Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0846214
Nº Convencional: JTRP00041884
Relator: AIRISA CALDINHO
Descritores: AMEAÇA
Nº do Documento: RP200811190846214
Data do Acordão: 11/19/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 342 - FLS 53.
Área Temática: .
Sumário: Não preenche o tipo objectivo do crime de ameaça a conduta daquele que diz a outrem: «não te metas com a minha família, que eu parto-te o focinho e mato-te; olha que isto é um aviso; olha que eu mato-te».
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal
*
I. No processo comum singular n.º …/06.3GACNF do Tribunal Judicial de Cinfães, foi proferida a seguinte decisão:
- “…
Condenar o arguido B………., pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 5,00, no montante total de € 600,00, por cada um dos crimes.
Condenar o arguido B………., pela prática de um crime de violação de domicílio, previsto e punido pelo artigo 190º, nº 1, do Código Penal, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5,00, no montante total de € 400,00.
Condenar o arguido B………., em cúmulo jurídico, na pena única de 280 dias de multa à taxa diária de € 5,00, no montante total de € 1.400,00 (mil e quatrocentos euros).
Absolver o arguido C………. pela prática de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153º, nº 1, do Código Penal.
Condenar o arguido B………. nas custas do processo fixando a taxa de justiça em 2 UC’s, acrescida da quantia correspondente a 1% e fixando a procuradoria no mínimo.
Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido contra B………. e em consequência condenar o requerido a pagar a D………., a quantia de € 500,00, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, desde a data da notificação da presente sentença até efectivo e integral pagamento.
Julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido contra C………. e em consequência absolver o requerido do pedido de indemnização civil peticionado.
Condenar o requerido B………. e a requerente D………., nas custas do pedido de indemnização civil por este deduzido, na proporção de 3/10, da responsabilidade do primeiro, e 7/10 da segunda.
Condenar a requerente D………. nas custas do pedido de indemnização civil deduzido contra C………. .
…”
Inconformada com a sentença que assim decidiu, veio a assistente D………. dela interpor recurso, com os fundamentos constantes da respectiva motivação e com as seguintes conclusões:
- “…
Lª- O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos com relevância para a matéria em apreciação:
-A recorrente e E………., no dia 19 de Maio de 2006, "ambas se travaram de razões entre si" (ponto 2 dos factos provados na douta sentença recorrida).
-No dia 22 de Abril de 2206, cerca das 7h50, quando D………. se encontrava no interior da sua viatura, junto à sua residência, foi abordada pelo arguido C………., marido de E………., que a ela se dirigiu dizendo "... não te metas com a minha família que eu parto-te o focinho e mato-te! Isto é um aviso, olha que eu mato-te", querendo assim referir-se ao episódio acima descrito (ponto 8 dos factos provados na douta sentença recorrida).
-O arguido C………. sabia que as expressões por si proferidas eram susceptíveis de provocar medo a D………., como provocaram, fazendo-a recear pela sua integridade física e pela sua vida (ponto ll dos factos provados na douta sentença recorrida).
-O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente (ponto 12 dos factos provados na douta sentença recorrida).
2ª- Deste modo, o arguido C………. incorreu na prática do crime de ameaça previsto e punido pelo artigo 153° do C. Penal, sendo a sua conduta dolosa, típica e ilícita, inexistindo qualquer causa justificativa do facto, ou seja, de exclusão da ilicitude ou da culpa.
3ª -Do referida norma não consta, contrariamente à interpretação que dela faz a douta sentença recorrida, estar excluído o crime quando a ameaça tenha sido feita sob condição dependente de conduta da pessoa ameaçada.
4ª- Em todo o caso, não se pode concluir que tendo-se dirigido o arguido C………. à recorrente D………., dizendo-lhe: "eu parto-te o focinho e mato-te... olha que eu mato-te ", se considere não ter cometido o crime em questão, por ter sido feita a ameaça sob condição "dependente da vontade da ameaçada".
5ª-Por um lado, como se disse, porque é irrelevante que a ameaça tenha sido feita ou não sob condição.
6ª- Por outro lado, porque nem sequer se pode concluir das palavras que o arguido dirigiu à ofendida D………. que a ameaça tenha sido feita condicionalmente.
7ª-Finalmente, porque a douta sentença recorrida não indica comportamento algum censurável tido pela ofendida D………., apesar de no ponto 2 dos factos dados como provados constar que esta e a E………. "se travaram de razões entre si", não estando sequer esclarecido o que pretendia dizer o arguido com a expressão "não te metas coma minha família".
8ª- O que necessariamente tem de se concluir é que o comportamento do arguido foi adequado, não só a provocar medo e inquietação à ofendida, como ainda a prejudicá-la na sua liberdade de determinação.
9ª- O Tribunal recorrido ao absolver o arguido C………. do crime de que vinha acusado e do respectivo pedido de indemnização civil violou, assim, o disposto nos artigos 153°, n° 1 do C. Penal, 483°e 496°, nos 1 e 3 do C. Civil e 85°, n° 1, al. b) e 95°, n° 1 do C.C. Judiciais.”
O arguido C………. respondeu concluindo:
- “…
1. O arguido com a expressão "...não te metas com a minha família que eu parto-te o focinho e mato-te! Isto é um aviso, olha que eu mato-te", quis proferir não uma ameaça mas uma advertência, um aviso à ofendida.
2. O arguido não sabia que esta sua conduta era proibida e punida por lei.
3. O crime de ameaça não se compadece com a subordinação da concretização do mal ameaçado a uma condição dependente da vontade do próprio.
4. O comportamento do arguido não foi de todo adequado a provocar medo e inquietação nem em prejudicar a liberdade de autodeterminação do ofendido.
5. A conduta do ofendido não se integra na previsão legal do artigo 153ª do Código Penal Português.”
O Digno Magistrado do Ministério Público não respondeu.
Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos.
Colhidos os vistos legais, foi efectuada a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
II. É a seguinte a fundamentação de facto da sentença recorrida:
- “…
Factos Provados
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
Da Acusação:
1. O arguido B………. é irmão e vizinho de D………., residindo ambos num edifício localizado no ………., em ………., na área desta comarca, onde o primeiro explora também um café, localizado no rés-do-chão.
2. No dia 19 de Maio de 2006, cerca das 15h30 naquele local, D……….. dirigiu-se para o seu automóvel através das escadas interiores daquele prédio e aí deparou-se com E………., empregada do arguido B………., altura em que ambas se travaram de razões entre si.
3. Nisto, surgiu o arguido B………. transportando uma bengala de madeira na mão e, sem que nada o fizesse prever, com a mesma desferiu várias pancadas em D……. .
4. Na sequência disso, D………. abandonou o local e refugiou-se em sua casa onde, pouco depois e de modo não concretamente apurado, o arguido B………., entrou, contra a vontade da mesma.
5. Não obstante instado a sair por D………., o arguido permaneceu no interior da residência desta, onde mais uma vez desferiu sobre a mesma vários murros e pontapés.
6. Em consequência da conduta do arguido B………., D………. sofreu, directa e necessariamente, uma equimose na região dorsal sobre a omoplata esquerda com 4 x 7 cm de extensão, uma escoriação na prega do cotovelo, uma equimose na face externa do braço e antebraço com 7 cm de comprimento, uma equimose na face anterior da perna com 3 x 5 cm de extensão e um hematoma na face anterior da coxa com 2 x 3 cm de extensão.
7. Tais lesões determinaram um período de 5 dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional.
8. No dia 22 de Maio de 2006, cerca das 7h50, quando D………. se encontrava no interior da sua viatura, junto à sua residência, foi abordada pelo arguido C………., marido de E………., que a ela se dirigiu dizendo "( ... ) não te metas com a minha família que eu parto-te o focinho e mato-te! Isto é um aviso, olha que eu mato-te", querendo assim referir-se ao episódio acima descrito.
9. O arguido B………. agiu com o propósito de molestar fisicamente D………., o que conseguiu, provocando-lhe, como era sua intenção, dores e ferimentos.
10. Sabia ainda o arguido B………. que não tinha autorização para entrar na casa de D………. e que ali permanecendo, não obstante intimado a sair, agia contra a vontade desta.
11. O arguido C………. sabia que as expressões por si proferidas eram susceptíveis de provocar medo a D……….., como provocaram, fazendo-a recear pela sua integridade física e pela sua vida.
12. O arguidos agiram de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo o arguido B………. que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Do Pedido de Indemnização Civil:
13. O comportamento que o arguido B………. teve causou, além das dores físicas, muita amargura e sofrimento moral à demandante.
14. Depois de a ter atingido com pancadas introduziu-se no seu domicílio, tendo-a agredido, nessa altura, quando se encontrava no seu quarto, despida, a murros e pontapés.
15. O C………. ao dizer à demandante que a molestava fisicamente e que a matava provocou a esta grande medo e inquietação, receando a concretização dessas ameaças.
16. As condutas dos demandados B………. e C………. provocaram tristeza e dor na pessoa da demandante, que ficou muito desgastada psicologicamente, como ainda assim se encontra, com fases de grande abatimento e depressão, chorando frequentemente sempre que se recorda e fala do que os demandados lhe fizeram.
17. A demandante é Professora do 1° Ciclo.
Outros Factos:
18. O arguido é considerado como pessoa de bem, educado, trabalhador e respeitador, no meio social em que se insere.
19. O arguido C………. é considerado trabalhador, profissional, honesto, educado, no meio social em que se insere.
20. Do Certificado de Registo Criminal dos arguidos nada consta.
21. O arguido B………. é casado, tem dois filhos com 15 e 8 anos, vive em casa própria, é comerciante e ganha € 750,00 por mês, sendo que a sua mulher o ajuda.
22. O arguido C………. é casado, tem 3 filhos, embora nenhum a seu cargo, ganha € 500,00 por mês, a sua mulher trabalha e ganha € 360,00 por mês e vivem em casa própria pela qual pagam € 360,00 por mês.
2. Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente os que a seguir se enunciam:
1. No dia 19 de Maio de 2006, cerca das 15h30 naquele local, D………. advertiu o arguido B………. quanto ao mau cheiro que se fazia sentir devido ao lixo amontoado à entrada do seu café e à fossa séptica do prédio em causa, cuja tampa o mesmo deixara aberta após sua utilização no adubo de uns terrenos de cultura.
2. O arguido C………. sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
3. A demandante é irmã do demandado, a quem sempre respeitou, tendo-lhe sido, além disso, sempre muito dedicada, tal como sempre muito dedicada se revelou para com toda a sua família.
4. A demandante ao longo da sua vida, esquecendo-se muitas vezes de si, deu-lhe a ele e a toda a família de ambos carinho, amor, solidariedade, dedicação.
5. A demandante é de fina sensibilidade moral, muito estimada, admirada e respeitada no seu meio.
3. Motivação da decisão de facto
O Tribunal formou a sua convicção, relativamente aos factos considerados provados e não provados, através da conjugação de todos os meios de prova que em audiência foram produzidos e examinados.
O arguido B………. prestou declarações das quais resultou, em suma e no que aqui interessa, que no dia 19 de Maio de 2006, por volta das 15h10, quando estava a chegar a casa com a filha e uma sobrinha deparou-se com a ofendida a insultar a sua empregada, E………. .
Referiu que se dirigiu à ofendida dizendo-lhe para deixar a mulher em paz e que aquela acto contínuo pegou numa cadeira e tentou agredir a E………. a qual se recolheu dentro do estabelecimento comercial do arguido e este para evitar a agressão da ofendida tirou-lhe a cadeira.
Referiu que logo após quando estava a sair do café a ofendida tentou acertar-lhe com duas garrafas de cerveja partidas e que a agarrou pelos pulsos para que aquela as largasse o que aconteceu, tendo aquele saído do local. Esclareceu que vivem todos no mesmo prédio, o arguido a ofendida e os seus irmãos e mãe, onde explora um café no rés-do-chão negando ter batido na ofendida e ter entrado em sua casa.
Mais referiu que é usual a ofendida discutir com a E……….., sua empregada, bem como todos os demais residentes do prédio.
A testemunha, E………., depôs de forma declaradamente parcial, no sentido de corroborar a versão do arguido, e por isso incredível, indo ao ponto de referir que a ofendida pegou numa garrafa partida e deu com a mesma na cara do irmão e qual impávida e serenamente não disse nada e foi-se embora.
O arguido C………. declarou que no dia 22 de Maio de 2006, de manhã cedo, dirigiu-se à ofendida e perguntou-lhe porque razão tratava mal a sua mulher tendo-lhe aquela respondido que era a sua mulher quem se metia com ela.
Negou, por isso, todos os factos que consta da acusação.
A versão do arguido B………. é contrariada pelas declarações da assistente, D………., que declarou que no dia e hora referidos estava a sair de casa para uma reunião quando se cruzou com a D. E………. a qual lhe perguntou o que aquela tinha a dizer sobre o lixo.
Referiu que não lhe respondeu e que acto contínuo o arguido saiu do café com uma bengala na mão levantando-a no ar para lhe bater para o que no sentido de evitar a pancada pegou numa cadeira.
Esclareceu que pousou a cadeira e virou costas para regressar a casa e nessa altura o arguido deu-lhe várias pancadas nas costas com a referida bengala, bem como nas pernas.
Referiu que entrou em casa para trocar de roupa e quando se encontrava no quarto, despida da cintura para baixo, o irmão entrou e deu-lhe vários murros e pontapés nas pernas e nas costas.
Esclareceu que o arguido entrou em sua casa porque no meio daquela confusão esqueceu-se de fechar a porta.
Ademais, referiu que os problemas entre si e o seu irmão começaram há 17 anos mas que se agudizaram há 3 anos a esta parte.
A versão da ofendida é confirmada na íntegra pelo depoimento da testemunha, F………., que se encontrava no local e assistiu a tudo.
Referiu, com efeito, que quando a irmã saiu de casa veio ao patamar para se despedir e que viu o irmão com uma bengala no ar e a irmã com uma cadeira.
Referiu que o irmão desferiu uma bengalada nas costas da ofendida e que entretanto a irmã começou a subir as escadas e enquanto isso o irmão continuou a dar-lhe com a bengala nas costas e nas pernas.
Confirmou, igualmente, que o irmão acabou por entrar em casa da ofendida onde lhe bateu.
No sentido de corroborar as declarações prestadas pela ofendida depõem, além do mais, o relatório clínico do Centro de Saúde de ………., junto aos autos a fls. 47, onde a ofendida se dirigiu no dia 19 de Maio de 2006, tendo aí recebido tratamento, bem como as conclusões do exame pericial de avaliação do dano corporal, elaborado pelo Instituto de Medicina Legal, junto aos autos a fls. 7, nos termos do qual a ofendida apresentava lesões na região dorsal sobre a omoplata esquerda, no membro superior direito e esquerdo, e ainda, no membro inferir direito e esquerdo.
A versão do arguido C………. é igualmente contrariada pelas declarações da ofendida a qual referiu que no dia e hora mencionados estava dentro do seu carro quando o arguido deitou a mão ao puxador da porta e lhe disse que lhe partia o focinho e a matava.
A versão da ofendida é confirmada na íntegra pelo depoimento da testemunha, F………., que se encontrava à janela de sua casa vendo o arguido C………. deitar a mão à porta do carro da irmã e dizer-lhe “olha que tu não te metas com a minha família que eu parto-te o focinho, eu mato-te” “eu não sou o meu cunhado”.
A ofendida esclareceu, ainda, que sofreu muito psicologicamente com a situação uma vez que abandonou a sua vida para se dedicar aos irmãos, deixando, por isso, de cumprir sonhos e objectivos.
A testemunha, F………., referiu que a irmã ficou muito abalada com a situação até pelos sobrinhos de quem gosta muito.
Ademais, referiu que a irmã teve medo das ameaças proferidas pelo arguido C………. .
Ora, ficou patente dos vários depoimentos nomeadamente do arguido, da ofendida, e das duas testemunhas referidas que o mau ambiente entre as partes é flagrante e corrosivo o que se não justifica pelo menos esclarece a atitude de ambos os arguidos.
Com efeito, é patente por parte da ofendida uma amargura perante os irmãos vendo neles pessoas ingratas numa típica atitude de “quem todos lhe devem e ninguém lhe paga”, convencida que está de ter abandonado a sua vida para se dedicar a ajudar os irmãos que lhe devem o que são e o que têm.
Quanto à personalidade do arguido B………. o tribunal considerou o depoimento das testemunhas G………., H………., as quais referiram o arguido como sendo bom pai de família, bom marido, bom comerciante, educado, cumpridor, bom vizinho e trabalhador.
Quanto à personalidade do arguido C………. o tribunal considerou o depoimento das testemunhas I………., J………. e K………., as quais referiram o arguido como sendo trabalhador, honesto, profissional, educado, respeitador, pessoa de bem e de confiança.
Relativamente aos antecedentes criminais dos arguidos baseou-se o tribunal no teor do seu Certificado de Registo Criminal junto aos autos a fls. 142 e 243.
Quanto às condições pessoais e económicas dos arguidos, o tribunal atendeu às suas declarações que nesse particular mereceram crédito.”
Tendo sido documentada a prova produzida em audiência, o recurso, abrangendo matéria de facto e de direito (art. 428.º do CPP), é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam nulidades e os vícios a que alude o art. 410.º, n.º 2, do CPP (v. por todos o ac. do STJ de 28.04.1999, CJ/STJ, ano VII, tomo 2.º, pág. 196).
A questão colocada à apreciação desta Relação é de direito e prende-se com a qualificação jurídica dos factos provados relativamente ao arguido C………. .
Pretende a recorrente que o arguido deverá ser condenado, com base nesses factos, pela prática de um crime de ameaça p. e p. pelo art. 153.º, n.º 1, do CP, bem como no respectivo pedido de indemnização.
Sobre o enquadramento jurídico-penal dos factos em questão, vejamos o que foi produzido na sentença sob recurso:
- “…
Dispõe o nº 1, do artigo 153º, do Código Penal: “quem ameaçar outra pessoa com a prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido (...)”.
O citado preceito pretende proteger o bem jurídico da liberdade de decisão e de acção, isto é, a paz jurídica individual.
A ameaça não lesando directamente a liberdade fá-lo indirectamente na medida em que perturba a tranquilidade de ânimo, provocando um estado de agitação e incerteza e tolhendo os movimentos daquele que não se crê seguro na vida ou nos bens.
O elemento objectivo do tipo consiste em ameaçar outra pessoa, ou seja, anunciar, por qualquer meio, a intenção de causar um mal futuro, dependente da vontade do autor, que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.
Temos assim, desde logo, que um dos elementos essenciais da ameaça é o mal a produzir, que neste caso deve constituir crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.
A inevitabilidade do mal ameaçado tem de aparecer como dependente da vontade do agente sendo esta que distingue a ameaça do simples aviso ou advertência.
Com efeito, se alguém anuncia a outrem perigos que não dependem do seu querer tal não passa de um aviso ou advertência, não sendo esta em si mesma susceptível de perturbar a liberdade de decisão e de acção com ela propondo-se, apenas, consciencializar a pessoa visada de eventuais consequências do seu estado, comportamentos ou atitudes que não dependem daquele que adverte.
Com efeito, o crime de ameaça, a par de exigir a cominação de um mal futuro, ainda que mais ou menos próximo, não se compadece, porém, com a subordinação da concretização do mal ameaçado a uma condição dependente da vontade do próprio ameaçado.
Ora, a expressão “não te metas com a minha família que eu parto-te o focinho e mato-te! Isto é um aviso, olha que eu mato-te”, configura um aviso à ofendida de uma consequência caso a mesma se meta com a família do arguido.
Assim, nos termos expostos tal expressão não configura um crime de ameaça mas um aviso com a subordinação do mal ameaçado na dependência do comportamento da ofendida.
Ora, para preenchimento do tipo objectivo de ilícito previsto no artigo 153º do Código Penal não basta o anúncio de um qualquer mal futuro para o integrar.
Com efeito, nem todos os factos socialmente danosos constituem crimes, mas tão só os que o legislador tipificou como tais, por considerá-los de tal modo graves para a vida social que justificam a sanção penal para quem os praticar.
Do mesmo modo nem todos os comportamentos lesivos dos bens que são objecto de tutela penal constituem um ilícito penal, mas só aqueles que ocorram nos termos da previsão legal.
O Direito Penal tendo por fim a protecção de bens jurídicos fundamentais rege-se por princípios entre os quais merece destaque o princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade que significa que este só deve intervir quando for essencial e eficiente para protecção desses bens jurídicos, sendo, ainda, de notar que a vulgarização da intervenção penal para tutela de interesses que pese embora socialmente incorrectos não são essenciais para a vida em comunidade enfraquece a sua força preventiva de protecção de valores sociais absolutamente fundamentais.
Ora, não constituindo a expressão mais do que um aviso cuja concretização depende do comportamento da própria ofendida forçoso se torna concluir pelo não preenchimento do tipo legal do crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153º, nº 1, do Código Penal.
Decorre do exposto que o arguido deve ser absolvido da prática do crime que lhe é imputado.”
Não sofre dúvida que o “conflito” aqui existente é o de saber até que ponto a frase dirigida pelo arguido C………. à assistente, no contexto em que foi proferida, constitui ameaça nos termos e para os efeitos do art. 153.º do CP.
Está provado que o arguido C………., no dia 22 de Maio de 2006, se dirigiu à assistente dizendo-lhe que não se metesse com a sua família que lhe partia o focinho e a matava, que era um aviso, que a matava.
Este comportamento teve lugar depois de uma discussão havida, no dia 19 de Maio de 2006, entre a assistente e a mulher do arguido e surgiu como atitude de desforço por parte deste devido a tal discussão; o próprio arguido diz à assistente que aquilo é um aviso.
É entendimento da doutrina e da jurisprudência que o conceito de ameaça se preenche com um mal futuro cuja ocorrência dependa ou apareça como dependente da vontade do agente aos olhos do homem comum, tendo em conta as características individuais do ameaçado.
A dependência da concretização do mal futuro da vontade do agente estabelece a diferença entre o aviso ou advertência e a ameaça.
No caso que nos ocupa, como refere a sentença recorrida, as expressões proferidas pelo arguido C………. configura um aviso à assistente de uma consequência, caso ela se meta com a família dele, não configurando um crime de ameaça, mas um aviso, com subordinação do mal ameaçado a um comportamento dela.
Na perspectiva do homem comum, do adulto normal, é assim que as expressões proferidas pelo arguido são entendidas, isto é, como não dependentes da vontade dele, mas de um comportamento da assistente, pelo que esta não pode ter como limitada a sua liberdade pessoal.
Neste sentido, veja-se a anotação ao art. 153.º em “Comentário Conimbricense do Código Penal”, da Coimbra Editora, 1999, pág.s 340 e ss, que se seguiu de perto, bem como o ac. da Relação do Porto de 19.06.2002 , proc. n.º 0110909 (www.dgsi.pt).
Quanto ao pedido cível, tendo como causa de pedir o ilícito criminal, a absolvição do arguido deste impõe a absolvição também daquele.
Nesta conformidade, acolhendo a posição defendida na sentença sob recurso com os demais argumentos que se subscrevem, entende-se que o recurso não merece provimento.
III. Pelo exposto:
1.º Nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
2.º Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
Elaborado e revisto pela primeira signatária.

Porto, 19 de Novembro de 2008
Airisa Maurício Antunes Caldinho
António Luís T. Cravo Roxo