Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0656042
Nº Convencional: JTRP00039714
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
DISPENSA
Nº do Documento: RP200611130656042
Data do Acordão: 11/13/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: DISPENSA DE SIGILO BANCÁRIO.
Decisão: DISPENSADO O SIGILO.
Indicações Eventuais: LIVRO 279 - FLS. 2.
Área Temática: .
Sumário: I) - O sigilo bancário não é um direito absoluto, já que se admite a sua quebra, desde que justificada por fundadas razões e mediante autorização judicial.
II) – Havendo colisão de direitos, deve prevalecer o direito que, social e juridicamente, se situe num patamar de interesse (público) superior.
III) – Colidindo interesses diversos, ambos dignos de protecção – o dos Tribunais em proferirem decisões conformes à Verdade – ainda que agindo sob o impulso de pessoas jurídicas em sentido lato – e o dos Bancos, em preservarem o sigilo bancário dos seus clientes, prepondera aquele, mesmo que se trate de um pleito civil.
IV) – Mais a mais se se indiciam contornos de mega-fraude, envolvendo operações bancárias, e que a Justiça tem o dever de averiguar sem peias que limitem a sua actividade soberana, não sendo de sobrepor a esse interesse público, o do Banco em não revelar os movimentos da conta bancária de um seu cliente, sendo essa informação de previsível interesse para a decisão da litígio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B………….. Ldª, instaurou, em 19.11.2003, pelas Varas Cíveis da Comarca do Porto – …ª Vara – acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra:

Banco C…………….

Pedindo que o Banco Réu seja condenado:

I – a pagar à autora a quantia de € 35.500,00 euros, acrescida dos juros vencidos, à taxa prevista no artigo 102.°do Código Comercial, desde 15 de Janeiro de 2003, ate 15 de Novembro de 2003, e que totalizam a quantia de € 3.550,00 (três mil quinhentos e cinquenta euros);

II – a pagar à autora os juros vincendos desde 15 de Novembro de 2003, sobre o capital em dívida, ou seja, € 35.500,00, até efectivo e integral pagamento à taxa do aludido artigo 102.° do Código Comercial;

III – a pagar os juros vencidos e vincendos capitalizados anualmente, nos termos do disposto no art. 560°, nº1 (parte final) e 2 do Código Civil;

Para tanto alegou em resumo:

- o contrato de depósito bancário com o Banco réu foi celebrado, em 27 de Setembro de 1979, com o então Banco D………., S.A., que se fundiu, por incorporação, no Banco réu, contrato que a abertura da respectiva conta formalizou;

- a conta foi aberta na agência do então Banco D………, S.A./Agência do …….. – e à mesma foi dado o número 12451410001;

- para além do referido contrato de depósito bancário, a autora celebrou com o Banco réu uma convenção de cheque mediante a qual ficou autorizada a dispor das quantias depositadas através das ordens de pagamento dadas através de cheques;

- os cheques são impressos pelo Banco réu a partir de um modelo por si elaborado, em papel cuja textura e características são por si definidas;

- a autora sempre teve como prática habitual apor nos cheques um carimbo com os dizeres “para levar em conta”, o que era feito com o objectivo dos cheques só poderem ser depositados numa conta do beneficiário – cfr. artigo 39º da Lei Uniforme s/Cheques;

- nos cheques emitidos pela Autora sempre constou como local de pagamento, a localidade onde tem a sua sede, ou seja, ……….;

- a Autora conta, entre os seus fornecedores, a empresa italiana E………, SRL, com sede na ……, ……, Bréscia;

- para pagamento de alguns dos fornecimentos, efectuados pela E……., a Autora, emitiu, em 2 de Janeiro de 2003, um cheque sobre a conta aludida;

- o cheque emitido tinha o número e valor a seguir indicados: data 02-01-2003; número 7620234102 - valor € 17.39776;

- o cheque foi enviado pelo correio para o fornecedor italiano, tendo o cheque n. 7620234102 sido destinado ao pagamento da factura nº030/2023;

- o cheque, como sempre sucedeu, foi emitido, nominativamente, ou seja, a favor da E……. e no mesmo foi aposto o carimbo com os dizeres: “para levar em conta” – cfr. doc n.°l.

- o referido cheque foi furtado, segundo se supõe, nos correios italianos;

- os autores do furto – ao apoderarem-se do cheque – tomaram conhecimento do numero da conta da autora, do número do cheque utilizado e da assinatura dos responsáveis da “B………” que vinculavam a sociedade e que, por essa razão, possibilitavam a emissão e movimentação do cheque;

- a partir desses elementos, os autores do furto fabricaram, através da técnica da digitalização, um documento falso, correspondente ao cheque 7620234102, que imprimiram num papel com características diferentes das do utilizado pelo Banco réu;

- após a contrafacção do outro documento (cheque 7620234102), os autores do furto preencheram o mesmo com o valor de € 35.500 (trinta e cinco mil e quinhentos euros) e apuseram no documento digitalizado a data de 14 de Janeiro de 2003 e bem ainda, Famalicão, como o local da emissão;

- no documento não constava nenhum beneficiário da ordem de pagamento dada ao banco: o beneficiário do documento falsificado era o portador;

- o documento foi apresentado e entregue fisicamente, em 15 de Janeiro de 2003, num dos balcões de Lisboa no Banco réu, por um tal F…………., que entregou o documento para depósito numa conta de que era titular, também no Banco réu;

- a conta em causa era recente e não tinha, nem nunca teve, movimento que pudesse justificar, sem suspeita, o depósito de um cheque ao portador de tão elevado valor, ou seja, € 35.500;

- a quantia de € 35.500 (trinta e cinco mil e quinhentos euros) foi debitada, na mesma ou seja, 15 de Janeiro de 2003, na conta da Autora;

- na altura, a Autora não tinha sequer saldo disponível para a conta poder ser debitada;

- apesar disso, o Banco réu não contactou a Autora e procedeu ao débito da conta, com base no documento que lhe foi apresentado e que constituía uma grosseira falsificação;

- todos os escritos efectuados no cheque apresentavam o aspecto de terem sido digitalizados – como se o cheque todo ele tivesse sido preenchido através de uma “espécie de chancela” – sendo evidente, pela simples observação, que não se tratava de caligrafia original;

- o empregado do Banco réu, que recebeu e pagou o cheque, ignorou todas estas anomalias e debitou a conta da Autora com base no documento que lhe foi apresentado sem ter tido o cuidado de previamente a contactar;

- o Banco réu ignorou, igualmente, que a Autora jamais passou qualquer cheque ao portador do valor do documento/imitação;

- apesar de todas as evidências sobre a negligência com que agiu ao debitar a conta da Autora, o Banco réu recusou-se a anular o débito efectuado e, consequentemente, a creditar a conta do montante indevidamente lançado;

- para além do capital em dívida, a Autora é credora dos juros, calculados sobre a quantia de que se encontra privada (€ 35.500,00 – trinta e cinco mil e quinhentos euros) desde 15 de Janeiro de 2003 até ao efectivo e integral pagamento, que totalizam, até 15 de Novembro de 2003, a quantia de € 3.550 (três mil quinhentos e cinquenta e cinquenta euros).

O Réu contestou, excepcionando a incompetência material do Tribunal da causa, aduzindo, no essencial, e no que ao mérito da pretensão concerne que actuou com a diligência devida.

Já na fase instrutória do processo, a Autora a fls. 416 requereu:

“Para prova da matéria de facto contida nos nºs 21 e 22 da base instrutória requer-se que o banco réu seja notificado para juntar aos autos cópia de todos os movimentos feitos a crédito e a débito da aludida conta desde o seu início.
Uma vez que o banco réu irá tentar, provavelmente, “esconder-se” no “sigilo bancário” para tentar esconder a incúria com que agiu e uma vez que está indiciado um comportamento criminoso do titular da conta, desde já se requer, a fim de ser ordenada a dispensa de sigilo, que seja dado cumprimento ao disposto no nº4 do artigo 519º do Código de Processo Civil.”

A fls. 455 e verso, o Réu considerou que o fundamento invocado pela Autora não era suficiente para justificar a quebra do sigilo bancário.

A fls. 503, “o réu informou que facultará ao Tribunal “cópia de todos os movimentos” da conta em questão, “desde o seu início”, se autorizado pelo respectivo titular, o que, até à data, não sucedeu, ou em estrito cumprimento de ordem emanada da autoridade judicial, para tanto competente... Em consequência, aguarda que V. Exa. determine o que, sobre o tema, houver por conveniente”.

E, a fls. 517, relembra, que a “divergência” presentemente em aberto deve ser dirimida por jurisdição hierarquicamente superior, neste caso, pelo Tribunal da Relação desta cidade, o que requer que V. Exa. determine e providencie. – art. 135º, 3 do C.P.Penal.

Por despacho de fls. 520 foi considerado que o normativo citado pelo Réu não era aplicável em processo civil, tendo o Réu sido notificado para prestar a informação requerida “dado que não há lugar ao aludido sigilo bancário”.

A fls. 529, a Autora, afirmando que o despacho de fls. 520 tem subjacente um manifesto lapso, porquanto aquilo que pretende é obter os movimentos relativos à conta do cliente do Banco réu, F……….. (aludido nos nºs 21 e 22 da base instrutória), conforme foi requerido no item III do requerimento de provas da Autora, pediu que o Réu fosse notificado para juntar aos autos os extractos da conta-corrente aludidos no item III do requerimento de provas da Autora.

A fls. 537, o Réu reiterou a sua posição quanto à questão do sigilo bancário.
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Por despacho de fls. 540 a 541 foram os autos remetidos a este Tribunal, para decidir sobre a justificação ou não da quebra do sigilo bancário – art. 153º, nº3, do C.P.Penal, ex-vi do art. 519º, nº4, do Código de Processo Civil – sendo entendimento do Ex.mo Juiz que “a escusa invocada pela Ré deverá ser considerada ilegítima, devendo prestar as informações solicitadas”.
***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

Fundamentação:

A questão consiste em saber se, no caso, o Banco/réu se pode prevalecer do sigilo bancário para recusar prestar as informações requeridas pela Autora e que o Tribunal acolheu.

Nos termos do art. 78º do Decreto Lei n°298/92 de 31.12, os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviço a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, estando, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.

O art. 79º, n°2, do mesmo diploma legal, estabelece que os elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados, no que ao caso presente respeita, nos termos da lei penal e de processo penal, ou quando exista outra disposição legal que expressamente limite o seu dever de segredo.

O dever de segredo profissional não é, porém, um dever absoluto, isto é, não prevalece sempre sobre qualquer outro dever que com ele entre em conflito.

Sofre, com efeito, as excepções previstas no art. 79º do mesmo Dec-Lei nº 298/92, onde se estabelece, além do mais, que os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo podem ser revelados, nos termos previstos na lei penal e de processo penal – cfr. alínea d) do nº 2.

No art. 84º do mesmo diploma legal, prescreve-se que “a violação do dever de segredo é punível nos termos do Código Penal” e, efectivamente, o Código Penal vigente – revisto pelo Dec-Lei nº 48/95 de 15 de Março – prevê e pune como crimes, quer a violação de segredo profissional, quer o seu aproveitamento indevido – cfr. arts. 195º e 196º.

O artigo 519º do Código de Processo Civil estabelece:
(Dever de cooperação para a descoberta da verdade)

“1 – Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.
2 – Aqueles que recusem a colaboração devida serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal apreciara livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no nº2 do artigo 344º do Código Civil.
3 – A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no nº4.
4 – Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, e aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.

O normativo consagra o dever de cooperação a que se acham obrigados não só as partes no processo, como terceiros, com vista à obtenção de uma justiça pronta.

Essa cooperação resulta dos arts. 266º, 519º, 155º e 266º-A do Código de Processo Civil.

A Lei, tendo em conta a natureza de certos interesses, admite a existência de segredo e sigilo, não só profissional, como relativamente ao exercício de certas actividades, em ordem a salvaguardar a intimidade pessoal e a reserva da vida privada, valores inerentes à honorabilidade e privacidade dos cidadãos, e que estão constitucionalmente assegurados – art. 34º,nº1, da Constituição da República.

O sigilo bancário não é direito absoluto, já que se admite a sua quebra, mas desde que justificada por fundadas razões e mediante autorização judicial.

Dispõe o art. 335º do Código Civil:

Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.

2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.

Havendo colisão de direitos, deve prevalecer o direito que, socialmente, se situe num patamar de interesse (público) superior.

Como se escreve no Ac. do S.T.J., de 14.1.1997, “o direito ao sigilo bancário, em si próprio inquestionável, à luz do moderno âmbito do direito de personalidade, não pode considerar-se absoluto de tal forma que fizesse esquecer outros direitos fundamentais, como o direito ao acesso à justiça (a menos que, contra “o civilizado” artigo 1º do Código de Processo Civil, se privilegiasse a “justiça privada”) ou, por exemplo, o dever de cooperação, tradicional no processo civil português (veja-se, designadamente, o artigo 519º do Código de Processo Civil, quer antes, quer depois da recente reforma […] o pensamento legislativo seria no sentido de paralisar a acção dos tribunais na realização de direitos subjectivos, quando é certo que, ao invés, a ordem jurídica existe, justamente, como um conjunto de meios que deve conduzir à efectiva realização dos fins da actividade judicial previstos basicamente pelo art.205º da Constituição”- BMJ 463, 472.

Do “Halsbury’s Laws of England” enciclopédia jurídica britânica, extraí-se o seguinte:

“O contrato firmado entre o banqueiro e seu cliente contém uma cláusula implícita que obriga o banqueiro a não revelar a terceiros, sem consentimento expresso ou tácito do cliente, nem a situação da conta do cliente nem as suas transacções com o banco, nem qualquer informação que chegue ao conhecimento do banqueiro em virtude do relacionamento com o cliente”.

Na Inglaterra não existe disposição legal expressa a respeito do sigilo, mas a teoria é amplamente aceite pelo costume.

Nelson Hungria que incluiu o banqueiro no rol das pessoas obrigadas ao sigilo profissional, ensina:

“Na actualidade, é geralmente reconhecido que entre os confidentes necessários, legalmente obrigados à discrição, figuram os banqueiros.
Notadamente nas operações de crédito, o sigilo bancário é uma condição imprescindível, não só para a segurança do interesse dos clientes dos bancos como o próprio êxito da actividade bancária.
Raros seriam, por certo, os clientes de bancos, se não contassem com a reserva dos banqueiros e seus prepostos...”.

O segredo bancário terá de cessar perante “justa causa”, visando a salvaguarda de interesses manifestamente superiores.

No caso em apreço, colidem interesses diversos, ambos dignos de protecção – o dos Tribunais em proferirem decisões conformes à Verdade, agindo sob o impulso de pessoas jurídicas em sentido lato, e o dos Bancos, em preservarem o sigilo bancário dos seus clientes.

Prepondera a nosso ver aquele, mesmo que se trate de um pleito civil, sendo que o caso dos autos indicia contornos de mega-fraude que a Justiça tem o dever de averiguar sem peias que limitem a sua actividade soberana, não sendo de sobrepor a esse interesse o do Banco, em não revelar os movimentos de conta bancária de um seu cliente.

Decisão:

Nestes termos, acorda-se, ao abrigo das disposições combinadas dos arts. 519º, nº4, do Código de Processo Civil e 135º, nº3, do C.P.Penal, em dispensar o “Banco C…….., S.A.” do cumprimento do dever de segredo profissional, determinando que esta instituição forneça os elementos que, oportunamente, lhe foram solicitados pelo Tribunal onde pende a causa.

Custas pelo Banco C………., S.A.

Porto, 13 de Novembro de 2006
António José Pinto da Fonseca Ramos
José Augusto Fernandes do Vale
Rui de Sousa Pinto Ferreira