Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0627333
Nº Convencional: JTRP00040110
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ARRENDAMENTO
Nº do Documento: RP200703060627333
Data do Acordão: 03/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: LIVRO 242 - FLS. 192.
Área Temática: .
Sumário: I- A previsão de especificação separada das excepções na contestação a que alude o art. 488.º do CPC constitui mera previsão sem sanção, pelo que para que a excepção de caducidade seja conhecida pelo Tribunal, basta que seja alegada a factualidade que a integra.
II- O sentido da expressão “conviver” a que alude o art. 85.º n.º1, b) do RAU deve entender-se como “a conjunta ocupação de uma casa em termos de agregado familiar estabilizado, de acordo com as circunstâncias concretas em que as pessoas vivem e se relacionam”, independentemente de o descendente viver sempre e sem interrupção na companhia do seu ascendente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo sumário nº……/05.5TBVPA, da comarca de Vila Pouca de Aguiar.
Autores – B………….. e mulher C……………...
Réus – D………….. e E…………..

Pedido
a) Que se declare que os AA. são os legítimos proprietários do imóvel identificado nos artºs 1º e 2º da petição inicial.
b) Que se condenem os RR. a reconhecer tal direito.
c) Que se declare insubsistente, ilegal e de má fé a ocupação e a utilização que os RR. vêm fazendo da mencionada casa de habitação e condená-los a restitui-la de imediato, com todos os seus pertences, livre de pessoas e coisas.
d) Que se condenem solidariamente os RR. a pagar aos AA. a quantia de € 4 100, correspondente às rendas ou retribuições que adviriam da locação do imóvel desde Novembro de 2001, até ao presente, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação, até integral e efectivo pagamento;
e) Que se condenem solidariamente os RR. a pagar aos AA. € 100, por cada mês ou fracção, desde a propositura da acção e até efectiva restituição do imóvel, com juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação e até efectivo pagamento.
f) Que se condenem solidariamente os RR. no pagamento da indemnização que se vier a liquidar em execução de sentença, relativa aos danos e estragos causados pelos RR. no imóvel, até à efectiva restituição deste aos AA.

Tese dos Autores
Os Autores são proprietários de um prédio urbano, constituído por casa de rés-do-chão e um andar, em ………, Vª Pª de Aguiar, que adquiriram por contrato de compra e venda e sobre o qual, por si e antepossuidores, praticaram os actos de posse necessários à aquisição por usucapião.
Os RR. vêm ocupando o imóvel sem título que legitime a ocupação, já que, tendo tal prédio sido arrendado a seus pai e mãe, com o falecimento de seu pai, em 1999, os RR. abandonaram a casa dos AA. e foram viver para casa de uma irmã, regressando em 2001, ocupando ilicitamente a casa.
Se o prédio se encontrasse desocupado, os AA. poderiam arrendá-lo e auferir a renda correspondente.
Tese dos Réus
Em data do ano de 1970, os então proprietários do prédio F………….. e mulher G…………… deram-no verbalmente de arrendamento aos pais do Réu, H…………. e esposa I……………….
Já antes da aquisição do prédio pelos AA., em 1992, estes recebiam as rendas mensais e emitiam recibos, subscritos por uma filha.
Com o falecimento do pai do Réu, continuaram seus filhos a habitar o arrendado, como já vinham fazendo desde os seus 3 e 1 ano de idade, respectivamente.
Os AA. e antecessores nunca quiseram reduzir a escrito o contrato.

Sentença
Na sentença proferida pela Mmª Juiz “a quo”, decidiu-se:
a) Declarar que os autores B………… e C………… são titulares da última inscrição de aquisição na Conservatória do Registo Predial de Vila Pouca de Aguiar, respeitante ao prédio urbano, casa de habitação, composto por rés-do-chão e 1º andar, sito no lugar de “…………”, em ……….., freguesia de Vila Pouca de Aguiar, inscrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Pouca de Aguiar sob o n.º 00525, da mesma freguesia (inscrição G-02), e inscrito na respectiva matriz sob o art. 533, daquela freguesia;
b) Reconhecer a caducidade do ajuizado contrato de arrendamento;
c) Condenar os réus a entregarem aos Autores, livre de pessoas e bens, casa de habitação, sita no lugar de “………”, em ………….., freguesia de Vila Pouca de Aguiar, inscrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Pouca de Aguiar sob o n.º 00525, e inscrito na respectiva matriz sob o art. 533, da mesma freguesia;
d) Absolver os réus dos demais pedidos formulados pelos autores.

Conclusões do Recurso de Apelação dos Réus
1 – A sentença condena em objecto diverso do que se pediu, e é nula, por força dos artºs 660º nº2, 661º nº1 e 668º nº1 als. d) e e) C.P.Civ., quando declara os AA. titulares da última inscrição de aquisição na Conservatória do Registo Predial e reconhece a caducidade de um contrato de arrendamento, visto que os AA. apenas pediram que o Mmº Juiz decidisse que os AA. são legítimos proprietários do imóvel, que se condenassem os RR. a reconhecer o direito de propriedade dos AA. e que se declarasse insubsistente, ilegal e de má fé a ocupação e a utilização da casa de habitação pelos RR., com restituição imediata aos AA.
2 – O Mmº Juiz confundiu os termos de uma acção de reivindicação com os de uma acção de despejo; naquela, a causa de pedir é o direito de propriedade; nesta, a causa de pedir é o contrato de arrendamento, conjugado com factos que constituam fundamento da cessação do arrendamento. Não poderia assim, em acção de reivindicação, o Mmº Juiz declarar caduco um arrendamento e ordenar a entrega de uma casa de habitação aos AA., por violação das normas legais já citadas e artºs 1311º C.Civ. e 55ºss. RAU.
3 – A caducidade é uma excepção peremptória inominada, cuja apreciação não é do conhecimento oficioso do tribunal, devendo antes ser invocada pelas partes. Conhecendo de tal matéria, violou o Mmº Juiz o disposto nos artºs 660º nº2, 493º nº3 e 496º C.P.Civ., 303º e 333º nº2 C.Civ.
4 – De acordo com diversos depoimentos testemunhais (citados com apoio no disposto no artº 690º-A C.P.Civ.), o quesito 7º merecia resposta “provado”, o quesito 8º merecia resposta “provado”, o quesito 11º merecia resposta “não provado, tal como o quesito 13º.
5 – O contrato de arrendamento não caducou, já que o conceito de convivência previsto no artº 85º nº1 al.b) RAU não coincide com a noção de residência permanente, cuja violação é sancionada com a resolução do contrato; o que a lei exige é que o descendente, há mais de um ano à data da morte do arrendatário, com ele residisse e ali tivesse o seu lar e residência habitual, o que ficou provado nos autos.
6 – Nos presentes autos, embora pedido o reconhecimento do direito de propriedade sobre uma casa de habitação e a condenação dos RR. no reconhecimento do direito, o Mmº Juiz “a quo” apenas declarou os AA. titulares da última inscrição de aquisição na Conservatória do Registo Predial, o que sempre conduziria a que não pudessem os RR. ser condenados a entregar o prédio livre de pessoas e bens, seja por força de uma acção de reivindicação, seja por força de uma acção de cariz locatício.
7 – Violou a douta sentença recorrida o preceituado nos artºs 264º, 493º nº3, 496º, 515º, 660º nº2, 661º nº1, 664º, 668º nº1 als. c), d) e e) C.P.Civ., 303º, 333º nº2 e 1311ºss. C.Civ, 55ºss. e 85º nº1 al.b) RAU e houve-se com erro na interpretação dos factos dados por provados e contradição entre estes e a decisão final, em violação do disposto no artº 659º nº2 C.P.Civ.

Os apelados apresentaram contra-alegações, nas quais pugnam pela confirmação da sentença recorrida.

Factos Apurados em 1ª Instância
a) Em 6 de Novembro de 1992, F………….. e mulher, G…………, e B………… declararam, por escrito, perante notário, os primeiros que vendem ao segundo, por setecentos mil escudos, o prédio urbano, que consta de casa de habitação, sito no lugar de “…………”, em …………, freguesia de Vila Pouca de Aguiar, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 533, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Pouca de Aguiar, sob o n.º 525, da mesma freguesia, tendo o segundo declarado aceitar esta venda.
b) O prédio urbano, casa de habitação, composto por rés-do-chão e 1º andar, sito no lugar de “………….”, em ………….., freguesia de Vila Pouca de Aguiar, encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Pouca de Aguiar sob o n.º 00525, da mesma freguesia, a favor de B…………., c.c. C…………., mediante a inscrição G-02, e inscrito na respectiva matriz a favor do mesmo titular sob o art. 533, daquela freguesia.
c) Pelo menos, desde o dia 1 de Fevereiro de 1983, F………… e H………….. declararam verbalmente ajustar entre si, como senhorios e inquilinos, o arrendamento do prédio urbano identificado na alínea a).
d) Convencionou-se, ainda, que o prédio arrendado se destinava a habitação do segundo e seu agregado familiar que integrava seis filhos, incluindo os aqui RR., que nessa altura tinham 1 e 3 anos de idade.
e) O acordo a que se alude em c) não foi reduzido a escrito porque F……….. dizia que “têm tempo”.
f) H……….. liquidou a F…………. a renda respeitante ao prédio urbano identificado na alínea a) através dos documentos denominados “Recibo de Renda” juntos a fls. 38 (só doc. n.º 1) e 39 dos autos, cujo texto dou por inteiramente reproduzido.
g) Os documentos denominados “Recibo de Renda”, juntos a fls. 40 a 47 dos autos, cujo texto dou por inteiramente reproduzido.
h) Em 22 de Abril de 1999, faleceu H…………….
i) Os RR., até 1997, cozinharam, tomaram as refeições, pernoitaram, descansaram e receberam os amigos, no prédio urbano identificado na alínea a).
j) Após o falecimento do pai dos RR., o Réu E………… deixou de cozinhar, tomar as refeições, pernoitar, descansar e receber os amigos, no prédio urbano identificado na alínea a), e o Réu D…………., após o falecimento do pai, deixou de cozinhar, tomar as refeições e receber os amigos, no mesmo prédio urbano, mas continuou a pernoitar, nesse prédio, sem oposição dos AA.
k) Em Novembro de 2001, os RR. passaram a pernoitar e a descansar no prédio urbano identificado na alínea a).

Fundamentos
As várias questões colocadas pelo presente recurso podem ser sumariadas desta forma:
- saber se a sentença condenou em objecto diverso do que se pediu, e é nula, por força dos artºs 660º nº2, 661º nº1 e 668º nº1 als. d) e e) C.P.Civ., quando declarou os AA. (ao invés do peticionado) titulares da última inscrição de aquisição na Conservatória do Registo Predial e reconheceu a caducidade de um contrato de arrendamento, neste caso pelo facto de a caducidade constituir uma excepção peremptória inominada, cuja apreciação não é do conhecimento oficioso do tribunal, devendo antes ser invocada pelas partes;
- saber se, de acordo com os diversos depoimentos testemunhais, o quesito 7º merecia resposta “provado”, o quesito 8º merecia resposta “provado” e o quesito 11º merecia resposta “não provado”, tal como o quesito 13º;
- saber se o contrato de arrendamento não caducou, já que o conceito de convivência previsto no artº 85º nº1 al.b) RAU exige apenas que o descendente, há mais de um ano à data da morte do arrendatário, com ele residisse e ali tivesse o seu lar e residência habitual, o que haja ficado provado nos autos;
- saber se, tendo o Mmº Juiz “a quo” apenas declarado os AA. titulares da última inscrição de aquisição na Conservatória do Registo Predial, tal sempre conduziria a que não pudessem os RR. ser condenados a entregar o prédio livre de pessoas e bens, fosse por força de uma acção de reivindicação, fosse por força de uma acção de cariz locatício.
Apreciemo-las seguidamente.

I
Tendo os Apelados recorrido a juízo com invocação explícita da norma do artº 1311º nº1 C.Civ., incumbia-lhes demonstrar, como requisitos para a procedência da acção, que:
- eram proprietários do tracto de terreno reivindicado;
- tal tracto de terreno vinha sendo detido pelos Réus (englobando a identidade da coisa reclamada com a coisa detida); a prova da legitimidade da detenção (provada esta) incumbiria aos Réus.
Tal vem sendo abundantemente salientado pela jurisprudência, em exegese do normativo, conjugado com o disposto no artº 342º nº1 C.Civ. (ut S.T.J. 7/2/95 Col.I/67, S.T.J. 22/2/90 Bol.394/481, Ac.R.C. 9/12/87 Bol.372/476, Ac.R.E. 18/2/88 Bol.374/555, Ac.R.E. 26/1/89 Bol.383/632, Ac.R.E. 19/3/92 Bol.415/741, Ac.R.C. 4/5/93 Bol.427/592, Ac.R.P. 22/1/94 Col.I/216, Ac.R.P. 25/5/95 Col.III/223).
Ora, a demonstração da titularidade do direito de propriedade deve fazer-se pela prova do facto jurídico constitutivo do direito, seja a demonstração da posse (artº 1268º nº1 C.Civ.), seja a da aquisição originária (a consabida usucapião – artº 1287º C.Civ.), pela prova de factos que a lei reconheça como suficientes para presumir a existência da titularidade do direito (artº 7º C.Reg.Pred.), ou ainda pela prova da aquisição derivada do direito não contestada pelo demandado (artº 874º C.Civ. e, v.g., Ac.R.C. 26/5/87 Bol.367/576).
Apesar de os AA. terem alegado factos conducentes à aquisição originária do prédio reivindicado, tal matéria não teve consagração na Base Instrutória, talvez por se entender que a única questão que se encontrava em causa nos autos era a da prática de actos materiais de detenção sobre o prédio, praticados pelos RR., embora na assumida qualidade de arrendatários, isto é, de vinculados aos proprietários por um vínculo de natureza obrigacional.
A questão, de facto, não é discutida nesta instância e sobre a mesma nos não deteremos, certo que o registo do direito de propriedade, que beneficia os AA. (cf. o documento não impugnado de fls. 12 e v. dos autos), e que os RR. não contestaram como podiam, constitui presunção de que o direito existe na esfera jurídica deles AA. (cf. artº 7º C.Reg.Pred. e Vaz Serra, Revista Decana, 106º/281ss., cit. in Ac.R.C. 1/6/04 Col.III/13). A presunção legal, como se sabe, escusa a parte que beneficia de provar o facto a que conduz e os RR. não efectuaram a prova ou até a alegação do contrário, como lhes competia, se assim o entendessem, a fim de elidir a presunção.
Assim, a descrição predial e subsequente inscrição de acto translativo da propriedade, favorável aos AA., no Registo Predial, constitui presunção de que o direito lhes assiste e, como tal, por não contestado, deveria a sentença em crise tê-lo afirmado nos autos.
Na verdade, a acção de reivindicação constitui acção condenatória e não de simples apreciação ou meramente declarativa (artº 4º C.P.Civ.) – o tribunal não pode condenar o eventual infractor sem que antes se certifique da exacta existência e da violação do direito do demandante (cf. Ac.R.C. 1/6/04 cit.).
Nesse sentido, o primeiro segmento da decisão recorrida deveria tê-lo afirmado claramente, até porque a sentença parte do pressuposto da fundamentação de que “a propriedade do imóvel nunca foi objecto de controvérsia entre as partes, por se encontrar provada por documentos autênticos” – todavia, não retira da afirmação as conclusões que deveria retirar, limitando-se a declarar um facto base da presunção (o facto da inscrição registral), não já o facto que a presunção se destina a provar.
Na exegese do disposto no artº 668º nº1 al.d) 1ª parte C.P.Civ. (omissão de pronúncia), sustenta-se que o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões (Teixeira de Sousa, Estudos, pg. 220).
Ora, já vimos como a condenação do réu a reconhecer a propriedade do autor se encontra no cerne da acção de reivindicação.
Tendo-se convencido da procedência da acção, no seu iter argumentativo, mas não tendo conhecido, na parte dispositiva da sentença, expressa ou implicitamente, do referido pedido, foi cometida a nulidade a que se reporta o artº 668º nº1 al.d) 1ª parte C.P.Civ. (omissão de pronúncia).
A nulidade é suprível em recurso – artº 668º nº3 C.P.Civ.

II
Os Apelantes, porém, invocam a nulidade de sentença do artº 668º nº1 al.d) 2ª parte C.P.Civ. (excesso de pronúncia), para tanto alegando que a caducidade do contrato de arrendamento que se constatou existir, vinculando AA., como senhorios, e o pai dos RR., como arrendatário, não foi invocada no processo, nomeadamente por quem cabia invocar, os AA.
Além do mais, a caducidade não é do conhecimento oficioso – artº 660º nº2 2ª parte C.P.Civ.
Na verdade, resulta do disposto no artº 488º C.P.Civ. que “na contestação deve o réu individualizar a acção e expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor, especificando separadamente as excepções que deduza” (no caso dos autos, mutatis mutandis, tratava-se de matéria de contra-excepção, a alegar pelo autor, no articulado Resposta, em oposição à alegação do réu – artº 502º nº1 1ª parte C.P.Civ.).
Não cremos todavia que esta alegação possa colher.
Os Autores são muito claros quanto à existência prévia de um contrato de arrendamento urbano para habitação, incidindo sobre o prédio ora reivindicado, contrato que, como alegam, não se transmitiu para os RR., pois, na sua tese, esses RR. abandonaram a casa de habitação, “tendo caducado tal contrato”, não tendo os RR. accionado o direito a novo arrendamento, não invocando nem cumprindo o preceituado nos artºs 90º e 94º RAU (cf., por todos, o artº 39º da Resposta).
Tanto basta para que se considere alegada validamente a caducidade do contrato de arrendamento invocado pelos RR.
De resto, a previsão de especificação separada a que alude o artº 488º cit. constitui mera previsão sem sanção, como defende de há muito a doutrina – cf., no domínio da reforma de 95, Lopes do Rego, Comentários, pg. 327, S.T.J. 4/11/99 Col.III/73 e Ac.R.P. 12/5/03 Col.III/166; no domínio da redacção anterior, Ac.R.L. 29/6/95 Col.III/142, Ac.R.L. 22/10/92 Col.IV/186, Ac.R.C. 21/6/88 Bol.378/802 e Ac.R.C. 1/3/88 Col.II/47.
Neste aspecto, pois, entendemos que a decisão recorrida não padece de qualquer nulidade, nem sequer por fazer alusão à caducidade do contrato de arrendamento no dispositivo, declaração que, apesar de não expressamente incluída no pedido (podia perfeitamente ter sido omitida e talvez devesse sê-lo, a seguirmos um conceito algo rigorista de excesso de pronúncia), foi discutida nos autos e ajuda a compreender a decisão de condenação dos RR., dela constituindo um indispensável prius.
O suprimento da detectada nulidade da sentença e a apreciação do mérito da decisão passam porém, previamente, pela reanálise da factualidade provada nos autos.

III
Em causa encontra-se agora saber se, de acordo com os diversos depoimentos testemunhais, o quesito 7º merecia resposta “provado”, o quesito 8º merecia resposta “provado” e o quesito 11º merecia resposta “não provado”, tal como o quesito 13º.
No quesito 7º perguntava-se se “os RR., até 1999, cozinharam, tomaram sa refeições, pernoitaram, descansaram e receberam os amigos no prédio urbano identificado na al.A) dos Factos Assentes”. Respondeu-se: “provado apenas que os RR., até 1997, cozinharam, tomaram as suas refeições, pernoitaram, descansaram e receberam os amigos no prédio urbano identificado na al.A) dos Factos Assentes”.
A nosso ver, a resposta restritiva (em termos temporais) dada ao quesito não pode ser considerada.
Na verdade, sendo tal matéria retirada da alegação dos RR., defrontava-se o julgador com a alegação do artº 31º da resposta, nos termos do qual, “o pai dos RR. faleceu em 1999, tendo após essa triste ocorrência os RR. abandonado a casa dos AA., indo viver para ……., freguesia de Vila Pouca de Aguiar, para casa da irmã J………..”.
Ou seja: os AA. admitem que os RR. abandonaram a casa após 1999.
E não parece que uma tal espécie de “impugnação”, se de “impugnação” se tratasse, pudesse omitir o facto de, até 1999, os RR. “cozinharem, tomarem as suas refeições, pernoitarem, descansarem e receberem os amigos no prédio urbano identificado na al.A)”. Crer no contrário seria admitir ambiguidades como impugnação, o que sempre seria absolutamente contrário ao dever do réu lealmente falar claro no processo (cf. Ac.R.L. 9/5/89, Tribuna da Justiça, 6/190).
Portanto, se os RR. abandonaram a casa em 1999 é porque, até aí, nela viviam, ou seja, “cozinhavam, tomavam as suas refeições, pernoitavam, descansavam e recebiam os amigos”.
De acordo com o disposto no artº 659º nº3 C.P.Civ., na fundamentação da sentença o juiz deve levar em consideração os factos admitidos por acordo.
Como se escreveu no Ac.S.T.J. 10/2/00 Col.I/76, em exegese do Assento nº14/94 de 26/5/94, “a especificação e o questionário não passam de uma ferramenta destinada a disciplinar a fase de discussão e de julgamento, pois que o que irá servir de base à decisão judicial não são a especificação e o questionário “a se”, mas sim os factos que o tribunal venha a considerar adquiridos, sendo que tais peças processuais, porque de natureza meramente instrumental, pré-decisória, “morrem” com o julgamento feito pelas instâncias”.
A resposta ao quesito 7º deve assim ter-se por não escrita – artº 646º nº4 C.P.Civ. – considerando-se agora o teor do quesito 7º provado, mas por acordo das partes.
No quesito 8º perguntava-se se “os RR., após 1999, continuaram a cozinhar, a tomas as refeições, a pernoitar, a descansar e a receber os amigos nesse prédio”. Respondeu-se: “Provado apenas que o Réu D………., após 1999, continuou a pernoitar nesse prédio”.
Nada se pode objectar a uma tal resposta, a qual corresponde à prova efectuada em audiência.
Na verdade, os depoimentos das testemunhas J……….. (irmã dos RR.) e L……….. (conhecida e ex-moradora no local) demonstraram à saciedade que os RR. dificilmente vivem sem apoio de terceiros, sozinhos, pois são portadores de doenças e deficiências mentais que os obrigam a tratamentos e internamentos. Assim, de dia, frequentava o Réu D…………. a casa de sua irmã e de conhecidos, e também o Lar de Vila Pouca, onde lhe era dada comida e companhia; de noite, tinha que dormir na casa arrendada aos AA., já que sua irmã não lhe podia valer, não tendo condições para o abrigar.
Note-se que a testemunha J………… não declarou em audiência que seu irmão D………… só passou a pernoitar no locado após 1999; antes disse que não lhe dava alojamento, embora não pudesse garantir que ele, seu irmão, dormisse todos os dias no arrendado, tal desde 1997.
Tal depoimento mostrou-se mais detalhado e circunstanciado que o das testemunhas M………….. e N………….., que apenas conclusivamente disseram que não viam ninguém em casa entre 1999 e 2001, sensivelmente.
De salientar que a resposta é restrita ao R. D…………, já que seu irmão se encontrou detido, em cumprimento de prisão, sensivelmente desde 1996 e até 2001 (depoimento dos citados J………… e M………….).
No quesito 11º perguntava-se se “após o falecimento do pai dos RR., estes deixaram de cozinhar, tomar as refeições, pernoitar, descansar e receber os amigos no prédio urbano identificado em A)”. Respondeu-se restritivamente: “Após o falecimento do pai dos RR., o Réu E..………. deixou de cozinhar, tomar as refeições, pernoitar, descansar e receber os amigos, no prédio urbano identificado na alínea a), e o Réu D………………, após o falecimento do pai, deixou de cozinhar, tomar as refeições e receber os amigos, no mesmo prédio urbano, mas continuou a pernoitar, nesse prédio, sem oposição dos AA.”
A resposta não pode deixar de se considerar adequada, por força dos meios de prova anteriormente aduzidos e respectivo teor.
Finalmente, no quesito 13º perguntava-se se “em Novembro de 2001, os RR. passaram a cozinhar, tomar as refeições, pernoitar, descansar e receber os amigos no prédio urbano identificado em A)”. A resposta restritiva foi: “provado apenas que, em Novembro de 2001, os RR. passaram a pernoitar e a descansar no prédio urbano identificado na al.A) dos Factos Assentes”.
Não parece, porém, que haja uma verdadeira razão para a restrição.
Ficou amplamente esclarecido (depoimento de J…………., mas também de M………… e N…………., estes dizendo que, a partir de 2001, passaram a morar lá os dois) que os RR., a partir da saída do E……………. do estabelecimento prisional, refizeram uma parede da casa referida, e, com o apoio da irmã, renovaram algumas camas, mesas e máquina de lavar, por forma a aí passarem o seu tempo. Torna-se assim despiciendo saber se tomam todas as refeições no locado, cozinham sempre ou aí recebem amigos permanentemente.
A resposta ao quesito deve assim ser “provado”, como se decide, sem qualquer restrição.

IV
São os seguintes os factos provados, tal como se fixam nesta instância:
a) Em 6 de Novembro de 1992, F…………….. e mulher, G…………….., e B…………. declararam, por escrito, perante notário, os primeiros que vendem ao segundo, por setecentos mil escudos, o prédio urbano, que consta de casa de habitação, sito no lugar de “……….”, em ………, freguesia de Vila Pouca de Aguiar, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 533, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Pouca de Aguiar, sob o n.º 525, da mesma freguesia, tendo o segundo declarado aceitar esta venda.
b) O prédio urbano, casa de habitação, composto por rés-do-chão e 1º andar, sito no lugar de “…………”, em …………, freguesia de Vila Pouca de Aguiar, encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Pouca de Aguiar sob o n.º 00525, da mesma freguesia, a favor de B…………., c.c. C…………., mediante a inscrição G-02, e inscrito na respectiva matriz a favor do mesmo titular sob o art. 533, daquela freguesia.
c) Pelo menos, desde o dia 1 de Fevereiro de 1983, F………….. e H…………… declararam verbalmente ajustar entre si, como senhorios e inquilinos, o arrendamento do prédio urbano identificado na alínea a).
d) Convencionou-se, ainda, que o prédio arrendado se destinava a habitação do segundo e seu agregado familiar que integrava seis filhos, incluindo os aqui RR., que nessa altura tinham 1 e 3 anos de idade.
e) O acordo a que se alude em c) não foi reduzido a escrito porque F……………. dizia que “têm tempo”.
f) H…………. liquidou a F………….. a renda respeitante ao prédio urbano identificado na alínea a) através dos documentos denominados “Recibo de Renda” juntos a fls. 38 (só doc. n.º 1) e 39 dos autos, cujo texto dou por inteiramente reproduzido.
g) Os documentos denominados “Recibo de Renda”, juntos a fls. 40 a 47 dos autos, cujo texto dou por inteiramente reproduzido.
h) Em 22 de Abril de 1999, faleceu H……………...
i) Os RR., até 1999, cozinharam, tomaram as refeições, pernoitaram, descansaram e receberam os amigos, no prédio urbano identificado na alínea a) (facto admitido por acordo das partes).
j) Após o falecimento do pai dos RR., o Réu E…………. deixou de cozinhar, tomar as refeições, pernoitar, descansar e receber os amigos, no prédio urbano identificado na alínea a), e o Réu D…………., após o falecimento do pai, deixou de cozinhar, tomar as refeições e receber os amigos, no mesmo prédio urbano, mas continuou a pernoitar, nesse prédio, sem oposição dos AA.
k) Em Novembro de 2001, os RR. passaram a cozinhar, tomar as refeições, pernoitar, descansar e receber os amigos no prédio urbano identificado na alínea a).

V
Entrando no mérito da decisão, cumpre agora saber se o contrato de arrendamento não caducou, já que o conceito de convivência previsto no artº 85º nº1 al.b) RAU exija apenas que o descendente, há mais de um ano à data da morte do arrendatário, com ele resida e ali tenha o seu lar e residência habitual.
Nada se poderá objectar a esta conclusão do recurso.
Na verdade, a alegação dos AA. na Resposta à contestação centrou-se na caducidade do arrendamento pelo facto de os RR. não terem accionado o direito a novo arrendamento, nos termos dos artºs 90º e 94º RAU, quando, na realidade, o que estava em causa, na alegação dos RR., era saber-se se aos RR., ou a algum deles em particular, se havia transmitido o direito ao arrendamento, nos termos do artº 85º nº1 al.b) RAU, e que, dessa forma, não se pudesse dizer que o arrendamento havia caducado.
Nos termos da norma citada, o arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver descendente que com ele convivesse há mais de um ano.
Ora, vem demonstrado que ambos os RR. conviveram com o arrendatário seu pai, no locado, até à morte deste, em 1999, razão pela qual se transmitiu ao mais velho dos irmãos a posição de arrendatário – artº 85º nº2 RAU. Desta forma, a arrendamento não caducou, ao contrário do afirmado na sentença recorrida.
Diga-se, porém, que a interpretação dada, na sentença recorrida, de “convivência” como “habitar” ou “morar com alguém” se revela demasiado restritiva e afastada do espírito do legislado.
De facto, “a lei não exige que a convivência há mais de um ano se tenha processado “fisicamente” no local arrendado, parecendo que o conceito de convivência tem de ser interpretado habilmente: não deixa de ser beneficiário da transmissão o filho ausente do locado, internado num colégio, quando falece o pai; há que atender à especificidade dos casos concretos, sem com isso descurar o critério da vida em comum” (Januário Gomes, Arrendamentos para Habitação, pg.168).
Pôde assim igualmente esclarecer-se que o sentido da palavra convivência não implica um significado físico e material, exigindo-se que o descendente viva sempre e sem interrupção na companhia do seu ascendente – ao contrário, o que o RAU visava era proteger o agregado familiar constituído em termos de estabilidade, tutelando a situação de pessoas com vínculos de parentesco muito chegados que, vivendo com o arrendatário à morte deste, viessem a encontrar-se na situação angustiante de absoluta carência de casa para habitarem – facto que, diga-se de passagem, resultou amplamente demonstrado na condição vivencial e económica de miséria dos RR.
E não terá sido inadvertidamente que, no artº 85º nº1 al.b) RAU, se utilizou a expressão “convivesse”, em lugar da anteriormente usada no artº 1111º nº1 C.Civ., “vivessem” (esta sim implicando uma maior ideia de permanência física ou material).
Neste sentido, definiu-se claramente o conceito de convivência no Ac.R.P. 10/5/94 Col.III/198 como “a conjunta ocupação de uma casa em termos de agregado familiar estabilizado, de acordo com as circunstâncias concretas em que as pessoas vivem e se relacionam” (no mesmo sentido, cf. Ac.R.E. 4/7/96 Col.IV/277).
Ora, no caso dos autos, à data da morte do arrendatário seu pai, mesmo que o R. E…………. se encontrasse preso, tinha uma só alternativa previsível para quando regressasse do cumprimento de pena – integrar o agregado familiar de seu pai e regressar à casa onde viviam; também o R. D…………… podia não permanecer de dia no locado, mas se lá dormia, não podia deixar de ter o seu “centro” familiar situado no locado.
Do acervo de razões supra se há-de concluir que os RR. provaram a legitimidade da detenção que vêm fazendo do prédio reivindicado, por via de contrato de arrendamento transmitido por morte de seu pai e que, em consequência, a acção não pode proceder, impondo-se a revogação da sentença em crise, in totum, irrelevando a propriedade dos AA., que os RR. não contestam, por força da relação obrigacional invocada e que os liga, a eles RR., ao prédio reivindicado.

Resumindo a fundamentação:
I – Constituindo a acção de reivindicação procedimento condenatório e não de simples apreciação ou meramente declarativo (artº 4º C.P.Civ.) – o tribunal deve certificar-se da existência e da violação do direito de propriedade do demandante, se tal foi peticionado, declarando-o no dispositivo.
II - A previsão de especificação separada das excepções na contestação, a que alude o artº 488º C.P.Civ., constitui mera previsão sem sanção, pelo que, para que a excepção de caducidade seja conhecida pelo tribunal, basta que seja alegada a factualidade que a integra.
III - De acordo com o disposto no artº 659º nº3 C.P.Civ., na fundamentação da sentença o juiz deve levar em consideração os factos admitidos por acordo; nesse quadro, a resposta ao quesito que contrarie tal acordo deve ter-se por não escrita – artº 646º nº4 C.P.Civ.
IV – O sentido da expressão “conviver”, a que alude o artº 85º nº1 al.b) RAU, deve entender-se como “a conjunta ocupação de uma casa em termos de agregado familiar estabilizado, de acordo com as circunstâncias concretas em que as pessoas vivem e se relacionam”, independentemente de o descendente viver sempre e sem interrupção na companhia do seu ascendente, como o definiu o Ac.R.P. 10/5/94 Col.III/198.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar procedente, por provado, o interposto recurso de apelação e, consequentemente, revogar a sentença recorrida, absolvendo agora os RR. do pedido.
Custas pelos Apelados.

Porto, 06 de Março de 2007
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
José Gabriel Correia Pereira da Silva
Maria das Dores Eiró de Araújo