Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
144/09.3TBPNF.P1
Nº Convencional: JTRP00043987
Relator: AMARAL FERREIRA
Descritores: INVENTÁRIO
HERDEIRO DECLARADO FALIDO
ADMINISTRADOR DA MASSA FALIDA
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RP20100415144/09.3TBPNF.P1
Data do Acordão: 04/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: Estando os bens que integram o património a partilhar em processo de inventário incluídos na massa falida, tem o respectivo administrador legitimidade, enquanto representante do interessado falido, para requerer processo de inventário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: TRPorto
Apelação nº 144/09.3TBPNF.P1 - 2009.
Relator: Amaral Ferreira (522).
Adj.: Des. Ana Paula Lobo.
Adj.: Des. Deolinda Varão.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

1. Massa Falida de B…………., representada pelo seu administrador, requereu, no Tribunal da Comarca de Penafiel, em 20/1/2009, processo de inventário para partilha da herança aberta por óbito de C………….., alegando que, tendo a inventariada falecido em 19/4/2003, sem deixar testamento e no estado de viúva, sucedeu-lhe, como único e universal herdeiro, o filho B……………., o qual, por sentença de 2/2/2004, proferida no âmbito do processo nº …../03.1, a correr termos no Tribunal recorrido, foi declarado falido, e que veio a falecer no dia 13 de Julho de 2007, tendo deixado como herdeiros o cônjuge e três filhos, encontrando-se a herança, constituída por bens móveis e imóveis, indivisa.

2. Conclusos os autos, foi proferido despacho que, considerando que o requerente não tinha legitimidade para requerer o inventário, por não ser interessado directo na partilha, determinou a absolvição da instância.

3. Dele discordando, apelou o requerente que, nas respectivas alegações, formula as seguintes conclusões:
………………….
………………….
…………………
…………………
…………………
…………………
4. Remetidos os autos a este Tribunal, foi ordenada a baixa dos autos ao Tribunal recorrido para que fosse dado cumprimento ao disposto no artº 234º A, nº 3, do Código de Processo Civil - citação dos interessados tanto para os termos do processo como para os do recurso.

5. Cumprido o disposto no preceito legal referido em 4., com citação pessoal de todos os interessados, à excepção do interessado D…………., que foi citado editalmente, sem que nenhuma oposição tenha sido deduzida, tendo os autos sido de novo remetidos a este Tribunal, colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

1. A matéria de facto a ter em consideração na decisão do recurso é a que acima se relatou.

2. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o Tribunal apreciar e conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso - artºs 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil -, que nos recursos se apreciam questões e não razões e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, a única questão suscitada no recurso consiste em saber se o requerente e ora apelante tem legitimidade activa para requerer, como requereu, o presente inventário.
O despacho recorrido decidiu que ao requerente não assiste aquela legitimidade por não ser interessado directo na partilha, nos termos do nº 1 do artigo 1327º do Código de Processo Civil.
Todavia, o recorrente defende posição contrária, conforme decorre das conclusões acima sumariadas.

Dos elementos constantes dos autos, verifica-se que:
- Por sentença de 2/2/2004, proferida no âmbito do processo nº …../03.1, a correr termos no Tribunal recorrido, foi B………….. declarado falido;
- A inventariada faleceu em 19/4/2003, sem deixar testamento e no estado de viúva, sucedeu-lhe, como único e universal herdeiro, o falido;
- O requerente foi nomeado administrador da massa falida de B…………….

O conceito de legitimidade processual afere-se pela regra comum e geral contida no artº 26º, nº1 do Código de Processo Civil, segundo o qual “o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer”.
Não é, assim, um qualquer interesse que confere legitimidade para agir nem basta um mero interesse indirecto ou reflexo.
Este princípio aferidor do conceito de legitimidade tem também consagração no processo de inventário, pois que estipula o artº 1327º, nº1, al. a) do Código de Processo Civil, que, de entre os interessados, só os interessados directos na partilha têm legitimidade para intervirem, como partes principais, em todos os actos e termos do processo.
O ter ou não ter interesse na partilha é que comanda a legitimidade para requerer ou intervir no inventário.
A decisão recorrida, depois de fazer a distinção entre “interessados directos na partilha”, que são os herdeiros do autor da sucessão, aos quais a lei atribui uma série de poderes exclusivos, como o de requerer o inventário, e entre “interessados”, que são todos os que são citados para os termos do inventário, nos quais incluiu os legatários, donatários e credores da herança, considerou que, constituindo a requerente um património autónomo distinto da pessoa jurídica do falido, ela não era herdeira da inventariada, pelo que não tinha interesse directo na partilha, carecendo de legitimidade para requerer o inventário.
Concordando-se embora com as premissas da decisão recorrida, discorda-se, todavia, da conclusão, já que a questão se coloca, não na distinção entre “interessados directos na partilha” e “interessados” para requerer o inventário, mas na qualidade em que o requerente instaurou o inventário, ou seja como administrador da massa falida do herdeiro da inventariada, falecida antes da declaração de falência, pelo que se trata antes de uma questão de representação do falido, como pertinentemente salienta o recorrente.

Sendo a sentença que declarou a falência de 2/2/2004, é aplicável ao caso o CPEREF (Código de Processo Especial de Recuperação de Empresas e de Falência), aprovado pelo DL 132/93, de 23/4, com as alterações do DL 315/98, de 20/10, porquanto o CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18/3, apenas entrou em vigor em 15/9/2004.
A falência comporta um processo colectivo, ou concursal, de pagamento aos credores, constituindo um processo de liquidação do património do falido, em benefício dos credores.
O efeito primordial da declaração de insolvência quanto ao devedor é de natureza patrimonial e reflecte-se nos seus poderes de actuação nesse domínio da sua esfera jurídica.
Prescrevia o artº 147º, nº 1, do CPEREF, que a “declaração de falência priva imediatamente o falido, por si ou, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, pelos órgãos que o representam, da administração e do poder de disposição dos seus bens presentes e futuros, os quais passam a integrar a massa falida, sujeita à administração e poder de disposição do liquidatário”.
E o nº 2 estabelecia que “O liquidatário judicial assume a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência”.
Após a sentença declaratória da falência, os negócios jurídicos realizados pelo falido são ineficazes em relação massa, não produzem efeitos que a afectem. O falido fica numa situação de indisponibilidade quanto aos bens que integram a massa falida; sendo-lhe retirados os poderes de disposição desse bens, os actos praticados em relação a esses bens não afectam a massa falida. Os bens continuam na titularidade do falido, mas deles não pode dispor e qualquer acto praticado que lhes respeite é ineficaz.
A inibição do falido respeita aos efeitos patrimoniais relativos à falência, apenas sendo inoperante quanto às matérias de natureza pessoal e às patrimoniais a ela estranhas (Carvalho Fernandes e João Labareda, CPEREF, 2ª ed, pág. 372).
A inibição do falido (artigo 148º) determina uma incompatibilidade da situação de falido para o exercício das actividades aí previstas, incompatibilidade destinada a salvaguardar, não os próprios interesses, mas os dos credores.
Sobre a inoponibilidade à massa falida dos negócios do falido posteriores à declaração de falência dispunha o artº 155º do CPEREF e sobre os actos que podem ser resolvidos em benefício da massa falida (designadamente a partilha celebrada menos de um ano antes da data da abertura do processo conducente à falência…) dispunha o artº 156º do mesmo Código.
Ao liquidatário judicial, com a cooperação e fiscalização da comissão de credores, cabe o encargo de preparar o pagamento das dívidas do falido à custa do produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que integram o património dele” (nº 1, do artigo 134º, do CPEREF), que integra a massa falida.
E determina o artigo 141º do mesmo Código que “a administração dos bens que compõem a massa falida, durante o período da liquidação, compete ao liquidatário judicial”, podendo os seus actos ser impugnados por esta comissão e pelo falido (artº 136º) em requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na ilegalidade dos actos ou na sua inconveniência para os interesses da massa falida.
Nas incumbências ou funções do liquidatário está a de “representar a massa em juízo” - artº 134º, nº 4, a) do CPEREF.
Já o revogado artigo 1189º do Código de Processo Civil, prescrevia que “a declaração de falência produz a inibição do falido para administrar e dispor de seus bens havidos ou que de futuro lhe advenham …” - nº 1 -, passando o administrador da falência a “representar o falido para todos os efeitos, salvo quanto ao exercício dos seus direitos exclusivamente pessoais ou estranhos à falência” - nº 3.
A declaração de falência produz a inibição do falido para administrar e dispor de seus bens havidos ou que de futuro lhe advenham. O liquidatário assumia a representação do falido para todos os efeitos, salvo os direitos exclusivamente pessoais ou os estranhos à falência.
Face ao disposto no citado artº 147º do CPEREF, declarada a falência, o falido fica privado por si ou, no caso de se tratar de sociedade ou pessoa colectiva, pelos órgãos que a representem, da administração e do poder de disposição dos seus bens, que passam a integrar a massa falida e ficar sujeitos á administração do liquidatário, assumindo o liquidatário a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência.
As restrições à actuação no campo patrimonial (citado artº 147º) importam uma indisponibilidade relativa de bens, de os administrar e deles dispor, de modo a evitar efeitos prejudiciais em relação à massa falida.
Resulta do espírito das citadas normas que a declaração de insolvência é de natureza patrimonial que se reflecte nos poderes de actuação do falido nesse domínio da esfera jurídica e que os poderes de que o devedor fica privado são atribuídos ao administrador da insolvência.
Ora, o recorrente requereu processo de inventário por óbito da mãe do falido, com vista à partilha dos bens e a apurar quais os que cabem ao falido, pelo que é inquestionável que a partilha é matéria que interessa à falência, inserindo-se nos poderes de representação do falido por parte do requerente, pelo que a apelação não pode deixar de proceder.

Aliás, embora ao caso não seja aplicável o CIRE, o regime nele estabelecido não diverge substancialmente do anterior, sendo até mais desenvolvido e completo.
Na verdade, estabelece o artº 81º desse diploma legal, que a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (nº 1); interdita ao devedor a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros susceptíveis de penhora, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo (nº 2); que o administrador da insolvência assume todos os poderes de que o devedor fica privado bem como a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (nsº 1 e 3 a 5) e que são ineficazes os actos realizados pelo insolvente em contravenção ao disposto nºs 1 e 2 (nº6).

Pode, assim, concluir-se que estando os bens que integram o património a partilhar em processo de inventário incluídos na massa falida, tem o respectivo administrador legitimidade, enquanto representante do interessado falido, para requerer processo de inventário.

III. DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente a apelação e, consequentemente, declarando o requerente parte legítima para requerer o inventário, em revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento do inventário nos termos requeridos.
*
Sem custas.
*
Porto, 15 de Abril de 2010
António do Amaral Ferreira
Ana Paula Fonseca Lobo
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão