Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0725704
Nº Convencional: JTRP00041173
Relator: MARQUES DE CASTILHO
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
ABALROAÇÃO
LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE
CLÁUSULAS NULAS
Nº do Documento: RP200803110725704
Data do Acordão: 03/11/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 267 - FLS 221.
Área Temática: .
Sumário: I - Na locação financeira a entidade financiadora funciona como dona e locadora, a ela competindo assegurar o inteiro gozo do bem locado.
II - Estipulando-se no contrato de locação financeira que:
- Tratando-se de bem sujeito a registo, o locatário deverá promover a respectiva realização;
- A obtenção das matrículas e licenças administrativas necessárias à utilização do Bem será da responsabilidade do locatário, não podendo este utilizar o Bem enquanto não obtiver toda a documentação;
- Se o locatário se encontrar impossibilitado de utilizar o Bem por qualquer razão alheia à vontade do Locador, não poderá exigir deste qualquer indemnização, suspensão do cumprimento das suas obrigações ou redução das rendas (…),
estas cláusulas são ostensivamente nulas face ao disposto no art. 18º c) e d) do DL 446/85, na redacção dada pelo DL 220/95, de 31/8.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Relatório

B………., LDª.
intentou acção declarativa sob a forma de processo comum ordinário contra
C………., S.A.
o qual incorporou por fusão o D………., S.A.,
já melhor identificados, peticionando pela procedência da acção que seja resolvido o contrato de locação financeira mobiliária com o n.º ……… celebrado entre A. e R. por causa imputável à R. com restituição de todas as quantias pagas em função do mesmo contrato, acrescidas de juros legais desde a citação da R., até efectivo pagamento e condenação em quantia a apurar em liquidação de sentença.
Alegou em síntese
- A A. celebrou com a R., no exercício da actividade de locação financeira desta, um contrato de locação financeira mobiliária em 15 de Março de 2003 pelo prazo de 48 meses, com início em 15 de Março de 2003 e termo em 15 de Março de 2007, tendo por objecto um semi-reboque de cortinas, com pneumáticos E………., 3 eixos roda simples BPW, matrícula C-….. .---
- Nos termos do contrato de locação financeira celebrado entre A. e R. esta obrigou-se a adquirir o veículo semi-reboque supra identificado, a fim de o ceder em locação à A.
- Porém o semi-reboque ainda se encontra nas instalações da fornecedora, a F………., Ldª, porquanto quando a A. aí se deslocou para levantar o veículo constatou que o mesmo não tinha documentos, não tendo esta entregue estes à R. para proceder à respectiva legalização – registo do veículo, pelo que a A. não pode circular com o veículo.
- Conhecedora desta situação, a R. tem vindo a cobrar, mês após mês as rendas contratadas, em n.º de 48.
- Dado o incumprimento do contrato por parte da R., incumprimento culposo, assiste à A. o direito de exigir o montante de todas as rendas já pagas e as que vierem a ser pagas no decurso da acção, bem como dos prémios de seguro pagos, a que acrescem juros à taxa legal e bem assim quantia a liquidar em execução de sentença, correspondente ao montante apurado do aluguer de um semi-reboque para realizar o trabalho que não pôde ser realizado pelo locado, referente a todos os meses que decorreram até efectiva entrega da indemnização ora pretendida.
- Não podendo a A. proceder ao cancelamento das transferências bancárias mensais de renda a favor da R., porquanto tal colocaria em causa o seu bom nome comercial, inviabilizando futuros e eventuais contratos de financiamento.
Citada a R. contestou impugnado a matéria articulada na petição e ainda deduziu incidente de intervenção acessória provocada da
F………., LDª.e de
G………., LDª.
contra quem invoca ter direito de regresso no caso de eventual procedência da acção concluindo pela total improcedência da acção contra si intentada, com a consequente absolvição do pedido e pela admissão do incidente suscitado.
Admitido o incidente suscitado e citadas as intervenientes, veio G………., LDA. contestar onde em síntese :
- O bem em causa nunca chegou a ser vendido pela “G………., Lda” à “F………., Lda”, já que esta não pagou o preço combinado - condição da venda, pelo que qualquer eventual venda do mesmo pela F………., LDA. à R. é nula que se recusou (e recusa) a emitir e entregar os documentos consubstanciadores da venda, necessários ao registo do veículo a favor do adquirente.
- Caso se entenda a venda como consumada, sempre a G………., LDA. disporá de um crédito sobre a F………., LDA: precisamente o preço, ainda não pago, devido pela venda do semi-reboque, tendo então, face ao disposto no art.º 754.º do Código Civil, a aqui contestante direito de retenção relativamente a toda a documentação referente e resultante desse seu trabalho e do objecto da venda.
Concluiu pela improcedência da acção com a absolvição da R. do pedido.
Citada a massa falida de F………., LDª.” (cfr. fls. 128), não deduziu a mesma qualquer oposição
Convidada a A. a aperfeiçoar o seu articulado satisfez esta o convite onde quantificou os prejuízos sofridos em € 27.660,80, sendo € 7.513,09 de rendas pagar à R. € 8.273,84 referente ao valor despendido no aluguer de um reboque de substituição e € 11.873,87 referente a rendas pagas com outra locadora com quem celebrou outro contrato de locação financeira.
Elaborado despacho saneador com fixação de matéria de Facto Assente e elaboração de Base Instrutória houve do mesmo reclamação apresentada pela R. que foi indeferida tendo sido designado dia para audiência de discussão e julgamento a que se procedeu com observância do formalismo próprio conforme na acta se exara, tendo-se respondido à matéria de facto constante da base instrutória conforme decisão de fls. 341 a 344 sem censura após o que foi proferida sentença nos seguintes termos:
“Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente por parcialmente provada e consequentemente:
- Declara-se o contrato de locação financeira entre A. e R. celebrado regularmente resolvido por causa imputável à R. e condena-se esta a pagar à A. a quantia global de € 10.437,28, acrescido de juros de mora desde a citação e até integral e efectivo pagamento, à taxa de juro de 4% .---
Quanto ao mais absolve-se a R. do pedido.”
Inconformada veio a Ré tempestivamente interpor o presente recurso tendo para o efeito nas alegações oportunamente apresentadas aduzido a seguinte matéria conclusiva que passamos a reproduzir:
a) As questões a decidir no âmbito do recurso são, no essencial, as seguintes:
(i) incumprimento pelo Recorrente do contrato de locação financeira n.º ………;
(ii) nulidade das cláusulas 10ª, n.º 2 e 5ª n.º 2 das condições gerais do contrato.

b) Todos os contratos objecto de discussão nos autos foram concluídos no âmbito da liberdade contratual que as partes têm de celebrar ou não celebrar contratos e de conformarem o respectivo conteúdo, sendo perfeitamente válidos e vinculantes, atento o que resulta dos arts. 405º e 406º do Código Civil.
c) O contrato de compra e venda de um veículo automóvel é um contrato consensual verbal, relevando o requerimento/declaração apenas para efeitos de registo automóvel – cfr. art.º 219º do Código Civil; Ac. STJ, de 14/02/91, in AJ, 15º/16º, p. 30; Ac. STJ, de 24/4/91, in www.dgsi.pt; Ac. Relação Porto, de 11/6/2001, in www.dgsi.pt.
d) Trata-se, para além do mais, de um contrato com eficácia real na medida em que a transmissão da propriedade se dá por mero efeito do próprio contrato – cfr. arts. 879º, alínea a), e 408º, n.º 1, do Código Civil.
e) “O requerimento-declaração que se refere ao registo de propriedade automóvel tem somente valor para efeitos de registo de propriedade automóvel. O contrato de compra e venda sobre veículo automóvel é um contrato consensual verbal. A declaração de venda contida no requerimento-declaração não consubstancia o contrato verbal até porque intrinsecamente não menciona o elemento essencial do contrato, que é o preço acordado” – cfr. Ac. STJ, de 14/02/91, in AJ, 15º/16º, p. 30.
f) A “F………., Lda” adquiriu o semi-reboque à “G………., Lda” e, na sua qualidade de proprietária, vendeu-o posteriormente ao Recorrente, que pagou o respectivo preço – cfr. resposta ao quesito 4º da base instrutória.
g) O Recorrente, por seu turno, sendo proprietário de tal veículo, deu-o em locação financeira à Recorrida – cfr. resposta ao quesito 1º da base instrutória.
h) A celebração, ainda que verbal, dos sucessivos contratos de compra e venda, transferiu a propriedade do semi-reboque para os respectivos compradores.
i) Sucede, todavia, que a “G………., Lda” não cumpriu a obrigação de entregar à “F………., Lda” os documentos necessários ao registo do veículo, o que fez com que esta, por sua vez, não entregasse esses elementos à Recorrida no momento da assinatura do auto de recepção – cfr. alíneas A) e B) dos factos assentes e resposta aos quesitos 6º, 7º 8º e 11º da base instrutória.
j) Tudo em violação do disposto no art.º 882º, n.º 2, do Código Civil, que impõe ao vendedor o dever de investir o comprador na posse efectiva (posse e detenção) dos direitos transmitidos para que este os possa fruir plenamente – é uma consequência do contrato e não um seu elemento.
l) Vale isto por dizer que, no presente caso concreto, a obrigação de entregar a coisa, efeito essencial da compra e venda (cfr. art.º 879º, al. a) do Código Civil), não foi acompanhada pela entrega dos documentos necessários ao registo do veículo.
m) Ao Recorrente não pode, portanto, ser assacada qualquer responsabilidade pela não entrega dos documentos, contrariamente àquilo que decidiu o Mmo. Juiz “a quo”.
n) O Recorrente é uma sociedade anónima que tem por objecto a locação financeira nos termos da legislação que regula esta actividade, designadamente o estatuído no Decreto-Lei n.º 149/95 de 24 de Junho.
p) O objecto contratual que caracteriza, define e distingue a locação financeira dos demais contratos é, contrariamente ao que decidiu o Mmº Juiz “a quo”, o financiamento do bem locado por parte do locador.
q) A actividade do locador, aqui Recorrente, é, na verdade, essencialmente financeira.
r) E foi precisamente no exercício desta sua actividade de locação financeira, que o Recorrente celebrou com a Recorrida, em 15 de Março de 2003, um CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA MOBILIÁRIA, ao qual foi atribuído o n.º ……… .
s) Nos termos do supra mencionado contrato, o Recorrente obrigou-se a adquirir a um terceiro escolhido pela própria Recorrida, na sua qualidade de locatária, o veículo em apreço.
t) No uso daquela sua prerrogativa, foi a Recorrida quem escolheu quer o fornecedor do bem, quer as suas características técnicas – cfr. resposta ao quesito 19º da base instrutória.
u) Assim como foi a Recorrida quem negociou com o fornecedor por si escolhido (a “F………., Lda”) o preço, o prazo de entrega e as demais condições de venda – cfr. resposta ao quesito 19º da base instrutória.
v) Assim sendo, o Recorrente, no estrito cumprimento da sua obrigação, e por indicação expressa da Recorrida, COMPROU o semi-reboque matrícula C-….. à “F………., Lda”, a quem pagou, na íntegra, o respectivo preço – cfr. resposta ao quesito 4º da base instrutória.
x) O veículo foi depois entregue pela “F………., Lda” directamente à Recorrida, que assinou o respectivo auto de recepção de equipamento – cfr. alínea A) dos factos assentes.
z) Uma vez que o contrato celebrado com a Recorrida tinha por objecto um bem sujeito a registo no estado de novo, o Recorrente enviou seguidamente toda a documentação necessária e que tinha de ser por si emitida para o fornecedor a quem adquirira o veículo (“F………., Lda”), de forma a que este procedesse ao competente registo junto da Conservatória do Registo Automóvel.
aa) Sucede, todavia, que a titular do registo recusou, ilegitimamente, entregar à “F………., Lda” os documentos necessários à sua efectivação, alegando que esta não lhe pagara o preço do veículo em questão – cfr. resposta aos quesitos 12º e 29º da base instrutória.
bb) Ora, nos termos do art.º 10º das condições gerais do contrato celebrado, “tratando-se de bem sujeito a registo,” – como é o caso – “o Locatário deverá promover a respectiva realização”.
cc) Assim como compete ao locatário promover “a obtenção das matrículas ou licenças administrativas necessárias à utilização do Bem” e suportar “todos os encargos, qualquer que seja a sua natureza, decorrentes da celebração ou execução” do contrato – art.º 10º, n.ºs 2 e 3 das condições gerais.
dd) Resulta ainda do art.º 5º das condições gerais do contrato que “se o Locatário se encontrar impossibilitado de utilizar o Bem, total ou parcialmente, por qualquer razão alheia à vontade do Locador, incluindo força maior, não poderá ele exigir deste qualquer indemnização, suspensão do cumprimento das suas obrigações ou redução das rendas, incumbindo-lhe a obrigação de defender, perante terceiros, a integridade quer do seu direito quer do próprio Bem” (o realçado é nosso).
ee) Neste sentido vão também as disposições legais aplicáveis nesta matéria, nomeadamente os arts. 10º, n.º 2, al. b) e 13º do Dec. Lei n.º 149/95, de 24/6.
ff) As referidas disposições das condições gerais do contrato de locação financeira são perfeitamente válidas, traduzindo uma concretização do próprio regime da locação financeira e da liberdade contratual das partes.
gg) As cláusulas em questão não são, por conseguinte, nulas por violarem o disposto no art.º 809º do Código Civil, já que através das mesmas não está o credor a renunciar antecipadamente a qualquer direito que a lei lhe faculta.
hh) Mais, a sua previsão está em perfeita obediência/consonância com o que resulta do art.º 800º, n.º 2 do Código Civil.
ii) Donde que a douta sentença recorrida, ao decidir pelo incumprimento pelo Recorrente das obrigações para si decorrentes do contrato que celebrara com a Recorrida e pela nulidade das cláusulas 5ª n.º 2 e 10º n.º 2 das condições gerais, tenha andado mal.
jj) Até porque, também contrariamente ao que foi decidido pelo Mmº Juiz “a quo”, não se verificavam, in casu, os pressupostos que a Recorrida invocava para pedir a resolução do contrato (cfr. arts. 432º e seguintes do Código Civil).
ll) Por uma razão simples, que o Tribunal “a quo”, erradamente, desconsiderou: o Recorrente cumpriu pontualmente todas as obrigações para si emergentes do contrato de locação financeira n.º ………, a saber:
(i) financiou a aquisição do veículo objecto do contrato, pagando o respectivo preço ao fornecedor escolhido pela Recorrente,
(ii) entregou toda a documentação cuja emissão lhe competia ao fornecedor para efectivação do registo do veículo junto da Conservatória do Registo Automóvel,
(iii) o bem “financiado” foi, de acordo com o auto de recepção do equipamento, e como é usual nesta matéria, entregue ao locatário directamente pelo fornecedor.
mm) Na verdade, e conforme resultou provado, o Recorrente jamais teria pago ao fornecedor o preço do veículo se não lhe tivesse sido enviado o auto de recepção do equipamento devidamente assinado pela Recorrida – cfr. resposta aos quesitos 22º e 23º da base instrutória.
nn) Ao receber, portanto, tal documento, a operação ficou para o Recorrente finalizada, mostrando-se integralmente cumprida a sua obrigação.
oo) Ao decidir em sentido contrário, o Mmº Juiz “a quo” desvirtuou por completo a ratio e natureza do contrato de locação financeira.
pp) Com efeito, “prestado o financiamento, que constituiu a obrigação da locadora, o locatário não pode recusar a sua prestação (...)” – cfr. Ac. STJ, de 24/10/2000, CJ, 3º, pág. 59.
qq) Seria extremamente injusto, e não teria o mínimo sentido, que, sendo a Recorrida a responsável pela escolha do fornecedor/vendedor do veículo e pelas condições do negócio com este celebrado, fosse depois o Recorrente/locador, e não aquela, a ficar onerado com o risco decorrente do sobredito fornecedor não cumprir as obrigações para si decorrentes da celebração do contrato de compra e venda do semi-reboque.
rr) Ao responsabilizar o Recorrente pela situação existente o Tribunal “a quo” proferiu uma decisão iníqua e ilegal, atentando, designadamente, contra o disposto nos arts. 1º, 10º, n.º 2, al. b) e 13º do Dec. Lei n.º 149/95, de 24/6, e nos arts. 405º, 406º, 879º, al. a), 882º, n.º 2, 799º, 801º, 808ºe 809º, todos do Código Civil.
Sem prescindir,

ss) A Recorrida não cumpriu com as obrigações para si decorrentes do contrato que assinou com o Recorrente, conforme resulta da resposta dada aos quesitos 24º, 25º e 26º da base instrutória.
tt) O Recorrente RESOLVEU O CONTRATO de locação financeira que havia sido celebrado com a Recorrida.
uu) Fê-lo legitimamente.
vv) A Recorrida não tinha, nem nunca teve, o direito que invocou de resolver o contrato, até pela situação de incumprimento em que caiu.
xx) Tão pouco podia peticionar a devolução das rendas já pagas, uma vez que estamos perante um contrato de execução continuada ou periódica, não existindo in casu qualquer vínculo entre as prestações efectuadas e a causa de resolução que legitime a respectiva devolução.
zz) A douta sentença recorrida, ao julgar procedente a presente acção, violou, ainda, o disposto nos arts. 432º, n.º 2 e 434º, n.º 2, do Código Civil.
Termina pedindo que seja revogada a decisão proferida dando-se provimento ao presente recurso.
Foram apresentadas contra alegações.
Mostram-se colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Adjuntos pelo que importa apreciar e decidir.

THEMA DECIDENDUM
A delimitação objectiva do recurso é feita pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal decidir sobre matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam do conhecimento oficioso, art. 684 nº3 e 690 nº1 e 3 do Código Processo Civil, como serão todas as outras disposições legais infra citadas de que se não faça menção especial.
As questões que estão subjacentes no âmbito de apreciação do presente recurso para além do que se mostra apreciado na decisão como mérito da causa traduzem perante o elenco das conclusões formuladas no seguinte:

DOS FACTOS E DO DIREITO
Para melhor facilidade expositiva e de compreensão do objecto do presente recurso vamos passar a reproduzir em nota de rodapé a factualidade considerada assente e provada sobre a qual se estruturou a decisão proferida que não foi objecto de impugnação pelo como tal se mantém e que é do seguinte teor:

1) A Autora em 20 de Março de 2003 assinou o auto de recepção de equipamento, junto aos autos sob doc. n.º 3, a fls. 17 destes autos, referente a um semi-reboque de cortinas, com pneumáticos E………., 3 eixos roda simples BPW, matrícula C-….. (al. A) dos factos assentes).
2) A sociedade “F………., Lda.”, nunca entregou à R. os documentos necessários ao registo do semi-reboque referido em 1), em seu nome (al. B) dos factos assentes).
3) No processo do veículo C-63915 junto da Direcção Regional de Viação Centro, consta estar o mesmo registado em nome de “G………., Lda.”, com sede na Zona Industrial ………., lote .., na ………. desde 21/11/2002 (certidão de fls. 196 dos autos) (al. C) dos factos assentes).
4) A A. celebrou com a R. D………., S.A., em 15 de Março de 2003 um contrato ao qual foi atribuído o número ………, pelo prazo de 48 meses, com início em 15/03/2003 e termo em 15/03/2007, tendo por objecto o semi-reboque referido em 1) (resposta ao item 1º) da base instrutória).
5) Através do contrato referido em 4), a R. obrigou-se a ceder à A. o gozo do semi-reboque ali referido, pelo período de 48 meses e mediante a retribuição de 48 rendas mensais, a primeira no valor de € 2.294,47 e as restantes no montante de € 485,46, acrescidas de IVA e a pagar através de transferência bancária (resposta ao item 2.º) da base instrutória).
6) Podendo no fim do período acordado, a A. adquirir o semi-reboque objecto do contrato mediante o pagamento à R. do valor residual fixado no contrato, após pagamento das rendas referidas em 5) (resposta ao item 3.º) da base instrutória).
7) Para o efeito a R. adquiriu à chamada “F………., Lda.” com sede em ………. na Rua ………., n.º . Zona Industrial, o semi-reboque referido em 1) pelo valor de € 27.304,19 que a esta pagou (resposta ao item 4.º) da base instrutória).
8) A A. subscreveu o seguro exigido pela R. através do contrato referido em 4), do semi-reboque, com direitos ressalvados à R. e pagou o respectivo prémio (resposta ao item 5.º) da base instrutória).
9) Quando a A. se deslocou às instalações da “F………., Lda” para levantar o semi-reboque referido em 1) que então ali se encontrava, não o fez, por o mesmo não ter os documentos necessários à circulação e ao registo do veículo (resposta aos itens 6.º) e 7.º) da base instrutória).
10) O livrete e título de registo de propriedade do veículo nunca foram remetidos à A. enquanto locatária do contrato nem cópia dos mesmos foi remetida à R. (resposta ao item 8.º) da base instrutória).
11) A R. tem conhecimento da factualidade referida em 9) e 10) (resposta ao item 9.º) da base instrutória).
12) A R. continuou a cobrar mês após mês a retribuição mensal contratada que a A. pagou até Dezembro de 2003, inclusive, no valor global de € 7.334,59 (resposta ao item 10.º) da base instrutória).
13) A “G………., Lda” referida em 3) possui o original do título de registo de propriedade referido em 10) (resposta ao item 11.º) da base instrutória).
14) A “F………., Lda” não procedeu ao pagamento à “G………., Lda” do valor do veículo referido em 4), a quem adquirira este nos termos constantes do n.º 26) dos factos provados (resposta ao item 12.º) da base instrutória).
15) A 9 de Abril de 2003 a A. contactou a R. comunicando que ainda não havia recepcionado o veículo referido em 1) (resposta ao item 13.º) da base instrutória).
16) Para efectuar o trabalho do semi-reboque referido em 4), a A. alugou um outro semi-reboque (resposta ao item 14.º) da base instrutória).
17) Em cujo aluguer despendeu a quantia de 1.034,23 € mensais, de Outubro de 2003 a Maio de 2004 (resposta ao item 15.º) da base instrutória).
18) Em Junho de 2004 a A. celebrou com “H……….” um contrato de locação financeira, tendo por objecto um reboque, pelo qual passou a pagar o valor mensal de € 525,55 após a 2.ª prestação e até Julho de 2005, altura em que a prestação passou para o valor de € 534,26 até Novembro de 2005, após tendo passado para € 537,54 (resposta ao item 17.º) da base instrutória).
19) Ao abrigo do contrato referido em 18), a A. pagou já à “H……….” 19 rendas no valor de € 11.873,87 (resposta ao item 18.º) da base instrutória).
20) Foi a autora quem escolheu o fornecedor do veículo referido em 1) e negociou o preço, prazo de entrega e demais condições de venda (resposta ao item 19.º) da base instrutória).
21) A R. só procedeu ao pagamento do preço referido em 7) ao fornecedor, após lhe ter sido enviado pela A. o auto de recepção do equipamento assinado pela autora (resposta ao item 22.º) da base instrutória).
22) Sem o envio do auto referido em 21), a R. não teria procedido ao pagamento referido em 7) (resposta ao item 23.º) da base instrutória).
23) A A. não procedeu ao pagamento da renda n.º 10 com vencimento em 15/12/03, nem todas as subsequentes (resposta ao item 24.º) da base instrutória).
24) Apesar de interpelação para o efeito pela R. (resposta ao item 25.º) da base instrutória).
25) Pelo que por carta registada com AR datada de 17/09/04 e recepcionada a 23/09/04, a R. comunicou à A. a resolução do contrato face ao não pagamento das rendas em dívida, mais solicitando então o pagamento de indemnização contratual e valores em dívida (resposta ao item 26.º) da base instrutória).
26) A “G………., Lda” aceitou vender o semi-reboque referido em 4) a “F………., Lda” pelo preço de € 21.490,92 (IVA incluído) mediante o pagamento total do preço com a emissão da factura (resposta aos itens 27.º) e 28.º) da base instrutória).
27) A “F………., Lda” nunca chegou a pagar à “G……….., Lda” o preço acordado e referido em 25) (resposta ao item 29.º) da base instrutória).
28) Pelo que a “G………., Lda” não entregou e não entrega a documentação referente à venda do veículo (resposta ao item 30.º) da base instrutória).
29) Apesar de ter acedido, por tolerância e vontade de colaboração, na entrega do veículo à “F………., Lda” (resposta ao item 31.º) da base instrutória).
Vejamos
As questões suscitadas na apelação foram já, ambas elas, objecto de tratamento na Sentença recorrida.
Não obstante as doutas alegações da Recorrente, os Juízes deste Tribunal encontram-se em total sintonia quanto à decisão impugnada e seus fundamentos que aliás estão em concordância em posição já anteriormente assumida pelo ora Relator em outra decisão deste Tribunal em tudo semelhante nas questões suscitadas e que nos serve de base de fundamentação.[1]
Assim, sem necessidade de maiores considerações, ao abrigo do disposto no art. 713.º-5 do CPC podiam limitar-se a remeter para os termos da decisão impugnada, negando provimento ao recurso.
Em todo o caso, e em reforço do decidido, sempre se dirá mais o seguinte:
A locação financeira é regulada hoje pelo DL n.º 149/95, de 24/06, com as alterações decorrentes do DL n.º 265/97, de 02/10 e DL n.º 285/01, de 03/11 e actualmente pelo Dec-Lei 30/2008 de 25 do mês transacto.
O art. 1.º do DL citado refere que:
“Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados”
Como refere José Maria Pires [2] o locador dispõe de todos os direitos e está sujeito a todos os deveres gerais do locador que não resultem incompatíveis com o DL n.º 149/95 - art. 8.º-2
Assim, em relação ao bem locado, (...) são obrigações do locador:

- adquirir ou mandar construir o bem a locar;
- conceder o gozo do bem ao locatário para os fins a que se destina;
- vender o bem ao locatário, caso este queira, findo o contrato.
No art. 12.º do mesmo diploma refere-se que o locador não responde pelos vícios do bem locado ou pela sua inadequação face aos fins do contrato, salvo o disposto no art. 1034.º do Código Civil.
Quanto a essa ressalva, enuncia-nos o n.º 1 deste artigo do Código Civil., que o locador passará a responder:
- se não tiver a faculdade de proporcionar ao locatário o gozo da coisa locada;
- se o seu direito não for de propriedade ou estiver sujeito a alguns ónus ou limitação que exceda os limites normais inerentes a este direito;
- se o direito do locador não possuir os atributos que ele assegurou ou estes atributos cessem posteriormente por culpa dele.
E acrescenta o n.º 2:
“As circunstâncias descritas no número antecedente só importam a falta de cumprimento do contrato quando determinarem a privação, definitiva ou temporária, do gozo da coisa ou a diminuição dele por parte do locatário”
A Apelante pretende excluir a responsabilidade pela falta de entrega de documentos, refugiando-se no facto de ter sido a Apelada a indicar o bem a locar e o fornecedor (para a Apelante adquirir esse bem), e de, por outro lado, ter a Apelada subscrito o contrato, aceitando as condições deste, onde se pode ver, nas cláusulas contratuais gerais, designadamente as cláusulas 10 nº 2 e 5.ª nº 2, que foi expressamente estipulada a exclusão de responsabilidade da Apelante por quaisquer vícios ou falhas na entrega do bem e dos documentos:
Pela clausula 10ª Registos e encargos no seu n~1 refere-se que.
“Tratando-se de Bem sujeito a registo, o locatário deverá promover a respectiva realização”
e no seu nº 2:
“A obtenção das matrículas ou licenças administrativas necessárias à utilização do Bem será da responsabilidade do locatário, não podendo este utilizar o Bem enquanto não obtiver toda a documentação”

Por seu turno no artigo 5º nº 2 das mesmas condições gerais do contrato estabelece-se que como defende a Apelante
“Se o locatário se encontrar impossibilitado de utilizar o Bem, total ou parcialmente, por qualquer razão alheia à vontade do Locador, incluindo força maior, não poderá exigir deste qualquer indemnização, suspensão do cumprimento das usas obrigações ou redução das rendas, incumbindo-lhe a obrigação de defender, perante terceiros, a integridade quer do seu direito quer do próprio Bem”
Ou seja pela cláusula 10ª nº2, a Apelante, como locadora, ficaria excluída de responsabilidade pela falta de registo, matrícula ou licenciamento quando o bem locado a tal estiver sujeito, no caso de o fornecedor não ter habilitado o locador com a documentação necessária para o efeito.
Por outro lado, de acordo com o estipulado na cláusula 5.ª das condições gerais, mostra-se estipulado que o locatário não fica exonerado das suas obrigações face ao locador, e que a falta de entrega de documentação relativa ao veículo, por parte do fornecedor, no caso “ a impossibilidade de utilizar o Bem, total ou parcialmente” no caso por falta de registo e obtenção dos documentos necessários à circulação não confere qualquer direito ao locatário face ao locador, qualquer direito de indemnização a que se ache com direito nos termos da lei e da cláusula 2.ª destas condições gerais
Ora salvo o devido respeito, analisado o caso em presença, constatamos que estas cláusulas são ostensivamente nulas.
Na verdade:
O art. 18.º, alíneas c) e d) do DL n.º 446/85, na redacção do DL n.º 220/95, de 31/08, refere como sendo absolutamente proibidas, designadamente, as cláusulas contratuais gerais que:
(...) c) Excluam ou limitem, de modo directo ou indirecto, a responsabilidade por não cumprimento definitivo, mora ou cumprimento defeituoso, em caso de dolo ou culpa grave;
d) Excluam ou limitem, de modo directo ou indirecto, a responsabilidade por actos de representantes ou auxiliares, em caso de dolo ou de culpa grave;
(...)”
Pelo contrato de locação financeira, stricto sensu, a locadora obriga-se a fornecer à locatária o gozo do objecto locado, no caso, uma viatura automóvel. O gozo do objecto locado (automóvel) não se esgota com a disposição deste à ordem da locatária, mas dos indispensáveis meios para que este possa circular legalmente. E, para circular legalmente, tem a locadora de assegurar os indispensáveis documentos para a referida circulação.
Não se compreenderia de resto que a locatária tivesse de pagar as rendas pela locação financeira à locadora, e quisesse esta exonerar-se da obrigação de lhe disponibilizar os meios para o fim em vista.
A aqui Ré Financiadora não se limitou a fazer um financiamento à A., entregando-lhe o dinheiro, para a A. adquirir a viatura... O que a Ré fez, na sequência do contrato firmado, foi disponibilizar o dinheiro à Ré (fornecedora), para ela mesma (Ré Financiadora) adquirir a viatura em causa, e depois, em nome próprio, como dona, ceder o gozo dela (como locadora) à A. (como locatária.)
Funcionando a Ré Apelante como dona e locadora, é a ela que competia, em primeira linha, assegurar o inteiro gozo do bem locado.
Se a Apelante não teve o cuidado de verificar que a viatura locada se encontrava registada em nome de uma entidade terceira, diferente da entidade fornecedora, manifestou da sua parte uma grave negligência, ao colocar na mão do fornecedor o dinheiro correspondente a parte do financiamento, sem que deste tivesse exigido a declaração de venda do anterior titular inscrito no registo como proprietário dela, pois, não devia esquecer que nos bens sujeitos a registo se impõe o trato sucessivo, e que, sem ele restabelecido, não terá possibilidades de assegurar à locatária a possível aquisição do bem, pelo valor residual, no final do contrato.
Não se compreende como foi possível que tivesse a locadora assumido a posição de compradora, adquirindo a viatura ao fornecedor (para a locar à locatária), sem que tivesse analisado previamente, e com todo o cuidado, se este era dono efectivo da viatura ou estava mandatado e munido dos indispensáveis poderes para tal alienação e consequente registo.
Como doutamente refere Calvão da Silva, (...) sobre o locador não recai o dever de garantia da coisa, o dever de assegurar a isenção de vícios ou defeitos físicos (art. 913.º e ss. do CC.) - o que se compreende, porque é o locatário que indica o bem e o fornecedor -, mas isso não o livra do dever de a entregar pontualmente ao locatário para que esta a possa gozar.”
E como se refere na decisão que inteiramente sufragamos nesta exigência, está compreendida, a entrega da documentação indispensável à circulação do veículo e à posterior transferência de propriedade, findo o contrato dado que só dessa forma pode considerar-se completa a prestação de fornecimento do gozo da coisa, sendo nele que se situa o cumprimento pontual.
De facto para que a R. pudesse locar à A. o veículo, tinha a mesma como pressuposto de tal locação de ser a legítima dona deste e estar habilitada a fruir do mesmo o que impunha ter recebido a viatura – abrangendo esta entrega os documentos relativos à coisa ou direito objecto do contrato cfr. artigos 879º e 882º n.º 2 do Código Civil.
Não tendo à R. sido entregues pelo fornecedor do bem os documentos necessários à legal circulação da viatura ainda que através da A., esta necessariamente não podia ceder ao locatário um direito que ainda lhe não estava assegurado.
Mas mais sem se assegurar da existência de tais documentos, antes em termos contratuais pretendendo imputar ao locatário a obrigação de obtenção dos mesmos e total responsabilidade pela sua não obtenção, celebrou a R. com a A. o contrato de locação em análise, actuando assim com culpa grave o mesmo ainda se reforçando com a argumentação tecida na decisão do Tribunal a quo que inteiramente sufragamos do conteúdo da clausula 3ª das condições gerais conforme auto de recepção do equipamento doc. de fls. 17 dos autos.
Assim, mantendo-se como se mantém sem qualquer alteração a factualidade considerada assente e provada, igualmente no que tange à apreciação das questões supra elencadas, objecto do interposto recurso pela Ré., é entendimento alcançado pela unanimidade dos Juízes que compõem este Tribunal, face à criteriosa e judiciosa apreciação da factualidade descrita, com a correcta valoração das regras inerentes ao ónus probatório que a cada um dos litigantes se impunha, efectuada pelo Tribunal a quo, bem como a sua consequente integração e subsunção jurídica, que a decisão não merece qualquer censura ou reparo, sendo de manter em toda a sua plenitude as considerações e fundamentação aduzidas na apreciação jurisdicional bem como os entendimentos doutrinais e jurisprudenciais que se encontram sedimentados que igual e integralmente se acolhem e sufragam pelo que inteiramente a confirmam, ao abrigo do disposto no art. 713º nº 5, nada mais se impondo referir, dado que fazê-lo se traduziria em simples acto de pura e inútil repetição retórica.

DELIBERAÇÃO
Nestes termos em face do que vem de ser exposto perante a improcedência das conclusões elencadas pela Recorrente nega-se a Apelação, confirmando integralmente os Juízes que compõem este Tribunal por unanimidade a decisão proferida de harmonia com o estatuído no artigo 713º nº 5.
Custas pela Apelante

Porto 11 de Março de 2008
Augusto José Baptista Marques de Castilho
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
João Carlos Proença de Oliveira Costa (dispensei o visto)

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[1] Ac. desta Relação de 13/3/07 in www.dgsi.trp.pt.
[2] José Maria Pires, Direito Bancário, 2.º vol. pág. 256.