Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0714692
Nº Convencional: JTRP00040882
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: CRIME
HOMICÍDIO
RECONSTITUIÇÃO DO FACTO
INTENÇÃO DE MATAR
Nº do Documento: RP200712120714692
Data do Acordão: 12/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 508 - FLS 84.
Área Temática: .
Sumário: I - A reconstituição do facto, feita com base em declarações do arguido, vai muito para além dessas declarações, pois integra ainda gestos e atitudes, constituindo um todo que assim se diferencia e autonomiza das simples declarações.
II - Os agentes da Polícia Judiciária que procederam à reconstituição do crime podem depor como testemunhas sobre que se terá passado nessa reconstituição, por essa situação não estar abrangida pelo n.º 7 do art. 356º do CPP.
III - Não é pelo facto de não se ter provado qualquer motivo para o agente ter cometido o crime de homicídio que deixa de haver intenção de matar. A intenção de matar e a existência de um motivo para essa intenção são coisas diversas, podendo verificar-se aquela sem este.
IV - No caso em que o arguido se muniu de uma arma de fogo, a empunhou e apontou à cabeça da vítima, à distância de menos de 1 metro, e disparou, não havendo qualquer elemento indicativo de que esse disparo possa ter sido acidental, manda a lógica que se conclua pela sua voluntariedade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

No .º juízo criminal da comarca de Vila Nova de Famalicão, foi submetido a julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, o arguido B………. que, no final, foi condenado
-na pena de 9 anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio p. e p. pelo artº 131º do Código Penal;
-na pena de 1 ano de prisão, pela prática de um crime de detenção ilegal de arma p. e p. pelo artº 6º da Lei nº 22/97, de 27 de Junho; e
-em cúmulo, na pena única de 9 anos e 8 meses de prisão.

Do acórdão que assim decidiu interpôs recurso o arguido, sustentando, em síntese, na sua motivação:
-A decisão de dar como provados os factos assim descritos assentou exclusivamente no auto de reconstituição de fls. 142.
-Porém, a reconstituição depende de despacho prévio a ordená-la, o que no caso não aconteceu.
-Além disso, a reconstituição foi feita de acordo com o que o recorrente disse, pelo que não tem autonomia em relação às suas declarações.
-Como o recorrente optou por não prestar declarações na audiência, não pode ser valorado como prova tudo quanto se passou na reconstituição.
-Esta não foi produzida nem examinada em audiência, sendo violado o artº 355º do Código de Processo Penal.
-Na fundamentação da decisão de facto diz-se que se teve também em conta o depoimento do inspector da Polícia Judiciária C………., mas este depôs apenas sobre o que se passou durante a reconstituição, ou seja, com base apenas naquilo que disse o recorrente.
-Não se pode concluir que o recorrente estava durante a reconstituição livre de qualquer coacção, na medida em que estava acompanhado apenas de defensor nomeado e não, ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, de mandatário constituído.
-Foi violado o artº 356º, nº 7, do CPP.
-Bem como o princípio in dubio pro reo.
-Mesmo que seja válida a reconstituição, dela não se pode concluir que o arguido agiu com intenção de matar.
-Desconhece-se quais as provas que levaram à conclusão da intenção de matar, o que constitui a nulidade prevista no artº 379º, nº 1, alínea a), também do CPP.
-A matéria de facto dada como provada apenas integra o crime de homicídio por negligência.
-Ocorre o vício do artº 410º, nº 2, alínea a), do mesmo diploma.
-Deve aplicar-se o regime penal especial para jovens delinquentes.
-A pena única não deve ultrapassar os 3 anos de prisão.
-E deve suspender-se a sua execução.

O recurso foi admitido.
Respondendo, o MP na 1ª instância defendeu a improcedência do recurso.
Nesta instância, o senhor procurador-geral-adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.
Foi cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP, nada tendo sido dito.
Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.

Fundamentação:

Matéria de facto:
Foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
1. O arguido era à data dos factos que infra se descrevem, um dos indivíduos de etnia cigana que compunham o acampamento de D………., sito em Santo Tirso.
2. O ofendido E………., também conhecido pela alcunha de “E1……….”, era toxicodependente e adquiria com regularidade produto estupefaciente a indivíduos de etnia cigana que residiam no acampamento de D………., em Santo Tirso.
3. No dia 15 de Fevereiro de 2003, a hora não concretamente apurada, mas entre as 19 horas e as 21,30 horas, o ofendido deslocou-se ao acampamento de D………., a fim de adquirir produto estupefaciente, e dirigiu-se ao arguido.
4. Nas circunstâncias de tempo e de espaço supra referidas, o arguido, que se encontrava munido de uma arma de calibre 6,35 mm, empunhou-a e encostou-a à cabeça do ofendido, apontando-a.
5. Após, o arguido disparou um tiro com a supra referida arma na cabeça do ofendido E………., à queima-roupa, com intenção de o matar, tendo atingido o mesmo.
6. De seguida, com a ajuda de F………., id. a fls. 339, indivíduo toxicodependente que se encontrava no local, introduziu a vítima numa carrinha de sua propriedade, de modelo “Fiat ……….”, com a matrícula ..-..-EQ, e, na companhia de F………., conduziu-o até ao ………., em ………., onde veio a abandonar o ofendido.
7. O ofendido foi encontrado, ferido, cerca das 20 horas, na berma da Rua ………., ………., em ………., tendo sido transportado de imediato para o Hospital de ………., onde faleceu poucos minutos depois.
8. Conforme conclui o relatório de perícia tanatológica de fls. 36 a 41, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, a morte de E………. foi devida a hemorragia cerebral. As lesões descritas foram causa necessária e directa da sua morte e resultaram da acção de arma de fogo. A orientação do tiro é de cima para baixo e de trás para a frente. As características descritas são compatíveis com homicídio.
9. Após uma busca realizada à barraca onde residia o arguido, após os factos, sita no acampamento cigano, no ………., ……., foram apreendidas as seguintes armas, de propriedade do arguido: uma pistola de calibre 6,35 mm Browning, da marca ………., com o respectivo carregador, com 6 munições de igual calibre; uma pistola de calibre 7,65 mm , marca ………., com o nº …… e respectivo carregador com 7 munições de igual calibre; uma pistola de calibre 7,65 mm, marca ………., modelo ., com o nº ……, com o respectivo carregador com 8 munições, descritas e examinadas no relatório de exame de fls. 242 a 247, cujo teor se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
10. Tais armas não se encontram manifestadas e registadas.
11. O arguido não é detentor de licença de uso e porte de arma.
12. O arguido agiu com intenção de matar o ofendido E………. .
13. Apontou-lhe a arma a zonas corporais que bem sabia albergarem órgãos vitais.
14. Não ignorava também a idoneidade letal da arma que utilizou, a eficácia perfurante dos projécteis e a sua capacidade de laceração.
15. Ao apontar a arma, a uma distância de tal modo pequena, sabia, tal como pretendia, que tinha grandes possibilidades de atingir o alvo.
16. O arguido actuou sempre livre e conscientemente, com pleno conhecimento da censurabilidade penal da sua conduta.
17. O arguido descende de uma família de etnia cigana de condição sócio-económica humilde.
18. Encontra-se a residir juntamente com a companheira e uma filha menor (com dois anos de idade), dedicando-se o casal à venda ambulante.
19. Residem no acampamento de D………., num barraco de madeira, sem condições básicas de habitabilidade.
20. O agregado dispõe dos ganhos obtidos no exercício da actividade de feirante, retirando dessa actividade uma quantia que oscila entre os € 75,00 e os € 400,00 por cada feira efectuada. O agregado beneficia ainda do rendimento social de inserção no montante mensal de € 340,00.
21. Habitualmente o arguido ocupa os seus tempos livres na prática religiosa, encontrando-se ligado à Igreja G………., onde toca órgão e participa no coro, ocupação que vem integrando desde há 4 ou 5 anos.
22. Na comunidade de residência, o arguido não foi considerado uma pessoa problemática, sendo considerado um elemento reservado mas cordial.
23. O arguido, face à existência do presente processo, não viu o seu enquadramento sócio-familiar e profissional alterado.
24. O arguido beneficia de algum apoio familiar, nomeadamente por parte da progenitora.
25. O arguido já foi condenado em penas de multa pela prática de dois crimes de condução sem habilitação legal.

E foram dados como não provados outros factos, nomeadamente que (transcrição)
-o arguido vendia produto estupefaciente, designadamente heroína, aos inúmeros toxicodependentes que ali se deslocavam para esse exclusivo efeito;
-o ofendido adquiria com regularidade o produto estupefaciente ao arguido e ao pai do mesmo, H……….;
-em data não concretamente determinada, mas situada na primeira quinzena do mês de Fevereiro de 2006, E………. comprou ao arguido produto estupefaciente no valor de cerca de € 100,00, não tendo pago tal montante ao arguido;
-desde então e porque não tinha condições para pagar o montante em dívida, o ofendido E………. evitava deslocar-se ao supra referido acampamento de D………. para comprar produto estupefaciente, fazendo-se substituir por indivíduos seus conhecidos, designadamente por I………., conhecido por “I1……….”;
-fossem 19,15 horas e que o ofendido se tenha dirigido ao arguido para que o mesmo lhe fornecesse produto estupefaciente;
-a arma de que o arguido se encontrava munido fosse a descrita e examinada no relatório de exame de fls. 242 a 247, cujo teor se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, “uma arma de calibre 6,35 mm Browning (25 ACP ou 25 AUTO, na designação anglo-americana), apresentando a sua superfície metálica cromada”;
-o arguido ao mesmo tempo tivesse intimado o ofendido a pagar o montante em dívida;
-o ofendido não se dispôs a pagar tal montante;
-o arguido tenha tido a ajuda de um outro indivíduo toxicodependente e que tenham transportado o ofendido, em braços, para a casa de banho de uma residência próxima do local;
-a matrícula do veículo Fiat fosse ...-..-EG;
-a busca tenha sido realizada em Vila Nova de Gaia;
-tenha sido encontrada qualquer outra arma para além das descritas nos factos provados.

Conhecendo:
O recorrente, como se viu, entende que o tribunal recorrido considerou provados os factos assim descritos com base apenas no auto de reconstituição de fls. 142, sendo que essa reconstituição não pode servir como meio de prova.
O primeiro reparo que o recorrente faz a essa reconstituição é a falta de despacho a ordená-la.
Esse despacho efectivamente inexiste e, de acordo com o artº 150º, nº 2, do CPP, a reconstituição deve ser precedida de despacho que contenha “uma indicação sucinta do seu objecto, do dia, hora e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efectivação, eventualmente com recurso a meios audiovisuais”, sendo que “no mesmo despacho pode ser designado perito para execução de operações determinadas”.
Mas a falta desse despacho não afecta o valor da reconstituição como meio de prova, por lhe ser exterior. A existência do despacho representa apenas uma boa prática processual, atento o seu efeito ordenador e definidor das diligências que hão-de integrar a reconstituição. Por isso, a ausência de despacho a determinar a reconstituição preencherá um vício estritamente processual, vício que, não estando previsto como nulidade, só pode, nos termos do artº 118º, nºs 1 e 2, do referido código, constituir irregularidade.
E tal irregularidade, não afectando o valor do reconhecimento, na medida em que, como se viu, se consubstanciou na omissão de uma formalidade que não integra o conteúdo desse acto, não é, nos termos do nº 2 do artº 123º do CPP, de conhecimento oficioso. Por isso, para ser conhecida, tinha de ser arguida perante o tribunal de 1ª instância no prazo referido no nº 1 desse artº 123º. Nunca em sede de recurso. Recurso só poderia haver da decisão que apreciasse a arguição da irregularidade.
Assim, não se tendo seguido esse caminho, o vício, a ter existido, sanou-se.

Diz depois o recorrente que “o CPP restringe a reconstituição do facto (...) a situações em que o simples exame e inspecção dos vestígios deixados pelo crime sejam insuficientes ou não tenham sido tempestivamente recolhidos”. Mas, para além de não tirar qualquer consequência desta alegação, não alega que no caso não se verificava qualquer dessas situações, nem qual a norma que impõe uma tal restrição, que se não vislumbra.
Nesta alegação, o recorrente, ainda que não o diga, terá certamente em vista a posição que nesse sentido é defendida por Marques Ferreira em Meios de Prova, Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ, 1991, fazendo apelo ao nº 1 do artº 171º do CPP.
Mas esta norma trata de um meio de obtenção da prova, os exames, que podem ser feitos em pessoas, lugares e coisas, com vista à detecção de sinais que possa ter deixado o crime, não se vendo impedimento para, a par da recolha desses sinais, se procurar fazer a reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e a repetição do modo de realização do mesmo, que é no que consiste a reconstituição do facto, conforme definição do nº 1 do artº 150º.
A reconstituição do facto está para além da situação descrita no nº 3 daquele artº 171º: Se os vestígios deixados pelo crime se encontrarem alterados ou tiverem desaparecido, descreve-se o estado em que se encontram as pessoas, os lugares e as coisas em que possam ter existido, procurando-se, quanto possível, reconstituí-los e descrevendo-se o modo, o tempo e as causas da alteração ou do desaparecimento.
De qualquer modo, não se mostra nem o recorrente alega que tenham sido recolhidos vestígios deixados pelo crime nem sequer que fosse possível essa recolha.

Em terceiro lugar, diz o recorrente que o auto de reconstituição refere que foi assinado por todos os intervenientes – o arguido, o defensor nomeado e quatro inspectores da Polícia Judiciária – quando apenas contém cinco assinaturas.
É certo que o auto em análise refere que o arguido procedeu à reconstituição na presença do defensor – o advogado Dr. J………. – e dos inspectores K………., L………., C………. e M………., ou seja, seis intervenientes, e que só contém cinco assinaturas.
Porém, não estando arguida a falsidade do auto, não se vê qual a relevância da alegação, da qual o recorrente não retira, aliás, qualquer consequência.
Nomeadamente, não alega que não assinou o auto de reconhecimento, sendo até evidente que a sua assinatura se encontra ali aposta. E em relação ao defensor nomeado, aceita que este encontrava presente na acto de reconstituição.
A falta de uma assinatura é, nestas condições, inócua.

Em quarto lugar, diz o recorrente que no acto de reconstituição do facto esteve assistido por defensor nomeado e não por mandatário. Também desta alegação não extrai qualquer consequência, nem podia extrair, visto que, como diz, na altura ainda não constituíra mandatário. O facto de o arguido ter estado assistido por defensor nomeado e não por mandatário, que ainda não constituíra, é totalmente irrelevante em termos de valor da diligência como meio de prova.
Por isso é destituída de sentido a alegação do recorrente de que “não se pode concluir que estava durante a reconstituição livre de qualquer coacção, na medida em que estava acompanhado apenas de defensor nomeado e não, ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, de mandatário constituído”. A liberdade de vontade e de decisão do arguido numa diligência de prova levada a cabo por órgãos de polícia criminal é assegurada tanto pela presença de defensor nomeado, quando é advogado, como no caso, como pela de mandatário constituído.

Em quinto lugar, diz o recorrente que a reconstituição foi efectuada apenas com base nas suas declarações, pelo que toda a diligência mais não representa que declarações de arguido prestadas no inquérito, que não podem valer como meio de prova.
É certo que a reconstituição do facto foi feita com base em declarações do arguido, mas não só, pois a acção integra também gestos, atitudes. O todo constituído pelas declarações e gestos do arguido é que consubstancia a reconstituição, que assim se diferencia e autonomiza das simples declarações. O arguido não se limitou a dizer que disparou sobre a vítima à distância de um braço e a explicar os passos dados para tirar dali o corpo.
Com efeito, indicou o local onde a acção se desenvolveu, levando ali os investigadores; mostrou, por gestos, como apontou a pistola na direcção da cabeça da vítima e a distância a que se encontrava desta, que, no acto de reconstituição, se encontrava substituída por outra pessoa, tal como se vê da fotografia de fls. 144; exemplificou como, com a ajuda de outra pessoa, que identificou, transportou a vítima para um automóvel; e indicou, percorrendo-o com os inspectores da Polícia Judiciária, o trajecto que seguiu até ao local onde disse que abandonou o ofendido e onde este foi efectivamente encontrado – fotografias de fls. 145-149.
Há aqui uma realidade nova, uma realidade que está para além das meras declarações e que, sustentando-se embora também nestas, configura algo de muito distinto, algo que não é apenas o somatório das declarações do arguido e dos gestos que desenvolveu, não podendo ser decomposto nessas declarações e nestes gestos. Certo que tudo começa com as declarações, mas estas deixam de ter autonomia quando integradas na acção global, da qual o que sobressai até são os gestos, pelo realismo que transmitem.
Como se decidiu em acórdão do STJ de 20/04/2006, que pode ser consultado em www.dgsi.pt, onde tem o nº SJ200604200003635: “A reconstituição constitui prova autónoma, que contém contributos do arguido, mas que não se confunde com a prova por declarações, podendo ser feita valer em audiência de julgamento, mesmo que o arguido opte pelo direito ao silêncio (...). A verbalização que suporta o acto de reconstituição não se reconduz ao estrito conceito processual de «declarações», pois o discurso ou «declarações» produzidos não têm valor autónomo, dado que são instrumentais em relação à recriação do facto”.
No mesmo sentido pode ainda ver-se o acórdão de 05/01/2005, proferido no processo nº 3276/04 da 3ª secção: “A reconstituição do facto, como meio de prova tipicamente previsto, uma vez realizada no respeito dos pressupostos e procedimentos a que está vinculada, autonomiza-se das contribuições individuais de quem tenha participado e das informações e declarações que tenham co-determinado os termos e o resultado da reconstituição. As declarações (rectius, as informações) prévias ou contemporâneas que tenham possibilitado ou contribuído para recriar as condições em que se supõe ter ocorrido o facto diluem-se nos próprios termos da reconstituição, confundindo-se nos seus resultados e no modo como o meio de prova for processualmente adquirido”.
Este mesmo entendimento está implícito na seguinte anotação de Simas Santos e Leal Henriques, em Código de Processo Penal Anotado, 1º volume, 1999: “Este meio de prova pode ser de grande valor, prevenindo as dificuldades de prova que, em circunstâncias específicas, se possam levantar em julgamento quanto, v. g., à verosimilhança da tese da acusação. E quando conte com a colaboração do arguido, v. g., por se seguir à confissão, prevenindo, de algum modo, alterações de estratégia de defesa em audiência”.
A reconstituição é, assim, um meio de prova a que se não aplicam as limitações impostas às declarações do arguido.

O recorrente fala ainda em violação do artº 356º, nº 7, do CPP: “Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida (...) não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas”.
Não chega a perceber-se onde o recorrente vê esta violação, sendo que a sua alegação surge após a afirmação de que “quer o auto de reconstituição quer o conhecimento do sobredito inspector da Polícia Judiciária C………. não foram obtidos por meio diferente das declarações do arguido”.
A reconstituição do facto está claramente fora do âmbito da norma em referência, até porque, como se viu, não se confunde com as declarações que para ela tenham contribuído.
A testemunha C………., inspector da Polícia Judiciária, foi ouvida na audiência, mas, como se vê da fundamentação da decisão recorrida, apenas sobre o auto de reconstituição. Assim, diz-se ali: “esclareceu que fizeram a reconstituição dos factos de acordo com o que lhes foi dito pelo arguido, e portanto segundo as suas indicações. (...) Mais esclareceu que fizeram a reportagem fotográfica junta aos autos, quer no referido acampamento, quer no local onde o arguido terá deixado o corpo da vítima, e tudo por indicação do arguido. O depoimento desta testemunha foi devidamente conjugado com o auto de reconstituição dos factos junto aos autos, e foi atendido na parte em que deu conta daquilo que presenciou aquando da realização na fase de inquérito da referida reconstituição”.
Deste modo, a inquirição na audiência desta testemunha, tendo tido como objecto a reconstituição do facto e não declarações tomadas ao arguido, não cai sob a proibição do nº 7 do artº 356º. Nesse sentido decidiu o STJ em acórdão de 11/12/1996, publicado no BMJ 462º, páginas 299-303: “Os agentes da Polícia Judiciária que procederam à reconstituição do crime podem depor como testemunhas sobre o que se terá passado nessa reconstituição, por essa situação não estar abrangida pelo nº 7 do artigo 356º do Código de Processo Penal”.

Não se vê fundamento para a alegação do recorrente de que as declarações que proferiu no âmbito da reconstituição “foram prestadas à margem do processo”, pois a reconstituição é um acto do processo e, como se disse, essas declarações não têm autonomia.

Diz ainda o recorrente que a reconstituição não foi examinada na audiência, violando-se, assim, o comando do artº 355º do CPP.
Não tem razão, pois resulta da acta o contrário do que afirma.
Efectivamente, na sessão da audiência de julgamento de 13/02/2007, o Ministério Público requereu que, relativamente à reconstituição, fosse chamado a depor um dos inspectores da Polícia Judiciária que nela participou – fls. 506. No seguimento do deferimento desse requerimento, apresentou-se e foi inquirido na audiência, na sessão de 27/02/2007, o já referido inspector C………. – fls. 523 –, sendo o objecto da inquirição exactamente a referida reconstituição, como resulta da fundamentação do acórdão recorrido e acima já se referiu.

Não se verifica, pois, qualquer motivo para invalidar como meio de prova o auto de reconstituição que se vem analisando.

E, no caso, até se pode dizer que a decisão recorrida no ponto em discussão não se baseou exclusivamente na reconstituição, pois para além dela, e confirmando-a, há o facto de o ofendido ter sido encontrado, ferido e com pouco tempo de vida, no local que posteriormente, no âmbito da reconstituição, o arguido apontou como sendo aquele onde abandonara a vítima.

Ainda em sede de matéria de facto, pretende o recorrente que, mesmo sendo válida a reconstituição do facto, não há fundamento para concluir que agiu com intenção de matar, argumentado assim:
-“da matéria de facto provada não consta qualquer facto atinente ao motivo do crime”;
-da matéria de facto provada não resulta que o arguido manuseasse a arma com a finalidade de disparar sobre a vítima;
-nomeadamente, essa conclusão não se pode tirar do facto de a arma ter sido usada “à queima-roupa”;
-ficará sempre a dúvida sobre se o disparo foi voluntário ou involuntário.
E rematando esta argumentação diz: “Desconhece-se assim qual o fundamento de onde foi extraída a ilação de que o arguido teve intenção de matar, por inexistência do exame crítico sobre as provas que concorreram para a formação da convicção do tribunal a quo”, ocorrendo, em consequência, a nulidade prevista no artº 379º, nº 1, alínea a), com referência ao artº 374º, nº 2, do CPP”. E ainda: “Entendeu o tribunal a quo que a intenção de matar se extrai da conjugação dos seguintes factores: instrumento utilizado (arma de fogo), distância do disparo e região atingida. (...). No entanto, entendemos, salvo melhor opinião, que inexistindo provado qualquer motivo para a prática pelo arguido do crime de homicídio, tal falta de motivação não permite extrair a conclusão, sem margem para qualquer dúvida, de que houve intenção de matar”.
Nesta última parte, em que se invoca a nulidade do artº 379º, nº 1, alínea a), há uma clara contradição no discurso do recorrente: por um lado, afirma que não se sabe, por isso não ser explicado na decisão recorrida, qual o fundamento da conclusão de que o arguido agiu com intenção de matar e, por outro, que o tribunal recorrido deu como provado esse facto com um determinado fundamento, do qual, porém, discorda.
Reconhece, assim, o recorrente que não houve falta de fundamentação da decisão de considerar provado este facto – intenção de matar. O que acontece é que ele não concorda com essa fundamentação.
Compreende-se mal a referência que faz à falta de exame crítico das provas que neste ponto serviram para formar a convicção do tribunal, na medida em que, como bem percebeu, essa convicção não se formou com base em provas directas, mas antes seguindo um raciocínio lógico-dedutivo, explicitado na decisão recorrida de um modo muito claro:
“No que diz respeito ao elemento subjectivo, entendeu o tribunal que o mesmo resulta da conjugação de vários factores, que levam o tribunal a concluir pela intenção de matar. Com efeito, atendendo ao tipo de arma utilizada, à distância a que a mesma foi disparada e ao local onde o ofendido foi atingido (na cabeça), não podemos deixar de concluir que o arguido agiu intencionalmente, com vontade de atingir mortalmente o ofendido. Assim no que diz respeito ao elemento subjectivo do crime de homicídio, nomeadamente quanto à intenção de matar, o mesmo resulta, além do mais, e como acima ficou dito, do instrumento utilizado pelo arguido, da distância a que o arguido efectuou o disparo, bem como da região atingida”.
O que temos, pois, de ver é se esse raciocínio é correcto, sendo no fundo esse o objecto da discordância do recorrente neste ponto.
Como é bem sabido, nem sempre é necessário que haja provas directas da ocorrência de determinado facto para que ele se possa ter como provado, admitindo-se a prova por dedução, assente num raciocínio lógico: a partir de determinados factos que já estão assentes pode concluir-se pela verificação de outros que são a sua necessária consequência.
Os dados que estão assentes, a partir do auto de reconstituição de fls. 142, que já vimos ser prova válida, são:
-o arguido encontrava-se num acampamento de ciganos, onde residia;
-a vítima dirigiu-se ali para comprar produto estupefaciente;
-o arguido estava munido de uma pistola de calibre 6,35 mm;
-empunhou essa arma e apontou-a à cabeça da vítima, a uma distância não superior ao comprimento de um braço, e disparou.
A partir destes dados conhecidos como não concluir que o arguido quis matar a vítima, se a morte era a consequência inelutável de um disparo com arma de fogo nas referidas circunstâncias?
Vem agora o arguido dizer que sempre haverá a dúvida sobre se o disparo foi voluntário ou involuntário, por não estar provado qualquer motivo para querer matar o ofendido.
Mas a intenção de matar e a existência de um motivo para se ter essa intenção são coisas diversas, podendo verificar-se aquela sem este. Como parece evidente, a falta de apuramento de um motivo para a prática de um facto não é obstáculo a que se considere esse facto provado se tal for imposto pelas regras da lógica.
No caso, o arguido muniu-se de uma arma de fogo, empunhou-a e apontou-a à cabeça da vítima, à distância de menos de 1 metro, e deu-se o disparo. Se toda a conduta até ao disparo foi voluntária e se o arguido não foi perturbado na sua acção nem há qualquer outra indicação de que o disparo pode ter sido acidental, manda a lógica que se conclua pela sua voluntariedade.
Assim, porque a decisão recorrida não dá qualquer indicação de que tenha ficado na dúvida sobre se este facto se verificou nem que, pelo que se disse, devesse ter ficado, é infundada a alegação de que foi violado o princípio in dubio pro reo.

Fala o arguido, ainda a propósito desta matéria, no vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto – artº 410º, nº 2, alínea a), do CPP.
Tal vício estaria em os factos provados não serem suficientes para integrarem o crime de homicídio do artº 131º do CP, preenchendo apenas o crime de homicídio por negligência grosseira do artº 137º, nºs 1 e 2.
Mas a verdade é que o arguido só discorda da qualificação dos factos como crime de homicídio do artº 131º por entender que não se provou a intenção de matar. Estando esta assente, como já se decidiu, não tem sentido a pretensão de que os factos provados não são suficientes para preencherem o crime de homicídio do artº 131º.
E deve dizer-se que esta alegação nada tem que ver com o vício do artº 410º, nº 2, alínea a), que ocorre quando o tribunal não decidiu toda a matéria de facto relevante para a decisão de direito.
Quando o tribunal dá como provado um facto sem haver prova bastante, o que há um errado julgamento da matéria de facto. E quando considera verificado um crime sem estarem provados os factos que o preenchem está-se perante uma errada qualificação dos factos, ou seja, um erro de direito.

Matéria de direito:
O recorrente não põe em discussão que cometeu o crime de detenção ilegal de arma de defesa p. e p. pelo artº 6º da Lei nº 22/97, como de facto cometeu, sendo que, como se justifica na decisão recorrida, o regime da Lei nº 5/2006 o não favorece.
E só discorda de que praticou o crime de homicídio do artº 131º do CP enquanto defende que não se provou a intenção de matar. Tendo-se decidido em sede de facto que houve intenção de matar, esta questão está resolvida.

Resta portanto a determinação das penas.
Nesta matéria, começa o recorrente por defender que deve ser atenuada especialmente a pena por aplicação do regime penal especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, consagrado no DL nº 401/82, de 23 de Setembro.
Ainda que dos factos considerados provados não conste a idade do arguido, vê-se do documento de fls. 388 que nasceu em 26/02/1984, pelo que à data dos factos estava prestes a completar apenas 19 anos de idade.
O regime penal especial para jovens, como se afirma no preâmbulo do DL nº 401/82, tem atrás de si não só a “ideia de que o jovem imputável é merecedor de um tratamento penal especializado”, mas também um “pensamento vasto e profundo, no qual a capacidade de ressocialização do homem é pressuposto necessário, sobretudo quando este se encontra ainda no limiar da maturidade”.
Em coerência, o artº 4º desse diploma estabelece que, se ao caso for aplicável pena de prisão, “deve o juiz atenuar especialmente a pena (...) quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultam vantagens para a reinserção do jovem condenado”.
É, pois, a ressocialização do arguido a finalidade primeira da aplicação deste regime penal especial, considerando o “carácter transitório da delinquência juvenil” de que fala o acórdão do STJ de 27/10/2004, publicado em Colectânea de Jurisprudência, 2004, páginas 212-214, citando o texto da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 45/VIII, Diário da Assembleia da República, II série-A, de 21/09/2000.
No caso, o arguido, não obstante a sua jovem idade, empunhou a arma de fogo que já tinha consigo, apontou-a à cabeça da vítima, a uma distância que tornava praticamente impossível falhar o alvo, e disparou um tiro, com intenção de matar. É este um comportamento que evidencia uma personalidade fria, uma personalidade que despreza a vida alheia, que encara com naturalidade a prática de crimes, mesmo os mais graves. E um comportamento gratuito, pois o arguido não estava a ser afrontado pelo ofendido, que se quedou numa postura de total submissão. Aquela frieza está ainda patente no facto de depois de atingir o ofendido o haver transportado de automóvel para outro local, onde abandonou o corpo ainda com vida.
Ainda que se não conheça a prática de outros crimes por parte do arguido, o certo é que, pelo que se disse, não se pode considerar o caso em julgamento como um episódio efémero na vida do arguido, um episódio que se não repetirá no futuro, se houver agora da parte do tribunal um tratamento favorável com a aplicação de uma pena especialmente atenuada.
A facilidade com que o arguido partiu para a agressão intencionalmente mortal, a familiaridade com as armas de fogo, patente no facto de ser proprietário de três pistolas diferentes da utilizada na ocorrência, a destreza e o domínio da situação revelados inculcam que o recorrente, não obstante a sua juventude, já passou o limiar da maturidade.
Numa tal situação, a atenuação especial da pena, ao invés de facilitar a reinserção social, levaria a que ele encarasse com menos seriedade a pena, constituindo por isso uma mensagem errada.
Não havendo, assim, fundamento para crer “que da atenuação resultam vantagens para a reinserção do jovem condenado”, não deve atenuar-se especialmente a pena por aplicação do artº 4º do DL nº 401/82.

Defende depois o recorrente que, mesmo não se aplicando aquele regime, a medida da pena deve ser reduzida.
Mas objecto da sua discordância é somente a medida da pena aplicada ao concurso de crimes; não a medida de cada uma das penas parcelares.
Com efeito, o que diz é que a pena de 9 anos e 8 meses é manifestamente exagerada.
Não esclarece, contudo, quais as razões pelas quais discorda da medida da pena única, limitando-se a enunciar os critérios legais de determinação da medida da pena e a afirmar que a pena aplicada não realiza nenhum dos fins das penas.
E termina com a alegação de que a pena do concurso não deve ultrapassar os 3 anos de prisão.
Esta última pretensão só se compreende no âmbito daquela outra da atenuação especial da pena, que, porém, já foi afastada.
Ainda que o recorrente não explicite os motivos pelos quais entende que a pena aplicada ao concurso deve ser reduzida, do que resulta não estar colocada nesta parte qualquer verdadeira questão, e apesar de não se estar perante questão de conhecimento oficioso, sempre se dirá que o tribunal recorrido respeitou aqui os critério legais de determinação da medida da pena.
Esses critérios são a culpa do agente e as exigências de prevenção, nos termos do artº 71º, e ainda os factos e a personalidade do arguido, considerados em conjunto, de acordo com o artº 77º, nº 1.
Nesta matéria, como ensina Figueiredo Dias, “tudo deve passar-se (...) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente" (Direito Penal, Parte Geral, II, As Consequências Jurídicas do Crime, páginas 291-292).
Os limites máximo e mínimo da pena aplicável são, respectivamente, 10 e 9 anos de prisão – nº 2 deste último preceito.
A culpa do arguido é muito alta, em face do dolo intenso, patente no facto de arguido se ter munido da pistola para matar e haver executado o crime de homicídio de um modo que praticamente afastava qualquer possibilidade de falhar.
Por outro lado, são elevadas as necessidades de prevenção geral, atenta o desprezo revelado pelo arguido pelos valores que enformam a ordem jurídica, designadamente pela vida alheia.
E de prevenção especial pela facilidade com que o arguido se muniu de uma arma de fogo que não podia deter e com ela tirou a vida à vítima, para além de ser proprietário de outras três armas de fogo, em situação ilegal.
Essa circunstâncias, não obstante a ausência de antecedentes criminais, são reveladoras de uma personalidade afeiçoada ao crime, não permitindo a conclusão de que se está perante comportamentos ocasionais.
Da ponderação destes dados não resulta que seja excessiva a fixação da pena do concurso em 9 anos e 8 meses de prisão.

O recorrente fala ainda na suspensão da execução da pena, mas tal pretensão só tem sentido enquanto conjugada com a da atenuação especial da pena, pois só por essa via se poderia chegar a uma pena que permitisse a suspensão, isto é, actualmente, não superior a 5 anos de prisão. Mantendo-se a medida da pena fixada na decisão recorrida, falta o pressuposto formal da aplicação desta pena de substituição – artº 50, nº 1, do CP.

A nova versão do CP, resultante da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, não consagrando soluções mais favoráveis ao arguido, no que aqui importa, pois não sofreram alteração a pena aplicável ao crime de homicídio nem os critérios de determinação da pena concreta, não tem aplicação no caso.

Decisão:

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso.
O arguido vai condenado a pagar as custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.

Porto, 12 de Dezembro de 2007
Manuel Joaquim Braz
Luís Dias André da Silva
Francisco Marcolino de Jesus
José Manuel Baião Papão