Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
171/07.5GAMDB.P1
Nº Convencional: JTRP00043459
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: PROIBIÇÃO DE PROVA
RECONSTITUIÇÃO NATURAL
Nº do Documento: RP20100127171/07.5GAMDB.P1
Data do Acordão: 01/27/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: REENVIO DO PROCESSO.
Indicações Eventuais: LIVRO 615 - FLS. 33.
Área Temática: .
Sumário: I- Optando o arguido pelo silêncio durante o julgamento, ficam proibidas a leitura de declarações suas e a prestação de depoimentos sobre tais declarações.
II- A diligência de ‘reconhecimento ao local’ é admissível como meio de prova a valorar nos termos do artigo 127º do CPP, quanto aos factos a que se refere percepcionados directamente pelo agente-testemunha, que não colidam com afirmações ou declarações do arguido, cuja leitura seja proibida.
III- Posto que vedado o depoimento do agente no sentido de reproduzir as afirmações do arguido, já é de aceitar tudo o que, com interesse para os autos, o agente saiba da sua investigação ou que lhe tenha advindo da sua percepção directa, quer sobre os factos quer sobre a vida do arguido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: *
Recurso nº 171/07-5GAMDB.P1
Processo em 1ª instância nº 171/07-5GAMDB.
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Acordam em conferência na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I
1. Nos autos de processo comum nº 171/07-5GAMDB, do Tribunal Judicial de Mondim de Basto, em que é arguido
B……………, filho de C…………. e de D………….., nascido a 21-09-1985, na Freguesia de ……., Cinfães, titular do bilhete de identidade n.º 128 014 11, residente no ………, …….., Celorico de Basto,
pelo Ministério Público é-lhe imputada a prática de factos que, em seu entender, integram, em autoria material:
a) dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, n.º2, al. e), do Cód. Penal,
b) dois crimes de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 203º e 204º, n.º2, al. e), do Cód. Penal,
c) dois crimes de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 203º e 204º, n.º1, al. f), do Cód. Penal (cfr. fls. 277 e ss.).
1.1. Realizado o julgamento, a final foi decidido:

a) absolver o arguido, B…………., de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, n.º1 e 204º, n.º2, al. E), do Cód. Penal, de que vinha acusado (factos respeitantes ao ponto I da acusação);
b) absolver o arguido, B…………, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, n.º1 e 204º, n.º2, al. e), do Cód. Penal, de que vinha acusado (factos respeitantes ao ponto IV da acusação);
c) absolver o arguido, B……….., de um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 203º, n.º1 e 204º, n.º2, al. E), do Cód. Penal, de que vinha acusado (factos respeitantes ao ponto II da acusação);
d) absolver o arguido, B…………, de um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 203º, n.º1 e 204º, n.º2, al. e), do Cód. Penal, de que vinha acusado (factos respeitantes ao ponto III da acusação);
e) absolver o arguido, B…………, de um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 203º, n.º1 e 204º, n.º1, al. f), do Cód. Penal, de que vinha acusado (factos respeitantes ao ponto V da acusação);
f) Condenar o arguido, B………….., pela prática, no dia 05-11-2007, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, n.º1 e 204º, n.º1, al. f), do Cód. Penal, em que é ofendida E………….., na pena de um ano e seis meses de prisão (factos respeitantes ao ponto IV da acusação);
g) Suspender a execução da pena fixada pelo período de um ano e seis meses, a contar da data do trânsito em julgado da presente decisão, sujeita a regime de prova;

2. Da sentença recorre o Ministério Público, que formula as seguintes conclusões:

O tribunal a quo ao dar como não provados os factos imputados na acusação ao arguido e por ele praticados no dia 16/10/2007 na residência pertencente a F…………… e no dia 05/11/2007 nas residências pertencentes a G………….. e H………….. [cf. II-B (factos não provados) sob os nºs 19 a 31 do acórdão recorrido], que suportavam a incriminação de crimes de furto qualificado aí imputados ao arguido e de que o absolveu errou notoriamente na apreciação da prova.
a) Na verdade, se o tribunal valorar, ou deixar de valorar, a prova contra todos os ensinamentos da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou apesar de proibições legais, ou invocando critérios legais que no caso sejam inaplicáveis, incorre, inquestionavelmente, em erro na apreciação da prova.
b) Tal erro notório na apreciação da prova, vício da decisão referido no art. 410º, nº 2, al. c) do CPP, extrai-se da decisão recorrida, maxime da sua fundamentação sobre a matéria de facto, incluindo o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, ao não ter ponderado/admitido o depoimento do militar I…………. que lavrou o auto de fls. 144 e ss., que versou sobre a respectiva diligência, pelo mesmo realizada com o arguido, incidindo sobre o comportamento deste ao longo da mesma, incluindo declarações, por considerar que tal meio de prova se mostra proibido de acordo com os arts. 356º, nº 7 e 357º, nºs 1 e 2 do CPP.
c) Tal erro ainda se infere da decisão recorrida por o tribunal a quo afrontar o estatuído nos arts. 150º e 355º do CPP, ao não ter ponderado/aceitado como prova autónoma que é o “auto de reconhecimento do local” ou na terminologia legal o “auto de reconstituição” de fls. 144 e ss. lavrado pela dita testemunha.
d) Não é o nomen juris que releva mas antes a substância/conteúdo da diligência.
e) Não é necessário, como requisito formal da “reconstituição de facto” o ser determinada por juiz, ou magistrado do Mº Pº, pois tal não o impõe o nº 2 do art.150º do CPP.
f) A lei não impede que os agentes da polícia criminal deponham sobre factos de que tiveram conhecimento directo por meios diferentes das declarações prestadas pelo arguido, e, quanto às reconstituições dos factos em si mesmas, tratando-se de provas constantes dos autos e examinadas em audiência, nada impede a sua valoração, sendo certo que o arguido foi confrontado com as mesmas, podendo assim contrariá-las.
g) Os agentes da polícia criminal que procederam à reconstituição do crime podem depor como testemunhas sobre o que se terá passado nessa reconstituição, pois esta situação não está abrangida pelo nº 7 do art. 356º do CPP.
h) A verificação do assinalado vício (erro notório na apreciação da prova), determina o reenvio do processo para novo julgamento, relativo à factualidade considerada não provada pelo tribunal a quo [cf. II-B (factos não provados) sob os nºs 19 a 31 do acórdão recorrido], nos termos dos artigos 426º e 426º-A do CPP.
i) Deverá assim ser anulado o julgamento e sentença recorrida, e determinar-se o reenvio do processo para novo julgamento, quanto à referida parte do seu objecto, e no âmbito do qual se proceda à admissibilidade e valoração de tal prova.
j) Foram violados pelo tribunal a quo por erro de interpretação, os arts. 150º, 355º, 356º, nº 7 e 357º, nºs 1 e 2 todos do CPP.
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Pelo exposto, deverá ser dado provimento ao recurso, anulando-se o julgamento e sentença recorrida nos termos expostos, assim se fazendo JUSTIÇA.
3. Respondeu o arguido dizendo tão-somente que deve ser mantida a decisão recorrida.
4. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer, sufragando a argumentação do Ministério Público em 1ª instância, pelo que o recurso deve proceder.
5. Foram os autos a vistos e realizou-se a conferência.
II
São os seguintes os factos provados e não provados no acórdão recorrido:
“Da discussão e julgamento, resultou provado, com relevância para a decisão final, que:
1. No dia 05-11-2007, a hora não apurada, por volta das 18H30, o arguido dirigiu-se à residência pertencente a E…………., sita no ……….., Mondim de Basto, com o propósito de se apoderar de quaisquer objectos e valores que nela encontrassem e que revestissem interesse económico;
2. Na prossecução dos seus intentos, o arguido abriu a porta da referida habitação, passou pela mesma e introduziu-se na residência;
3. De seguida, o arguido percorreu a mencionada habitação e deitou mão de:
a) € 2 000,00 em nota do BCE, que se encontravam guardadas numa pequena cavidade situada no quarto da respectiva dona, a E…………,
b) Uma aliança em ouro amarelo, com o valor de € 50,00, também guardada no mesmo sítio e pertencente a E…………,
c) Um cordão em ouro amarelo e uma medalha em ouro amarelo, tipo libra, com o valor global de € 480,00, também guardados no referido sítio e pertencentes a E…………….,
d) Um fio em ouro amarelo tipo volta com uma medalha em ouro amarelo e o feitio da letra “M”, com o valor de € 115,00, também guardados no mesmo sítio, pertencentes a E………………;
4. Após, o arguido saiu da mencionada residência levando consigo os bens e quantia monetária supra referidos;
5. O arguido previu e quis actuar da forma descrita, com intenção de fazer coisa sua todos os bens e quantia acima mencionados;
6. O arguido quis penetrar na habitação pela porta acima referida, que sabia que se encontrava fechada;
7. O arguido bem sabia que os bens e quantia que quis fazer seus não lhe pertenciam, ciente de que o fazia sem autorização e contra a vontade da respectiva dona e que, desse modo, lhe causava prejuízo patrimonial;
8. O arguido sabia também que entrava no espaço acima referido sem o consentimento e em desacordo com a vontade de quem de direito utilizando a forma acima descrita;
9. O arguido agiu de modo livre, voluntário e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei;
10. Os objectos referidos em 3 e a quantia de € 44,40, em notas e moedas do BCE, foram restituídos a E……….. pela GNR, após apreensão dos mesmos ao arguido, ocorrida na fase de inquérito do presente processo;
11. À altura dos factos acima enunciados, o arguido vivia sozinho num apartamento arrendado e laborava na construção civil, auferindo rendimento mensal não apurado;
12. Desde há cerca de um ano e dois meses, o arguido vive com a companheira em casa arrendada, pela quantia mensal de € 150,00, situada junto à habitação dos pais desta, dotada das infra-estruturas básicas;
13. O arguido trabalha como trolha auferindo o salário mensal no valor de cerca de € 408,00;
14. O arguido falta com frequência ao trabalho;
15. O arguido é considerado pessoa trabalhadora pela sua entidade empregadora;
16. O arguido mantém postura de cordialidade e de respeito para com os vizinhos;
17. A companheira do arguido frequenta um curso de formação profissional de jardinagem e aufere a bolsa mensal de € 315,00;
18. O arguido tem os antecedentes criminais averbados no seu c.r.c., que consta de fls. 250 e ss., e o seguinte:
- no processo comum colectivo n.º ……/05.0GAMDB, por acórdão proferido no dia 18-10-2008, que ainda não havia transitado em julgado no dia 23-10-2008, foi condenado, pela prática em 23-04-2005 e 23-10-2005, de um crime de furto qualificado na forma continuada, p. e p. pelos arts. 30º, n.º2, 203º, n.º1, e 204º, n.º2, al. e), do CP, um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 203º, n.º1, 204º, n.º2, al. e), do CP, e de um crime de furto simples, p. e p. pelo art. 203º, n.º1, do CP, nas penas de 2 anos e 2 meses de prisão, 18 meses de prisão, e 3 meses de prisão, respectivamente, tendo-lhe sido aplicada, em cúmulo jurídico, a pena única de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova.
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FACTOS NÃO PROVADOS.
Com relevância para a decisão final, não se provou que:
19. No dia 16-10-2007, depois das 14H00, o arguido dirigiu-se à residência pertencente a F…………., sita no …………., ……., Mondim de Basto, visando apoderar-se de quaisquer objectos e valores que ali se encontrassem e denotassem especial interesse económico;
20. Para tal, o arguido assegurou-se de que ninguém se encontrava no interior da residência e utilizou uma escada que se encontrava nas traseiras da casa para subir a uma janela, que logrou abri-la porque se encontrava encostada e não trancada, e introduziu-se no seu interior;
21. Aí, apoderou-se, levando consigo e que logo integrou no seu património, a quantia de € 350,00, que se encontravam dentro de uma bolsa preta, atrás da mesa da cabeceira do quarto;
22. No dia 05-11-2007, em hora não concretamente apurada, mas entre as 08H00 e as 13H00, o arguido dirigiu-se à residência de G……….., sita junto ao cruzamento de ……., ……, Mondim de Basto, com intenção de se apoderar dos objectos e valores que aí encontrasse e que revestissem interesse económico;
23. Para tal, usando um ponteiro de ferro, o arguido “arrombou” a porta da frente da mencionada residência, após o que, logrou abri-la e, passando por aí, conseguiu introduzir-se no interior da habitação;
24. Após, o arguido percorreu as divisões da habitação e remexeu no interior das gavetas de móveis aí existentes;
25. Após, o arguido, porque não encontrou nenhum dos objectos ou valores pretendidos, saiu da referida habitação, nada levando consigo;
26. A reparação dos estragos provocados pelo arguido na habitação de G…………. orçam em € 100,00;
27. No mesmo dia 05-11-2007, também a hora não apurada entre as 10H00 e as 13H00, o arguido dirigiu-se à residência pertencente a H…………., sita no ……….., ……., Mondim de Basto, igualmente com o propósito de se apoderar de quaisquer objectos e valores que nela encontrasse e que revestissem interesse económico;
28. Na prossecução dos referidos intentos, o arguido, utilizando um ponteiro de ferro, “arrombou” a porta do primeiro andar da habitação, após o que conseguiu abri-la e passar pela mesma;
29. Após, o arguido entrou na residência e percorreu os compartimentos da mesma e remexeu em todas as gavetas dos móveis, procurando os objectos e valores pretendidos, que não logrou encontrar;
30. Após, o arguido, porque não encontrou nenhum dos objectos ou valores pretendidos, saiu da referida habitação, nada levando consigo;
31. A reparação dos estragos causados na porta da habitação de H…………… ascende a 50,00;
32. No dia 07-04-2008, cerca das 13H40, o arguido dirigiu-se à residência de J………….., deficiente invisual, sita na Rua ……, ……, Mondim de Basto, também com o propósito de se apoderar de quaisquer objectos e valores que ali se encontrassem e revestissem especial interesse económico;
33. Na prossecução dos referidos intentos, o arguido aproveitou que a porta de entrada da habitação se encontrava apenas encostada e, através desta, introduziu-se no interior da habitação;
34. Desta feita, após percorrer todas as divisões e remexer todas as gavetas dos móveis, o arguido nada levou consigo, apenas por não ter encontrado quaisquer quantias monetárias nem bens que lhe interessassem economicamente;
35. O arguido sabia que não lhe era permitido entrar nas habitações referidas no acervo factual não provado, acima identificadas, e que os valores e bens de que delas pretendia retirar e levar consigo não lhe pertenciam;
36. O arguido queria fazer seus os valores e bens mencionados, ciente de que actuava contra a vontade e sem consentimento dos respectivos donos e que, dessa forma, lhes causava prejuízo patrimonial;
37. O arguido só não concretizou os seus intentos nas residências de G………….., H…………. e J………… por circunstâncias alheias à sua vontade;
38. O arguido, nas circunstâncias referidas no acervo factual não provado, actuou de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.
III
Questão suscitada pelo recorrente:
O erro notório na apreciação da prova.
IV
Apreciando:
1. Manifesta-se o recorrente contra a decisão de o julgador em 1ª instância não ter dado como provados determinados factos praticados pelo arguido/recorrido, que se traduzem, em seu entender, na prática de crimes de furto, factos estes que concretiza logo na conclusão 1ª[1].
E extrai o alegado erro, objecto do recurso, da fundamentação que é feita sobre a matéria de facto, “ incluindo o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, ao não ter ponderado/admitido o depoimento do militar I…………. que lavrou o auto de fls. 144 e ss., que versou sobre a respectiva diligência, pelo mesmo realizada com o arguido, incidindo sobre o comportamento deste ao longo da mesma, incluindo declarações, por considerar que tal meio de prova se mostra proibido de acordo com os arts. 356º, nº 7 e 357º, nºs 1 e 2 do CPP”.
E ainda, no dizer do recorrente, “por o tribunal a quo afrontar o estatuído nos arts. 150º e 355º do CPP, ao não ter ponderado/aceitado como prova autónoma que é, o “auto de reconhecimento do local” ou, na terminologia legal, o “auto de reconstituição” de fls. 144 e ss. lavrado pela dita testemunha”.
2. O tribunal em 1ª instância fundamenta a matéria de facto dada como não provada, nos seguintes termos:
“Ponderando os elementos de prova acima enunciados, conclui-se, no que aos factos não provados concerne, que os mesmos não evidenciam, de modo seguro e inequívoco, a autoria do arguido, não obstante a identidade da actuação dada como provada e a dada como não provada e a circunstância de algumas das actuações dadas como não demonstradas terem ocorrência na mesma data que a actuação demonstrada, em locais próximos daquele em que esta se verificou.
O depoimento do militar I…………., que lavrou o auto de fls. 144 e ss., que versou sobre a respectiva diligência, pelo mesmo realizada com o arguido, incidindo sobre o comportamento deste ao longo da mesma, incluindo declarações, não foi ponderado, considerando que, de acordo com o disposto nos arts. 356º, n.º7, e 357º, n.º1 e 2, do CPP, tal meio de prova se mostra proibido (note-se que o arguido não prestou declarações em audiência de julgamento).
As declarações do arguido prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial também não foram ponderadas, posto que o mesmo não prestou declarações em sede de audiência de julgamento (art. 357º, n.º1, do CPP)”.
3. Ou seja, tudo se resume a apurar se o julgador deveria ter atendido ou relevado o depoimento do agente/militar da GNR, I…………, que lavrou o auto de fls. 144 e ss. e que versa sobre a diligência pelo mesmo realizada com o arguido.
Da fundamentação/motivação do tribunal a quo resulta que o depoimento desta testemunha não foi simplesmente valorado, em nenhum dos seus aspectos, por ter sido considerado proibido face ao disposto nos arts. 356º, n.º7 e 357º, n.ºs1 e 2, do CPP.
Segundo esta fundamentação fáctica do tribunal recorrido, conclui-se que o mesmo integrou nas ditas disposições legais – artigos 356, nº 7 e 357º, nºs 1 e 2, do CPP -, todo o depoimento prestado pela testemunha I…………..
Acontece que nesta fundamentação não é feita qualquer referência ao conteúdo sobre que versou o depoimento da testemunha nem o teor exacto, ainda que de forma sintética ou resumida, do dito depoimento.
Tudo levando a crer que o tribunal a quo não valorou o depoimento desta testemunha, pelo simples facto de a mesma ter participado na elaboração do auto de fls. 144 e ss., a que foi dado o nomen júris de “auto de reconhecimento ao local”.
3.1. Dispõe o artigo 356º, nº 7 - por remissão do artigo 357º, nº 2, do CPP - que “ Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas”.
Compulsado o “auto de reconhecimento ao local” de fls. 144, verificamos que não se está perante um puro acto formal de tomada de declarações ao arguido pela testemunha I…………...
Por sua vez, o acto em si mesmo, não sendo, tecnicamente, um verdadeiro acto de “reconstituição do facto” nos termos definidos e exigidos pelo artigo 150º, do Código de Processo Penal, não deixa, contudo, de ser uma diligência reduzida a auto, integrando um meio de prova não tipificado ou tarifado.
No que respeita aos autos de “reconstituição do facto” - meio de prova previsto no artigo 150º, do CPP -, é jurisprudência actual do Supremo Tribunal de Justiça que “a reconstituição constitui prova autónoma, que contém contributos do arguido, mas que não se confunde com a prova por declarações, podendo ser feita valer em audiência de julgamento, mesmo que o arguido opte pelo direito ao silêncio, sem que tal configure violação do artigo 357º, do Código de Processo Penal” - Acórdão do STJ de 20/04/06, Proc. nº 06P363, consultável in www.dgsi.pt.

Também em ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 5.1.2005, proferido no processo nº 04P3276, podendo ser consultado em www.dgsi.pt.jstj e CJ, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano XIII (2005), tomo I, fls. 159 e seguintes, se decidiu:
“Previsto como meio de prova, autonomizado por referência aos demais meios de prova típicos, uma vez realizado e documentado em auto ou por outro modo (eventualmente em registo audiovisual - artigo 150º, nº 2, 1ª parte, in fine do CPP), vale como meio de prova, processualmente admissível, sobre os factos a que se refere, isto é, como meio válido de demonstração da existência de certos factos, a valorar, como os demais meios, «segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» - artigo 127º do CPP.
Pela sua própria configuração e natureza - reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto - a reconstituição do facto, embora não imponha nem dependa da intervenção do arguido, também a não exclui, sempre que este se disponha a participar na reconstituição, e tal participação não tenha sido determinada por qualquer forma de condicionamento ou perturbação da vontade, seja por meio de coação física ou psicológica, que se possa enquadrar nas fórmulas referidas como métodos proibidos enunciados no artigo 126º do CPP. O meio de prova previsto no artigo 150º do CPP só não será, pois, admissível e validamente adquirido se na reconstituição, ou para criar os pressupostos de facto necessários à reconstituição, tiver sido utilizado qualquer meio (tortura, coacção, ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral) que afecte a liberdade de determinação, o consentimento ou a disponibilidade do arguido para a participação na reconstituição do facto.

Por outro lado, como tem sido aceite de forma sedimentada na jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr., v. g., acórdãos de 16/5/96, proc. 230/96; de 11/12/96, proc. 780/96; e de 22/4/2004, proc. 902704), a proibição constante dos artigos 356º, nº 7 e 357º, nº 2 do CPP não atinge as declarações dos órgãos de polícia criminal sobre factos e circunstâncias de que tenham obtido conhecimento por meios diferentes das declarações do arguido (ou de outro interveniente processual) que não possam ser lidas em audiência.
Nesta perspectiva de compreensão, e vista a dimensão da reconstituição do facto como meio de prova autonomamente adquirido para o processo (artigo 150º do CPP), e a integração (ou confundibilidade) na concretização da reconstituição de todas as contribuições parcelares, incluindo do arguido, que permitiram, em concreto, os termos em que a reconstituição decorreu e os respectivos resultados, os órgãos de polícia criminal que tenham acompanhado a reconstituição podem prestar declarações sobre os modos e os termos em que decorreu; tais declarações referem-se a elementos que ganham autonomia, e como tal diversos das declarações do arguido ou de outros intervenientes no acto”.
3.2. Quanto à concreta diligência reduzida a auto, neste processo, não tendo o valor probatório correspondente a auto de “reconstituição do facto” mas não sendo também um meio de prova proibido nos termos definidos pelos artigos 125º e 126º, do CPP[2], esta diligência de “reconhecimento ao local” é processualmente admissível como meio de prova a valorar nos termos do artigo 127º do CPP, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, quanto aos factos a que se refere, percepcionados directamente pela testemunha I………….., que não colidam com afirmações ou declarações do arguido, cuja leitura seja proibida ao abrigo do já mencionado artigo 356º, nº 7, do CPP.
3.3. Se se reparar no exacto teor do “auto”, verifica-se que o mesmo está elaborado segundo duas formas de descrição de factos/actos:
- Na forma indirecta, onde o agente dá conta, assinala como se iniciou, decorreu e terminou o “reconhecimento em causa; bem como de actos que o mesmo agente percepcionou directamente, tais como lugares e vias percorridos, casas observadas, fotografias que tirou, atitudes ou comportamentos do arguido presenciados e registados.
- Na forma directa, em que o arguido é colocado a narrar, por si próprio, determinados factos ocorridos ou por si praticados[3].
3.3.1. O arguido tem o direito de não responder a quaisquer perguntas que lhe sejam feitas sobre os factos, por qualquer entidade – artigos 61º, nº 1, alínea c), 141º, nº 4 e 343º, nº 1, todos do CPP.
Tendo o arguido optado pelo silêncio durante o julgamento, direito que lhe assiste, a leitura de declarações suas, em audiência, é proibida. Logo, também não podem ser prestados depoimentos testemunhais sobre essas mesmas declarações.
A não se entender assim, seria admitir uma “confissão” do arguido, por interposta pessoa.
Ou, no dizer do ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Maio de 1992, in CJ. Ano XVII, tomo 3º, fls. 31 e ss., “ …fazer-se-ia entrar pela janela aquilo que (a lei) se fez sair pela porta ou seja, o secretismo das declarações prestadas por este último”[4].

3.3.2. Mas, se em relação à descrição directa dos factos pelo arguido, bem identificada no texto do auto de reconhecimento, entendemos que não pode a testemunha em causa, I……….., ser ouvida em declarações[5], o mesmo já não acontece relativamente aos factos por si próprio percepcionados e que deles pode dar conta ao Tribunal[6].
Ou seja, se não é de aceitar o depoimento do agente no sentido de vir reproduzir aquelas afirmações exactas do arguido[7], já é de aceitar tudo o que o agente saiba ou possa saber da sua investigação quer sobre os factos quer sobre a vida do próprio arguido com interesse para os autos, que lhe tenha advindo da sua percepção directa, aqui incluindo vários factos emergentes da realização do auto de reconhecimento dos locais – v. neste sentido, ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 24.2.2003, in CJ. ASTJ, ano I, tomo I, fls. 202 e ss..
Estes elementos serão ou deverão ser, no momento próprio, apreciados pelo Tribunal, por si só ou conjugados com outros, segundo o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º, do CPP.

4. O Ministério Público alegou o vício de erro notório na apreciação da prova, pela não admissibilidade do depoimento da testemunha I…………..

O vício do enunciado “erro notório”, significa ou verifica-se quando o bonnus pater familae, colocado perante o teor do decidido, facilmente se dá conta, por si só ou auxiliado pelo senso comum, que o tribunal, na apreciação e valoração que fez, violou elementares regras da experiência ou efectuou uma apreciação incorrecta, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios.
E, para Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág. 740[8],
“… existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.”
4.1. Conjugando a verificada possibilidade legal de admissão do depoimento da testemunha I…………., nos termos e âmbito delimitados, com a posição do tribunal a quo, de rejeição pura e integral da sua admissibilidade, temos necessariamente de concluir que foi omitido ou não admitido, um meio legal de prova, contra o princípio da sua admissibilidade consagrado no artigo 125º do CPP, uma vez que, in casu, não se está perante um meio de prova proibida.

4.2. O vício cometido pode, pois, qualificar-se de erro notório.
Conjugado, em nosso entender, com outro vício verificado no texto da fundamentação ou motivação da decisão, na medida em que se está perante uma fundamentação insuficiente, pois o tribunal a quo não descreve ou enuncia, ainda que sintética ou sumariamente, o teor do depoimento da testemunha em causa, para desta forma poder ser sindicado pelo Tribunal de Recurso o enquadramento desse depoimento no disposto no artigo 356º, nº 7, do CPP.
Como se anotou, o depoimento pode ser cindido, conforme o seu exacto teor, devendo ser apreciado e valorado naquela parte assinalada.
Pelo que não é em abstracto nem de um modo absoluto, que se pode/deve não admitir o depoimento da testemunha, mas sim apreciar a sua admissibilidade/legalidade, perante o concreto teor desse mesmo depoimento.
V
DECISÃO
- Por todo o exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, consequentemente, anula-se o julgamento quanto aos factos dos crimes de furto praticados no dia 16/10/2007 na residência pertencente a F………… e no dia 05/11/2007 nas residências pertencentes a G………… e H…………. e, ao abrigo do artigo 426º, nº 1, do CPP, determina-se o reenvio do processo para novo julgamento quanto àqueles mesmo factos, no qual deverá ser apreciado e valorado o depoimento da testemunha I…………., nos exactos termos definidos.

Sem custas.

Porto, 27.1.2010
Luís Augusto Teixeira
Artur Daniel T. Vargues da Conceição
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[1] Ou seja: os factos pelo arguido praticados “ no dia 16/10/2007 na residência pertencente a F………….. e no dia 05/11/2007 nas residências pertencentes a G……………. e H………….. [cf. II-B (factos não provados) sob os nºs 19 a 31 do acórdão recorrido]”,
[2] Pois em momento algum se afirma ou resulta que o arguido tenha participado no reconhecimento sob tortura, coacção ou influenciado por qualquer produto ou substância obliteradora da sua vontade livre e esclarecida. Ao invés, resulta do auto que a sua participação foi de livre vontade.
[3] “ Eu estava a trabalhar…e a seguir ao almoço…”.
“ …lembro-me de entrar pelo caminho da frente…” . Eu desci por este caminho e fui até ao barraco…”,
e assim sucessivamente.
[4] Referindo-se a arguido.
[5] Assim o entendemos porque, apesar destas declarações do arguido não terem sido prestados, formalmente, em auto de declarações mas sim segundo a forma que resulta inequívoca do processo – perante o agente, no reconhecimento dos lugares dos factos -, não podemos deixar de lhe atribuir, em termos substantivos, o mesmo sentido e efeitos, pois de verdadeiras declarações/confissão se trata.
Este entendimento encontra apoio nomeadamente no ac. do Supremo Tribunal de Justiça supra mencionado, de 5.1.2005, onde a dado momento se afirma:
“ Estas disposições têm um âmbito de intervenção bem delimitado. Referem-se a declarações (prova pessoal) e pretendem prevenir a utilização probatória indirecta na audiência de declarações que a lei não permite que sejam utilizadas, como as que são prestadas anteriormente, em outro momento processual, e cuja leitura (e, consequentemente, a sua utilização probatória) não seja permitida. No caso de declarações do arguido, resulta do regime específico de leitura previsto no artigo 357º do CPP que, optando pelo silêncio na audiência, não pode haver leitura de declarações anteriores e, consequentemente, os órgãos de polícia criminal não podem der inquiridos como testemunhas sobre tais declarações. Esta interpretação, que imediatamente resulta da projecção literal da norma e da consideração dos elementos e das noções aí empregues, não suscita dúvidas, nem, nestes termos, dificuldades de aplicação. A dificuldade tem surgido apenas relativamente a casos em que o conteúdo do depoimento dos órgãos de polícia criminal incidiria, não sobre declarações processualmente registadas, mas sobre declarações avulsas, não formalizadas, "informais" e, por isso, não submetidas à disciplina (processual e delimitada) da permissão, ou proibição, de leitura.
No que respeita a este ponto, os princípios estruturantes do processo penal e, especialmente, os atinentes ao conteúdo essencial do direito de defesa, não permitem a descaracterização indirecta, mediada por terceiros, dos direitos do arguido a não responder a perguntas ou a não prestar declarações (artigo 61º, nº 1 e artigo 343º, nº 1 do CPP), enquanto tradução da garantia contra a auto-incriminação ("privilege against self-incrimination")¸ que significa que o acusado não pode ser constituído, contra a sua vontade, em fonte de prova contra si próprio, e que não pode ser compelido a testemunhar em seu desfavor. O privilégio contra a auto-incriminação significa que o arguido não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado a contribuir para a sua própria incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer informações ou elementos (v. g., documentais) que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações, sem que do silêncio possam resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis no plano da valoração probatória (cfr., v. g., acórdão de 3 de Maio de 2001, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso J. B. c. Suíça). A possibilidade de colaboração co-determinante no processo, desde a fase de recolha da prova (aquisição da prova), até ao momento de administração relevante e contraditória (utilização) das provas encontra-se porém, na disponibilidade do arguido, que pode livremente colaborar na investigação e contribuir para aquisições probatórias substanciais autónomas das simples declarações que as proporcionam, e que, nessa medida, não podem ser eliminadas posteriormente pela invocação da garantia contra a auto-incriminação”.
[6] Afirma-se no mesmo ac. de 5.1.2005, do Supremo Tribunal de Justiça:
“ E, nesta medida, os termos da colaboração prestada pelo arguido e as consequências derivadas no plano da aquisição probatória, não devem ser postos em causa, caso venha a invocar em momento posterior o direito ao silêncio, salvo se, como se referiu, a vontade e a determinação tiver sido perturbada, constrangida ou condicionada de tal modo que a situação possa ser enquadrada nas proibições de prova do artigo 126º do CPP.
Mas os meios de prova derivados, na medida em que sejam autónomos (recte, em que ganhem autonomia como meios de prova), não se confundem com eventuais informações transmitidas pelo arguido e que tenham possibilitado a identificação e a correspondente aquisição probatória, ou a realização e a prática de actos processuais com formato e dimensão própria na enumeração dos meios de prova. Sendo, porém, este o conteúdo do direito, estão situadas fora do seu círculo de protecção as contribuições probatórias, sequenciais e autónomas, que o arguido tenha disponibilizado ou permitido, ou que informações prestadas tenham permitido adquirir, desde que, como se salientou, a colaboração ou as informações não estejam inquinadas por vícios do consentimento ou da vontade, suposto que o arguido foi informado dos direitos que lhe assistem e que integram o seu estatuto processual, ou pela utilização de métodos proibidos”.
[7] No sentido de a testemunha dizer ao Tribunal que “ o arguido disse que…”.
[8]Bem como em Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Editora Rei dos Livros, pags. 68 e segs.