Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0637343
Nº Convencional: JTRP00040064
Relator: TELES DE MENEZES
Descritores: INSOLVÊNCIA
PESSOA SINGULAR
REQUISITOS
ACTIVO
PASSIVO
Nº do Documento: RP200702080637343
Data do Acordão: 02/08/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO O AGRAVO.
Indicações Eventuais: LIVRO 706 - FLS 43.
Área Temática: .
Sumário: A exigência de passivo superior ao activo como condição da decretação da insolvência, se não aplica às pessoas singulares.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
“B………., Lda.” veio a juízo peticionar a declaração de insolvência de C………. e mulher D………., invocando um crédito de € 24.939,96, acrescido de juros de mora, bem como outras dívidas a outros fornecedores, e alegando que os bens de que os requeridos são titulares são insuficientes para pagar todas as suas dívidas, revelando o montante em dívida, bem como o tempo decorrido desde o vencimento, a impossibilidade de os requeridos cumprirem pontualmente as suas obrigações, quer para com a requerente quer para com os demais credores, tendo várias execuções pendentes.

Por despacho de fls. 12 convidou-se a Requerente a apresentar diversos documentos, bem como a juntar nova petição onde identificasse os credores que, no artigo 10.º da oferecida diz conhecer, e a concretizar factualmente o juízo conclusivo, exposto no artigo 12.º, da alegada insuficiência dos bens (activo) dos devedores para fazer face às dívidas dos mesmos (passivo).
A requerente acatou o convite.

Na nova petição a Requerente alega que os Requeridos lhe são devedores do montante de € 24.939,96 (relativo a quatro letras emitidas, respectivamente, em 27/10/2001, 12/01/2002, 27/10/2002 e 27/10/2003, que titulam as quantias de € 7.481,97, € 2.493,99, € 7.482 e € 7.482), acrescido dos juros moratórios.
Refere ainda que tem conhecimento que os Requeridos têm inúmeros fornecedores a quem não pagam as quantias que lhes são devidas, tendo sido reclamados créditos na acção executiva 265/2001, do mesmo Tribunal, pela Segurança Social, no valor de € 1.316,17, pelo E………., no montante de € 15.651,09, bem como pela Repartição de Finanças de Mondim de Basto, no montante de € 7.836,81.
Afirma ainda a Requerente que tem conhecimento de credores aos quais os Requeridos devem elevadas quantias, nomeadamente, a Companhia de Seguros X………. no processo …/05.2TBMDB (a Requerente não indica o valor que a Companhia de Seguros X………. reclama nos autos referidos, sendo, contudo, do conhecimento do Sr. Juiz a quo, por virtude do exercício das suas funções, que o valor em causa é de € 389,91).
Mais refere a Requerente que os Requeridos são ainda executados numa execução por custas no montante € 226,95, a qual corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras sob o n.º …/04.2TBFLG.
Afirma a Requerente que os Requeridos são proprietários de um imóvel sito em ………., em Mondim de Basto, cujo valor rondará os € 80.000,00, e de alguns móveis, no valor de € 10.000,00.

II.
Foi proferido despacho de indeferimento liminar, por se considerar que a requerente afirmou que os requeridos têm património de valor superior ao das dívidas que enumeram, não podendo, por isso, concluir-se que estão impossibilitados de cumprir as suas obrigações.

III.
Agravou a requerente, extraindo-se das suas conclusões as seguintes:
E. Quando o legislador usou, no art. 20.º/1 do CIRE a expressão “verificando-se algum dos seguintes factos (…)”, quis significar que não é preciso mais do que um daqueles indicadores.
F. O Tribunal recorrido indeferiu o pedido de insolvência com fundamento no facto de os devedores serem titulares de bens (activo) avaliados em montante superior à dívidas do mesmo (passivo).
G. Entende a recorrente que o Sr. Juiz não decidiu de acordo com a lei aplicável, devendo ordenar o prosseguimento dos autos, a fim de se apurar se o activo dos devedores é manifestamente superior ao passivo dos mesmos.
H. Tanto mais que não é ao credor que incumbe a prova do estado de insolvência, mas ao devedor que incumbe a prova do estado de solvência, nos termos do art. 30.º/4 do CIRE.
I. Em qualquer caso, nunca poderia o Tribunal indeferir a insolvência com base neste fundamento, uma vez que este requisito se aplica somente às pessoas colectivas e patrimónios autónomos, nos termos do art. 3.º/2 do CIRE, o que não é o caso.
J. A recorrente, na petição limitou-se a indicar os credores de que tinha conhecimento, mas isso não significa que os requeridos não tenham outros credores a quem devam elevadas quantias, sendo que é o devedor que, na oposição, deverá indicar os cinco maiores credores, e só então poderá apurar-se se o activo é superior ao passivo, já que o credor não é obrigado a conhecer os cinco maiores credores do devedor.
K. Além de que o único pressuposto objectivo para a declaração de insolvência é a própria insolvência, que consiste na impossibilidade de cumprir obrigações vencidas, como refere o ponto 19 do Preâmbulo do CIRE.
L. Os factos alegados na p.i. preenchem os pressupostos ou requisitos indiciadores da insolvência mencionados nos art.s 3.º e 20.º-a), b) e g)- i) e ii) do CIRE.
M. Ora, é patente que a requerente alegou factos suficientes para que a acção devesse prosseguir os seus termos, não havendo razão para se indeferir a petição.
N. A decisão violou as disposições dos art.s 3.º/1 e 2 e 20.º-a), b) e g)-i) e ii) e 30.º/4 do CIRE.
Pede a revogação do despacho recorrido, determinando-se o prosseguimento dos autos.

Apesar de citados, os requeridos não responderam.

O Sr. Juiz sustentou o seu despacho.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

IV.
Com interesse para a decisão há os seguintes elementos de facto:
1. A Requerente alega que os Requeridos são devedores a um conjunto de credores, quantificando alguns dos créditos no montante de € 50.360,89, nestes termos: € 24.939,96 à requerente; € 1.316,17 à Segurança Social; € 15.651,09 ao E……….; € 7.836,81 à Repartição de Finanças de Mondim de Basto; € 389,91 à Companhia de Seguros X……….; e € 226,95 na execução por custas.
2. Segundo a Requerente, os Requeridos têm património avaliado, por aquela, em € 90.000,00, sendo € 80.000,00 relativos a um imóvel sito em ………., em Mondim de Basto; e € 10.000,00 referentes a bens móveis.

V.
A questão colocada no agravo consiste em saber se o facto de, segundo a requerente, os requeridos terem um património de valor superior ao das dívidas que quantifica, a impossibilita de requerer a insolvência.

No despacho agravado fez-se esta consideração: «Constata-se assim que, de acordo com a Requerente, os devedores são titulares de bens (activo) avaliados em montante superior às dívidas dos mesmos (passivo).»
Parece que esta conclusão não corresponde exactamente ao que foi alegado pela requerente.
Com efeito, embora expresso de forma não inteiramente correcta do ponto de vista gramatical, o que a requerente disse foi que tinha conhecimento de que os requeridos têm inúmeros fornecedores a quem não pagam as quantias que lhes são devidas, enumerando, em seguida, alguns deles – art. 10.º do requerimento inicial.
Por conseguinte, as dívidas não se resumirão às quantificadas, mas também a outras, relativamente às quais a requerente não indicou nem o nome dos credores nem o valor dos créditos sobre os requeridos.
Daí que se nos afigure prematuro concluir que o activo dos requeridos é superior ao passivo.

Mas independentemente dessa razão, quer-nos parecer que a exigência de um passivo superior ao activo como condição da decretação da insolvência, se não aplica às pessoas singulares.
Segundo Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, I, pág. 59, no que respeita à definição da situação de insolvência, releva o art. 3.º do CIRE, mantendo-se o critério geral globalmente idêntico ao da lei anterior, e apontando para a impossibilidade de cumprimento de obrigações, como pedra de toque fundamental do instituto, embora considere também insolventes as pessoas colectivas e os patrimónios autónomos, por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, quando o respectivo passivo seja manifestamente superior ao activo.
Efectivamente, isto é o que resulta do disposto no art. 3.º/1 e 2 do CIRE. Assim, no n.º 1 pode ler-se que se considera em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas; enquanto no n.º 2 se estabelece que «As pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliado segundo as normas contabilísticas aplicáveis».
Os mesmos autores, l. c., pág. 68, dizem que nesta norma se caracteriza o pressuposto substantivo cuja verificação constitui condição sine qua non do desencadeamento do regime que consagra, estabelecendo os contornos da situação de insolvência.
Assim, no n.º 1 consagra-se o conceito básico de insolvência, traduzido na impossibilidade de cumprimento pelo devedor das suas obrigações vencidas – ibid. pág. 69. Esta impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas, relevando para a insolvência a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos – ibid., pág. 70-71.
O n.º 2 do artigo integra uma inovação, que tem um precedente no n.º 2 do art. 1174.º do CPC antigo, que admitia a falência das sociedades de responsabilidade limitada com fundamento «na insuficiência manifesta do activo para satisfação do passivo» - ibid. pág. 72.
A relação entre o passivo e o activo releva, agora, relativamente a qualquer pessoa colectiva e património autónomo, desde que nenhuma pessoa singular responda, pessoal e ilimitadamente, pelas dívidas da entidade insolvente, exigindo-se, ainda, uma desconformidade significativa do défice do activo, que tem de traduzir-se na superioridade manifesta do passivo, de modo a constituir um índice seguro de insolvabilidade, por revestir uma expressão tal, que de acordo com a normalidade da vida, torna insustentável, a prazo, o pontual cumprimento das obrigações do devedor – ibid. pág. 73.
Assim, só há que atender à relação entre o passivo e o activo quando estejam em causa pessoas colectivas e patrimónios autónomos.
No caso das pessoas singulares, como é o dos requeridos, há que atentar na impossibilidade de cumprimento, pelo devedor, das suas obrigações, nos termos do n.º 1 do art. 3.º.
Preenchendo-se algum dos requisitos do art. 20.º/1 do CIRE, é possível a um credor requerer a declaração de insolvência.
Ora, a requerente alegou que os requeridos deixaram de dar satisfação à generalidade dos seus compromissos, em termos que projectam a sua incapacidade de pagar, preenchendo o requisito previsto na alínea a) do n.º 1 do indicado preceito.
Assim, merece provimento o recurso.

Face ao exposto, concede-se provimento ao agravo e revoga-se o despacho recorrido, determinando-se a sua substituição por outro que mande prosseguir os autos.

Sem custas.

Porto, 8 de Fevereiro de 2007
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
Fernando Baptista Oliveira