao Réu provar que os serviços e mercadorias fornecidos pelo Autor não se destinaram ao seu comércio por não ser comerciante ou, sendo-o, não ter destinado tais serviços ou bens ao seu comércio.
6. Não tendo o Réu alegado a não comercialidade da dívida, terá que improceder a alegada excepção de prescrição e o processo prosseguir os seus ulteriores termos.
Assim não se entendendo:
7. Dispõe o art. 314º do CC que se considera confessada a dívida se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no Tribunal ou a praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento.
8. “São exemplos desses actos incompatíveis: o devedor negar a existência da dívida, discutir o seu montante, invocar contra ela compensação ou remissão, invocar gratuitidade dos serviços, etc.”.
9. Da posição assumida pelo Réu no processo, resulta que o mesmo questiona o negócio alegado pelo Autor e que é causa de pedir naquele, propugnando que o negócio celebrado com o Autor foi um outro que não o vertido na petição inicial; discutindo a data do início e conclusão dos serviços e fornecimentos alegados pelo Autor; a quantidade, a qualidade e o preço dos serviços e mercadorias cujo preço é reclamado por via da presente acção.
10. O Réu impugna, de resto, toda a matéria alegada pelo Autor nos arts. 3º a final da petição inicial.
11. Tais actos são incompatíveis com a presunção de cumprimento estabelecida pela alínea b) do art. 317º do CC – art. 314º do mesmo diploma – pelo que o processo deve seguir os seus ulteriores termos.
Ainda assim não se entendendo:
12. Dispõe o art. 502º do CPC que à contestação pode o autor responder na réplica se for deduzida alguma excepção e somente quanto à matéria desta.
13. O Réu defendeu-se por excepção, pelo que assiste ao Autor o direito de responder por meio de réplica à invocada excepção de prescrição.
14. Tendo o Autor impugnado o pagamento invocado pelo Réu e alegado que os cheques juntos com a contestação se destinaram a liquidar uma dívida não reclamada nos presentes autos, impunha-se a produção de prova para apuramento da verdade, não permitindo, por isso, o actual estado do processo que se conhecesse imediatamente do mérito da causa, devendo o mesmo prosseguir e relegar-se para final o conhecimento da invocada excepção de prescrição.
15. No presente processo, é lícito ao Autor requerer o depoimento de parte do Réu – art. 552º do CPC – procurando, desse modo, ilidir a presunção de cumprimento pelo decurso do prazo por confissão do devedor - art. 313º do CC – considerando-se confessada a dívida se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no Tribunal – artigos 314º, 355º e 357º, n.º 2, todos do CC, pelo que, salvo o devido respeito, não deveria o Tribunal, nesta fase do processo, ter decidido, como fez, da invocada excepção de prescrição.

O Réu contra-alegou pedindo a manutenção da decisão impugnada.

Foram colhidos os vistos legais.
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Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do apelante – arts. 684º, n.º 3 e 690º do CPC – a única questão a dirimir é a de saber se deve manter-se a decisão que julgou improcedente a acção com fundamento na procedência da excepção da prescrição do crédito, invocada pelo Réu.
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FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Os factos que importam para a decisão do recurso são os que constam do antecedente relatório, considerando-se ainda o conteúdo dos articulados das partes, que aqui se dão por reproduzidos.

O DIREITO

Na contestação o Réu referiu que:

Os trabalhos e fornecimentos em causa foram efectuados e concluídos em Dezembro de 1999.

Entre Dezembro de 1999 e a data da citação do R. para a presente acção – 18.06.2004 – decorreram muito mais de dois anos.

Presume-se assim e nos termos do disposto no artigo 317º - b) do CC o pagamento do preço do referido fornecimento,

Que, de resto, foi efectuado.

Alegou ainda que:
12º
Todos os trabalhos em causa foram concluídos no final de Novembro de 1999.
13º
Nesta data, o R. já tinha entregue ao A. a quantia de Esc. 2.000.000$00, através do cheque n.º 5841739684 da Nova Rede – Banco Comercial Português (...).
14º
Em Janeiro de 2000, o R. entregou mais Esc. 500.000$00 ao A., através do cheque n.º 5841741430, também da Nova Rede – Banco Comercial Português (...).
17º
(...) o R. entregou ao A. o cheque n.º 5841741139 da Nova Rede, no montante de Esc. 500.000$00 (...).

Por sua vez, na réplica, o Autor afirmou o seguinte:
11º
Os cheques a que o Réu se refere nos arts. 13º, 14º e 17º da sua contestação, foram entregues ao Autor pelo Réu para liquidação de outros serviços e fornecimentos por ele efectuados a pedido daquele.
14º
Trabalhos esses que foram efectivamente realizados e que são os que constam da relação anexa à factura n.º 663, que ora se junta sob doc. n.º 1.

Perante estas alegações das partes, vejamos se a excepção invocada tinha condições para proceder.

As prescrições presuntivas previstas nos arts. 316º e 317º do CC fundam-se na presunção do cumprimento - v. art. 312º - e distinguem-se das prescrições extintivas.
Almeida Costa, em “Direito das Obrigações”, 2ª edição, pág. 534, refere que as prescrições presuntivas se explicam pelo facto de as obrigações a que respeitam costumarem ser pagas em prazo bastante curto e não se exigir por via de regra quitação, ou pelo menos não se conservar por muito tempo essa quitação. Decorrido o prazo legal, presume a lei que o pagamento foi efectuado.
Dispõe a al. b) do art. 317º do CC que prescrevem no prazo de dois anos “os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor”.
Assim, os créditos dos comerciantes ou industriais (profissionais de certo ramo de actividade económica lucrativa) só prescrevem no espaço de dois anos se as coisas vendidas ou os serviços prestados se não destinaram à actividade económica do devedor, ou porque ele não se dedique a tal actividade, ou porque, dedicando-se, destine a coisa ou o serviço para o seu uso pessoal.
Temos, então, que são elementos constitutivos da prescrição presuntiva prevista no art. 317º, al. b) são: o decurso do prazo de dois anos após a venda; não ser o devedor comerciante, ou, sendo-o, não ter destinado tais objectos ao seu comércio – v. Ac. STJ de 06.12.1990, BMJ 402, pág. 532.
É ao devedor que compete alegar e provar esses dois elementos, na medida em que a prescrição presuntiva constitui defesa por excepção, cuja matéria se dirige a impedir ou extinguir o direito do credor – art. 342º, n.º 2, do CC.
E se é verdade que o Réu alegou e provou o primeiro desses elementos (cfr. data da factura de fls. 6 e data da propositura da acção), não é menos verdade que em relação ao segundo elemento constitutivo da prescrição presuntiva nada disse (a identificação do Réu no cabeçalho da petição inicial e a referência constante da parte final do art. 10º da contestação não satisfazem os requisitos mínimos dessa alegação, ao contrário do que a apelada defende na conclusão 3ª das contra-alegações).
Por conseguinte, a excepção em causa deve improceder.

Mesmo que assim não fosse, e só por mero exercício académico, não deveria a Mmª Juiz julgar procedente a referida excepção logo no saneador, como o fez.
Com efeito:
A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo só pode ser ilidida por confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão - art. 313º, n.º 1.
O n.º 2 do mesmo artigo adverte que a confissão extrajudicial só releva quando for realizada por escrito.
Considera-se confessada a dívida se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento – art. 314º.
A boa interpretação dos preceitos que temos vindo a citar é a de que na prescrição presuntiva o decurso do prazo legal (no caso, dois anos) não extingue a obrigação. O que ele origina é a presunção do seu cumprimento, libertando dessa forma o devedor do ónus da prova do pagamento. Mas não o dispensa, ao contrário do que sucede na prescrição extintiva, da alegação de que pagou – v. Ac. Rel. Porto, de 13.12.1993, CJ, Ano XVIII, Tomo V, pág. 240; Ac. Rel. Porto de 28.11.94, CJ Ano XIX, Tomo V, pág. 215; Ac. Rel. Coimbra, de 17.11.1998, Ano XXIII, Tomo V, pág. 16; e Ac. Rel. Lisboa, de 13.04.2000, sumariado no BMJ n.º 496, pág. 303. De facto, constituindo o pagamento o facto principal em que a excepção da prescrição presuntiva assenta, tem o Réu de o alegar, não bastando a simples invocação do prazo prescricional – v. Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, pág. 302.
O Réu, na contestação, disse que pagou – cfr. 4º. O Autor, na réplica, contrapôs que esse pagamento teve por destino outros serviços por este prestados àquele – cfr. art. 11º da réplica. Admitindo que se completavam na alegação do Réu os demais elementos constitutivos da excepção, aquilo de que ele beneficiava era do cumprimento da dívida accionada – art. 312º do CC. Mas esta presunção não retira ao credor a viabilidade da prova da existência da dívida, embora limitando a prova à confissão, judicial ou extrajudicial, segundo os apertados parâmetros dos artigos 313º e 314º - v. Acs. do STJ de 14.10.1999 e de 27.11.2003, respectivamente, no BMJ 490, pág. 223, e no processo n.º 03B3336, em www.dgsi.pt.
Como bem se assinala no recurso, podia o apelante requerer o depoimento de parte do apelado, entendendo-se a eventual recusa deste em depor como confissão tácita da dívida – v. arts. 313º, 314º e 356º, n.º 2, do CC.
A possibilidade de o credor provar a dívida, apesar da prova só poder resultar de confissão do devedor, é uma porta que não deve fechar-se na ocasião do saneamento do processo – v. último dos citados acórdãos. Como se diz nesse aresto, “é uma oportunidade que não deve perder-se, a benefício de uma verdade material contra uma verdade presumida”.
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DECISÃO

Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a decisão da 1ª instância, julgando-se improcedente a excepção da prescrição presuntiva alegada pelo Réu na contestação e determinando-se o prosseguimento dos autos.
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Custas pelo apelado.
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Porto, 4 de Outubro de 2005
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge