Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0240099
Nº Convencional: JTRP00035221
Relator: TORRES VOUGA
Descritores: NEGLIGÊNCIA
PRESUNÇÃO DE CULPA
Nº do Documento: RP200403240240099
Data do Acordão: 03/24/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: Provando-se que o arguido invadiu a metade da faixa de rodagem contrária à sua mão de trânsito e não se apurando as razões desse facto, deve entender-se que agiu com negligência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, os juizes da 4ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

No processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, que correu termos sob o nº ..... no ... Juízo do Tribunal da Comarca de ...., A ............. foi submetido a julgamento, mediante acusação do MINISTÉRIO PÚBLICO, tendo sido, a final, condenado, como autor material de um crime consumado de homicídio por negligência, agravado pelo resultado, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal, na pena de quinze meses de prisão (declarada, todavia, suspensa na sua execução pelo período de três anos), bem como na proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de doze meses (ao abrigo do disposto no art. 69º, nº 1, al. a), do Código Penal), sendo, porém, absolvido do crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo artigo 148º, nºs 1 e 3, do Código Penal (que lhe era igualmente imputado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO).

Inconformado com tal condenação, recorre da respectiva sentença, formulando, a rematar a sua motivação, as seguintes conclusões:

“1 - Da transcrição dos depoimentos registados magnetofonicamente supra feitos na motivação e ainda dos que estão registados nas restantes cassetes e a que a Mm.a Julgadora não deu qualquer relevo ou importância por os considerar contraditórios e não sérios, resulta ter havido uma apreciação da prova incorrecta e não conforme aos critérios estabelecidos no artigo 127º do C.P.P.;

2 - Para além disso, a prova que foi tida em consideração não se revela suficiente para suportar a decisão;

3 - Os depoimentos das testemunhas que não foram tidos em consideração pelo Tribunal “a quo” merecem tanta consideração e aceitação como aqueles que resultam das transcrições acima feitas, que aliás, são vagos, inconclusivos, confusos e hesitantes, em termos tais que não conseguem explicar o acidente;

4 - As três primeiras testemunhas de acusação têm laços de parentesco com a vítima, tal como o têm as pessoas que acompanhavam o arguido e depuseram na audiência de julgamento;

5 - No entanto, àquelas foi dado crédito e relevo e a estas atribuiu-se contradição e não seriedade;

6 - Todavia, salvo o depoimento confuso e inconsequente do B ........, ninguém mais, para além das acompanhantes do recorrente, viu o embate;

7 - Face às sérias dúvidas que tais depoimentos suscitam quanto ao modo como ocorreu o acidente, impunha-se a absolvição do arguido, em conformidade com o princípio in dubio pro reo;

8 - De qualquer modo, e em sede de matéria de direito, não se pode qualificar a conduta do arguido como integrando o elemento constitutivo do tipo de culpa negligente, tal como ele é traduzido pelo artigo 15º do Código Penal, pois tal conduta, tal como resulta da matéria de facto provada, não exprime uma personalidade leviana ou descuidada que não seria de esperar dele e que por isso não respondeu às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido;

9 - Com efeito, a matéria de facto em causa não resulta clara e indubitavelmente que o arguido tenha agido com manifesta falta de atenção, de cuidado e destreza e revele negligência e inconsideração;

10 - É que, não se mostrando provado que o ciclomotor onde circulava a vítima tivesse as luzes acesas e não tendo sido possível apurar as circunstâncias que levaram o veículo conduzido pelo arguido a invadir a hemi-faixa de rodagem contrária, é legítimo questionar se o acidente se não poderia imputar quer ao próprio condutor do ciclomotor, quer a terceiro, quer a caso fortuito estranho ao funcionamento do veículo (encandeamento, pneu rebentado, etc.);

11 - À luz dos parâmetros estabelecidos nos artigos 69º, n.º 1, al. a), 70º e 71º do Código Penal e em face do apurado, deveria optar-se por uma pena pecuniária em detrimento da de prisão e nunca superior a 180 dias e respectiva taxa diária, sem qualquer pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pois aquela satisfaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e satisfaria as exigências de reprovação e prevenção do crime;

12 - Violou, portanto, a douta decisão recorrida os artigos 15º, 69º, n.º 1, al. a), 70º, 71º e 137º, n.º 1, do Código Penal, 3º, 13º e 24º do Código da Estrada e 127º do Código de Processo Penal.

Termos em que deve o recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a douta sentença recorrida, substituindo-se por outra que absolva o arguido do crime de que vem acusado ou, se assim não se entender, se condene o mesmo na pena de multa não superior a 180 dias e respectiva taxa diária, com a consequente revogação da condenação na proibição de conduzir veículos motorizados, tudo com as legais consequências”.

O MINISTÉRIO PÚBLICO contra-alegou, ainda na 1ª instância, pugnando pela improcedência do recurso e concluindo do seguinte modo a sua contra-motivação:

“1 - A douta sentença recorrida não violou qualquer disposição legal, fazendo uma correcta apreciação da prova resultante da audiência de julgamento.

2 - A tese propugnada pelo arguido ora recorrente não colheu nem pode colher, na medida em que, quer as declarações do arguido, quer as da sua esposa, cunhada ou irmã, bem assim como das testemunhas C ...... e D ....... se descredibilizam por si próprias, dada a forma contraditória e pouco credível como descreveram os factos e as incongruências que dela resultam.

3 - Por outro lado, a própria versão em si não é compatível com os dados e vestígios objectivos existentes no local do embate e recolhidos nos autos e, muito menos, com as regras da experiência comum.

4 - Acresce que, a versão descrita nos factos provados da sentença em apreço, tem acolhimento na prova produzida em audiência, não existindo contradições essenciais entre os depoimentos das testemunhas que fundamentaram a decisão de facto proferida, nem são contrários aos vestígios objectivos recolhidos e às regras da experiência.

5 - O arguido conduzia em infracção aos normativos que regem o trânsito rodoviário, designadamente os arts. 3º, 13º e 24º do Código da Estrada em vigor à data dos factos, de forma desatenta e descuidada e, por tal facto, podia prever a possibilidade de provocar resultados danosos em terceiros.

6 - Tendo actuado, assim, de forma descuidada e negligente.

7 - In casu, exige-se a aplicação ao arguido de uma pena de prisão, dadas as fortíssimas exigências de prevenção geral que importa acautelar e a exigência da comunidade de uma punição mais severa para este tipo de crimes.

8 - De resto, no caso, também assinalamos exigências de prevenção especial acima da média, dada a postura de alheamento e desinteresse demonstrada pelo arguido na audiência, manifestando carências de re-educação para o direito.

9 - Por outro lado, as regras para a determinação da pena acessória são as mesmas da pena principal, embora existam factores que devem ser mais valorados numa que noutra.

10 - Esta pena acessória tem como pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução e como pressuposto material a circunstância de, ponderados todos os aspectos relativos ao facto e à personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável, pelo que essa circunstância vai elevar o limite da culpa pelo facto.

11 - Atenta a gravidade dos factos praticados e as suas gravíssimas consequências, o elevado grau de ilicitude e da culpa do agente pelo facto e as exigências de prevenção geral e especial, a medida da sanção acessória afigura-se nos mui doutamente determinada.

12 - Não foi desrespeitado por qualquer forma o estatuído nos artºs 15º, 69º, nº 1, al. a) 70º, 71º e 137º, nº 1 todos do Código Penal e bem assim os artºs 3º, 13º e 24º do Código da Estrada e 127º do Código de Processo Penal.

Também o Assistente E ......... contra-alegou, ainda na 1ª instância, pugnando igualmente pela improcedência do recurso e concluindo assim a sua contra-motivação:

“1 – Pela análise de toda a prova produzida em audiência de julgamento e atendendo às normas da experiência de condução de veículos, não existem dúvidas de que a dinâmica do acidente se processou pela forma descrita na sentença;

2 – Desta forma, a pena aplicada ao arguido está adequada ao seu grau de culpabilidade, cumprindo-se assim o fim de prevenção geral e especial.”

Nesta instância, o MINISTÉRIO PÚBLICO emitiu parecer no sentido da improcedência do presente recurso, aderindo, in totum, à linha contra-argumentativa desenvolvida na contra-motivação apresentada na 1ª instância pelo mesmo sujeito processual.

Colhidos os vistos e efectuada a audiência prevista nos arts. 421º, nºs 1 e 2, e 429º do CPP, cumpre apreciar e decidir.

FACTOS CONSIDERADOS PROVADOS NA SENTENÇA RECORRIDA

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

1) No dia 28 de Março de 1997, cerca das 20.00 horas, no lugar da ...., ....., ......, o arguido conduzia o seu veículo ligeiro de passageiros, marca “Toyota Starlet”, de matricula ..-..-AT, na E.N. nº 207, no sentido de marcha Lousada/Paços de Ferreira.

2) Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, circulava o ciclomotor de matrícula ..-LSD-...-..., conduzido por B........., levando como passageira F......., sua mãe, no sentido de marcha Paços de Ferreira/Lousada.

3) À frente do ...-LSD, a cerca de 20 metros, circulava um outro ciclomotor, conduzido por E......... , marido e pai de B ........... e F ............, respectivamente, com as luzes ligadas.

4) O arguido circulava a uma velocidade superior a 50 (cinquenta) Kms/hora.

5) O ..-LSD-..-... circulava a uma velocidade de 40/50 Km/hora, na sua mão de trânsito, e sensivelmente a meio da sua hemi-faixa de rodagem.

6) Circulando à velocidade acima referida, e por circunstâncias que não foi possível apurar, o veículo conduzido pelo arguido invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária àquela em que circulava, vindo aí a colidir com o ..-LSD-..-...

7) O embate ocorreu na hemi-faixa esquerda da estrada, atento o sentido de marcha Lousada/Paços de Ferreira, a cerca de 2,80 metros da berma esquerda atento esse sentido.

8) A colisão deu-se entre a parte frontal e lateral esquerda do veículo conduzido pelo arguido, e a parte lateral esquerda do ciclomotor - na zona do motor - conduzido pelo ofendido B ........... .

9) Após a colisão, o veículo conduzido pelo arguido foi imobilizado pelo mesmo junto à berma direita da faixa de rodagem, atento o sentido Lousada/Paços de Ferreira, a cerca de oitenta e dois metros do local do embate.

10) Com o embate, o pneu da frente lado esquerdo do veículo conduzido pelo arguido “rebentou”.

11) No pavimento ficaram marcas - pequeno sulco - que se iniciavam junto ao local do embate e terminavam no local onde o veículo do arguido foi imobilizado.

12) O local onde ocorreu o sinistro configura-se em recta com cerca de mil metros de comprimento, e de boa visibilidade.

13) A estrada tem aí cerca de seis metros e vinte centímetros de largura, desenvolvendo-se o trânsito nos dois sentidos de marcha.

14) Atento o sentido Paços de Ferreira/Lousada, existem pelo menos dois entroncamentos, situando-se o primeiro deles a cerca de 400 metros do local onde ocorreu o embate.

15) Na ocasião do sinistro era noite e o tempo estava bom.

16) O arguido circulava com as luzes do seu veículo ligadas.

17) Na ocasião do sinistro, para além do ..-LSD e do ciclomotor conduzido por E ........, não circulavam quaisquer outros veículos automóveis na E.N. nº 207, no sentido de marcha Paços de Ferreira/Lousada.

18) Em consequência da colisão, a F ............... sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia de fls. 8 e 9, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido, as quais lhe determinaram directa e necessariamente a morte.

19) Em consequência da colisão, o ofendido B ............. sofreu as lesões descritas nas fichas clínicas de fls. 26 a 47, 49 a 54, 56 a 71 e 73, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido, as quais lhe determinaram, directa e necessariamente, um período de 334 dias de doença e de impossibilidade para o trabalho, bem como lhe determinaram a amputação do membro inferior esquerdo a partir de 2/3 da coxa esquerda, encontrando-se actualmente com prótese, para além de lhe terem causado ainda uma diminuição da extensão completa do antebraço, determinando-lhe permanente desfiguração.

20) O arguido não se apercebeu da circulação do ..-LSD pela via, a circular em sentido contrário.

21) O arguido é carpinteiro, auferindo o salário mínimo nacional.

22) A esposa é doméstica.

23) Tem dois filhos, um com sete anos de idade e outro com dez meses.

24) O arguido e seu agregado familiar são arrendatários agrícolas, vivendo na casa existente no arrendado.

25) O arguido tem o 4º ano de escolaridade.

26) Não tem antecedentes criminais.

27) Não há notícia de infracções estradais praticadas pelo arguido.

FACTOS CONSIDERADOS NÃO PROVADOS

A sentença recorrida considerou não provados quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa e, nomeadamente, que:

- No lugar de ...., ....., Lousada, o arguido tenha resolvido ultrapassar alguns veículos que seguiam à sua frente, atento o sentido de marcha Lousada/Paços de Ferreira, e que, para efectuar tal manobra, tenha invadido a hemi-faixa de rodagem contrária àquela em que circulava;

- O arguido, quando invadiu a hemi-faixa contrária àquela em que circulava, o tenha feito a velocidade não inferior a 90 Km/hora;

- A colisão tenha ocorrido quando o arguido se aprestava para terminar uma manobra de ultrapassagem;

- O ..-LSD circulasse com as luzes acesas;

MOTIVAÇÃO DE FACTO

O Tribunal a quo fundamentou a sua convicção, quanto aos factos que considerou provados:

- No teor dos depoimentos conjugados das testemunhas B ......., condutor do 1-LSD; G ........, passageira do ciclomotor que circulava na E.N. nº 207; H ............., que chegou ao local imediatamente após o sinistro; I .................., GNR que elaborou a participação de acidente de viação junta aos autos, tendo confirmado as medições que constam da mesma; J .......... e L ............., que circulavam na E.N. nº 207 e chegaram ao local logo após o sinistro.

- Nos documentos de fls. 8, 9, 26 a 47, 49 a 54, 56 a 71 e 73.

- No constatado pelo Tribunal em inspecção ao local.

Quanto à situação pessoal do arguido, interessaram (para a formação da convicção do tribunal recorrido) as suas próprias declarações, bem como os depoimentos das testemunhas M .........., N ......... e O ........., bem como o CRC junto aos autos.

A falta de prova dos factos que o tribunal a quo considerou não provados ficou a dever-se – segundo a sentença recorrida - à insuficiência da prova produzida em julgamento.

O Tribunal recorrido referiu expressamente, na sua motivação, não ter tido em consideração as declarações do arguido, bem como os depoimentos das testemunhas P ..........., Q ..........., R ........, S ............, C .........., D .........., “porquanto entraram em contradições manifestas nas suas declarações e depoimentos, o que levou o tribunal a não os ter por sérios” (sic).

O MÉRITO DO RECURSO

Perante os factos considerados provados pela 1ª instância, importa agora curar do mérito do presente recurso, tendo-se em atenção que é pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que se determina o âmbito de intervenção deste tribunal ad quem, sem prejuízo para a apreciação de questões de conhecimento oficioso e de que ainda se possa conhecer [«São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal ad quem tem de apreciar» (GERMANO MARQUES DA SILVA, in “Recursos em Processo Penal”, 5ª. Ed., 2002, pp. 320-321).] [«Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões» (SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES in “Recursos em Processo Penal”, 5ª. ed., 2002, p. 93, nota 108).] : cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 17/9/97 (in Col. Jur., Acs. do STJ, 1997, tomo 3, p. 173); o Ac. do STJ de 3.2.99 (in BMJ nº 484, pág. 271); o Ac. do STJ de 25.6.98 (in BMJ nº 478, p. 242); o Ac. do STJ de 13.5.98 (in BMJ nº 477, pág. 263); SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES in “Recursos em Processo Penal”, 5ª. ed., 2002, pp. 74 e 93; GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 2ª ed., 2000, pp. 320 e 321; e ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pp. 362 e 363.

As questões suscitadas pelo Recorrente (nas conclusões da sua motivação) são, essencialmente, as seguintes:

1) se a sentença recorrida apreciou a prova produzida incorrectamente e em desconformidade com os critérios estabelecidos no artigo 127º do Cód. Proc. Penal, quer porque desconsiderou depoimentos de testemunhas que merecem tanta consideração e aceitação como aqueles a que deu crédito, quer porque, como os depoimentos por ela considerados relevantes são, afinal, vagos, inconclusivos, confusos e hesitantes, em termos tais que não conseguem explicar o acidente, o arguido deveria ter sido absolvido, em conformidade com o princípio in dubio pro reo, perante as sérias dúvidas que tais depoimentos suscitam quanto ao modo como ocorreu o acidente;

2) se, de qualquer modo, perante a matéria de facto considerada provada na sentença recorrida, não se poderia qualificar a conduta do arguido como integrando o elemento constitutivo do tipo de culpa negligente, tal como ele é traduzido pelo artigo 15º do Código Penal, visto que, não se tendo provado que o ciclomotor onde circulava a vítima tivesse as luzes acesas e não tendo sido possível apurar as circunstâncias que levaram o veículo conduzido pelo arguido a invadir a hemi-faixa de rodagem contrária, sempre se poderia questionar se o acidente não seria, afinal, imputável quer ao próprio condutor do ciclomotor que transportava a vítima, quer a terceiro, quer a caso fortuito estranho ao funcionamento do veículo (encandeamento, pneu rebentado, etc.);

3) se, mesmo em caso de condenação do arguido, se deveria optar, à luz dos parâmetros estabelecidos nos artigos 70º e 71º do Código Penal, por uma pena pecuniária (em detrimento da de prisão) e nunca superior a 180 dias à taxa diária adequada, sem imposição de qualquer pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pois aquela pena pecuniária satisfaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e satisfaria as exigências de reprovação e prevenção do crime.

1) Da Pretensa Violação do Princípio da Livre Apreciação Da Prova.

Como flui do disposto no artº 428º, nº1, do CPP, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, o que significa que, em regra, e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.

Assim sendo, e de harmonia com o preceituado no nº 1 do artº 410º do mesmo diploma, os recursos para eles interpostos podem ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida e também, de acordo com os nºs 2 e 3 do mesmo preceito, os vícios que em tais números se arrolam (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, erro notório na apreciação da prova e nulidade que não deva considerar-se sanada).

Dito em síntese, isto quer dizer que os Tribunais da Relação são hoje os tribunais por excelência e, em princípio, os únicos com poderes de cognição irrestritos em matéria de recursos, apenas com a ressalva de que, no âmbito da matéria de facto, o seu poder cognoscitivo pressupõe que a prova produzida em audiência de 1ª instância tenha sido gravada e constem dos autos as transcrições dos respectivos suportes técnicos (cfr. artºs 412º, nºs 3 e 4 do CPP).

Questão diferente desta é, porém, a de saber como devem os Tribunais da Relação exercer estas competências cognoscitivas em matéria de recursos. Ou dito de forma mais concreta, saber qual a latitude dos seus poderes no âmbito do conhecimento de matéria de facto.

Embora as Relações gozem, em princípio, de um amplo poder de cognição, este fica desde logo limitado pelas conclusões da motivação do recorrente, sabido como é que são estas que definem e balizam o objecto do recurso (cfr. o artº 412º, nº 1, do CPP). Ou seja: o recorrente pode condicionar o âmbito da reapreciação que pede, restringindo-o, por exemplo, a uma determinada parte da decisão, desde que com observância das regras limitativas inscritas no artº 403º daquele Código.

Isto sem prejuízo de o tribunal de recurso poder e dever conhecer oficiosamente de qualquer dos vícios indicados nos nºs 2 e 3 do artº 410º do CPP - conforme se decidiu no Acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/1995 (publicado in Diário da República, I Série-A, de 28 de Dezembro do mesmo ano e também in BMJ nº 450, p. 72).

Outra questão bem diferente, mas conexa com esta, reside em saber se as Relações podem, por sua própria iniciativa ou sob impulso do recorrente, apoiando-se na extensibilidade do princípio da livre apreciação da prova aos tribunais de recurso, alterar a matéria de facto dada como provada pelos tribunais de 1ª instância.

Ora, nesta sede, «não se concebe como seja possível, sem outros instrumentos que não sejam as transcrições das gravações da prova produzida em audiência, formar uma convicção diferente e mais alicerçada do que aquela que é fornecida pela imediação de um julgamento oral, onde, para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam»[ Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 9/7/2003, proferido no Proc. nº 02P3100 e relatado pelo Conselheiro LEAL HENRIQUES, cujo texto integral pode ser consultado no site http://www.dgsi.pt.].

Efectivamente - tal como se salientou no Ac. da Relação de Coimbra de 3 de Outubro de 2000 [in Col. de Jurispª. 2000, tomo 4º, pág. 28] -, a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas que está deferido à 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador, entram necessariamente elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, por mais fiel que ela seja. Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também elementos intraduzíveis e subtis, tais como mímica e todo o aspecto exterior do depoente e mesmo as próprias reacções quase imperceptíveis do auditório, que vão agitando o espírito de quem julga.

Transcrevendo a lição de CASTRO MENDES, este aresto põe ainda em evidência que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador».

O que é necessário e imprescindível - mais se adianta nesse acórdão (desta feita à luz da doutrina de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA) - é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. Donde - remata-se no mesmo aresto - o que o tribunal de segunda jurisdição vai à procura, não é de uma nova convicção, mas de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si [Cfr., também no sentido de que «a garantia do duplo grau de jurisdição relativamente a matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre determinados pontos da matéria de facto», o Ac. da Rel. de Lisboa de 22/11/2002 proferido no Proc. nº 0020409 e relatado pela Desembargadora MARGARIDA VIEIRA DE ALMEIDA (cujo sumário está disponível no site http://www.dgsi.pt.).].

Daqui decorre que o conhecimento de factum do tribunal de 2ª instância é necessariamente limitado. E isto, à partida, impõe que a matéria de facto só possa ser alterada quando o registo da prova o permita com toda a segurança [Cfr., também no sentido de que «a apreciação das provas gravadas pelo Tribunal da Relação só pode abalar a convicção acolhida pelo tribunal de 1ª instância caso se verifique que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas, dado que a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação», o Ac. da Rel. do Porto de 5/6/2002, proferido no Proc. nº 0210320 e relatado pelo Desembargador COSTA MORTÁGUA (cujo texto integral está disponível no site http://www.dgsi.pt.)].

Por outro lado – como bem se observou no Acórdão desta Relação de 10/10/2001[Proferido no Proc. nº 0140385 e relatado pelo Desembargador MANSO RAÍNHO, cujo texto integral está disponível no site http://www.dgsi.pt.], muito embora livre apreciação de provas (princípio que vigora plenamente em processo penal, salvaguardadas as excepções legais) não se possa confundir com apreciação arbitrária de provas - do que se trata é antes de uma apreciação que, liberta de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos, dessa forma determinando uma convicção racional, objectivável e motivável -, não pode nem deve olvidar-se que «dificilmente o julgador dos factos lidará com a prova cem por cento segura ou certa». «Inevitavelmente terá que conviver com a ausência de certeza absoluta e com a dúvida» [Cit. Ac. da Rel. do Porto de 10/10/2001.]. «Mas nem por isso se pode demitir de, com recurso à experiência comum e à lógica das coisas, porfiar por uma certeza relativa sobre os factos (tenha-se em atenção que "certeza relativa" não equivale a "certeza dominada por incertezas"; significa antes "convicção honesta e responsável da realidade ou irrealidade do facto")» [Ibidem.]. «Se conseguir superar o umbral da dúvida razoável, de modo a sentir a necessária segurança sobre a realidade ou irrealidade de um facto, então tem que o assumir» [Ibidem.].

Efectivamente, «as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (artº 341º do Código Civil), mas esta demonstração da realidade não visa a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente)» [Ibidem.]. «Os factos que interessam ao julgamento da causa são, de ordinário, ocorrências concretas do mundo exterior ou situações do foro psíquico que pertencem ao passado e não podem ser reconstituídas nos seus atributos essenciais» [Ibidem.]. «A demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, sob pena de o Direito falhar clamorosamente na sua função social de instrumento de paz social e de realização de justiça» [Ibidem]. «A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador (judici fit probatio) um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto [V. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pág. 434]» [Ibidem].

De modo que «dificilmente o julgador poderá ter a certeza absoluta de que os factos aconteceram tal como eles são por si interiorizados, como são dados como provados» [Ibidem.]. «Mas isto não obsta a que o tribunal se convença da realidade dos mesmos, posto que consiga atingir o umbral da certeza relativa» [Ibidem.]. «A certeza relativa é afinal um estado psicológico (a tal convicção de que se costuma falar) que, conquanto necessariamente se tenha de basear em razões objectivas e possa ser fundamentável, não demanda que estas sejam inequivocamente conclusivas» [Ibidem.].

«Daqui decorre que não é decisivo para se concluir pela realidade da acusação movida a um qualquer arguido, que haja provas directas e cabais do seu envolvimento nos factos, maxime que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticar os factos, ou que o arguido os assuma expressamente» [Ibidem.]. «Condição necessária, mas também suficiente é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa (a tal convicção honesta e responsável de que se falou atrás), dentro do que é lógico e normal, de que as coisas sucederam como a acusação as define» [Ibidem.]

Isto posto: Tanto quanto a matéria de facto extractada na transcrição das declarações oralmente produzidas em audiência de julgamento (com as limitações supra expostas, portanto), conjugada com a prova documental constante dos autos, nos permite (re)apreciar a prova que esteve presente ao tribunal a quo, é nosso convencimento que nada, mas absolutamente nada, conduz à ideia de que o tribunal a quo fez uma incorrecta aplicação do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127º do CPP, isto é, que apreciou incorrectamente as provas produzidas.

Efectivamente – como já vimos - , a convicção do tribunal a quo, no tocante aos factos considerados provados na sentença recorrida, alicerçou-se, nomeadamente:

a) No teor dos depoimentos conjugados das testemunhas B ......., condutor do 1-LSD; G .........., passageira do ciclomotor que circulava na E.N. nº 207; H ..............., que chegou ao local imediatamente após o sinistro; I ............., militar da GNR que elaborou a participação de acidente de viação junta aos autos, tendo confirmado as medições que constam da mesma; J ............. e L ............., que circulavam na E.N. nº 207 e chegaram ao local logo após o sinistro.

b) Nos documentos de fls. 8-9, 26 a 47, 49 a 54, 56 a 71 e 73.

c) No constatado pelo Tribunal em inspecção ao local.

Perante este material probatório, não se evidencia que, no caso em análise, haja o tribunal a quo violado qualquer regra jurídica na apreciação da prova. Na verdade, a convicção expressa pelo tribunal recorrido não deixa de ter suporte razoável naquilo que de probatório contêm os autos, sobretudo no teor das transcrições dos depoimentos prestados pelas referidas testemunhas.

É que o Tribunal a quo não se limitou a indicar, explícita e exaustivamente, os meios de prova (isto é, os documentos e os depoimentos testemunhais) fundamentadores da convicção do julgador, antes procedeu ao exame crítico das provas que serviram para formar essa convicção, mencionando expressamente a razão de ciência de cada uma das testemunhas em cujos depoimentos se apoiou a convicção que o julgador se formou sobre os factos que considerou provados e não provados.

É certo que, embora também o devesse ter feito (por forma a dar escrupuloso cumprimento às exigências que, em sede de fundamentação de facto, são hoje colocadas pelo art. 374º-2 do CPP, na redacção introduzida pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto), a sentença recorrida não explicita cristalinamente todos os critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova produzidos em audiência.

Ainda assim, como ela não deixa de indicar a razão de ciência das testemunhas a cujos depoimentos concedeu crédito e o motivo pelo qual não concedeu crédito às declarações do arguido e aos depoimentos produzidos pelas outras testemunhas ouvidas em audiência de julgamento (“porquanto entraram em contradições manifestas nas suas declarações e depoimentos, o que levou o tribunal a não os ter por sérios” - sic), não pode assacar-se à sentença recorrida o vício de nulidade previsto na al. a) do nº 1 do art. 379º do C.P.P.

Acresce que – como as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento foram registados magnetofonicamente e se acham transcritos, esta Relação está em condições de comprovar as contradições em que, efectivamente, incorreram o arguido e as testemunhas por ele arroladas. Ademais, tais declarações e depoimentos, além de contraditórios entre si, são contraditados e desmentidos por documentos que o próprio arguido se empenhou em juntar aos autos (constituídos por fotografias do veículo por ele mesmo conduzido e interveniente no acidente), os quais, por si sós, põem a nu a total inverosimilhança da versão factual do acidente sustentada pelo arguido e pelas suas testemunhas.

Na verdade, o arguido e as testemunhas por ele arroladas apresentaram, na audiência de julgamento, uma versão dos factos segundo a qual o veículo conduzido por ele próprio teria sido embatido na sua hemi-faixa de rodagem, quando circulava em obediência a todos os comandos emanados do direito estradal, por um terceiro veículo não identificado que o arguido e as testemunhas por ele arroladas só sabem dizer ser de mercadorias, “caixa aberta” e do tipo das “Mitsubishi”, o qual também teria embatido no ciclomotor em que circulavam as vítimas.

Porém, a mera observação visual das fotografias do veículo tripulado pelo arguido, tiradas após o acidente, evidencia que, se o acidente tivesse ocorrido pela forma descrita pelo arguido e pelas suas testemunhas, toda a zona do “capot” do AT teria sido arrancada pelos ferros que ladeiam a caixa de madeira das viaturas com aquelas caracteristicas (veículos de mercadorias de caixa aberta) ou pelos ganchos destinados a suportar os faróis traseiros.

Ademais, são bem visíveis em tais fotografias as marcas deixadas no pneu da viatura conduzida pelo arguido, perfeitamente compatíveis com o embate no patim do ciclomotor onde viajavam as vítimas e, posteriormente, no motor do mesmo ciclomotor, mas muito dificilmente compagináveis com o embate num veículo de muito maior porte, nomeadamente no que toca à altura da respectiva estrutura.

Acresce ainda que, das várias pessoas que chegaram ao local poucos segundos após o embate – como, por exemplo, a testemunha da acusação Isidro Moreira, que (segundo declarou) se encontrava a 8/10 metros do local (facto cuja veracidade o tribunal a quo pôde comprovar, aquando da inspecção ao local oportunamente realizada) e a testemunha da acusação J .......... -, ninguém visualizou qualquer outro veículo a circular na via para além do AT conduzido pelo arguido e do ciclomotor onde seguiam as vítimas, que tais testemunhas avistaram já caído no solo, sendo certo que a via se desenha em linha recta numa extensão superior a 1 km.

Finalmente, as referidas testemunhas Isidro Moreira e J .......... relataram, no decurso da audiência de julgamento, que, desde junto ao local onde se encontravam os vestígios do embate, a meio da hemi-faixa de rodagem destinada ao ciclomotor tripulado pelo ofendido B ........., até ao local onde o arguido imobilizou o seu veículo, existia uma marca na via, consistente num pequeno sulco, provocada pela jante do pneu rebentado do veículo do arguido – facto que foi igualmente confirmado pela testemunha Jorge da Silva. Ora, se não tivesse sido o veículo do arguido a embater no ciclomotor do ofendido B ......, por que razão se encontravam, na hemi-faixa de rodagem a este destinada e junto ao ciclomotor acidentado, vidros da óptica esquerda do veículo do arguido – como foi asseverado, nos respectivos depoimentos em audiência de julgamento, pelas testemunhas J .......... (que se dirigiu ao veículo do arguido com pedaços de tais vidros e confirmou pertencerem-lhe) e Jorge da Silva - ?

Quer a referida marca existente na via, provocada pela jante do pneu rebentado do veículo conduzido pelo arguido, quer os mencionados vidros da óptica esquerda do mesmo veículo, encontrados junto do ciclomotor onde seguiam as vítimas, inculcam, sem margem para qualquer dúvida, a conclusão de que foi o veiculo conduzido pelo arguido que embateu no ciclomotor conduzido pelo ofendido B ......., com a parte lateral esquerda, na zona da óptica e do pneu esquerdo, ao contrário do que pretenderam fazer crer o arguido e as testemunhas por ele arroladas.

Donde que, enquanto a versão factual constante dos factos considerados provados pela sentença recorrida se apresenta como coerente e altamente verosímil, já a contra-versão sustentada pelo arguido e corroborada pelas suas testemunhas (duas das quais, aliás - C .......... e D ..........., ambos residentes no Porto - conseguiram passar incógnitas no local e momento do embate, sem qualquer dos presentes as ter visto nem saberem quem os identificou, apenas tendo sido encontrados para virem testemunharem na audiência de julgamento, o que tudo faz supor tratar-se de falsas testemunhas arregimentadas pelo arguido à última da hora) é totalmente inverosímil e fantasiosa, estando em desconformidade com as mais elementares regras da experiência da vida.

Ora, «se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável pois foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção» [Ac. da Rel. do Porto de 19/3/2003, proferido no Proc. nº 0310070 e relatado pelo Desembargador FERNANDO MONTERROSO, cujo texto integral está disponível no site http://www.dgsi.pt.]. E «isto é assim mesmo quando tiver sido feito o registo das declarações orais prestadas no julgamento, pois, de outro modo, seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova»[ Ibidem]. [Cfr., também no sentido de que, «tendo o tribunal formado a sua convicção com provas não proibidas por Lei, prevalece a convicção que da prova teve o julgador sobre a formulada pelo recorrente, que é irrelevante, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova», o Ac. da Rel. de Lisboa de 22/11/2002, proferido no Proc. nº 0020409 e relatado pela Desembargadora MARGARIDA ALMEIDA (cujo sumário está disponível no site http://www.dgsi.pt.).] [Cfr., igualmente no sentido de que «limitado o recurso a matéria de facto, na solução da questão posta atentar-se-á nos dois princípios fundamentais que norteiam a apreciação da prova:

- o de que ela é apreciada, salvo quando a lei disponha diferentemente, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador - principio da livre apreciação da prova;

- o de que o tribunal, ao decidir, não tem de formular um juízo de certeza, bastando-se a lei com a convicção da ocorrência», pelo que, «respeitados estes princípios pela sentença recorrida, como se extrai do contexto da prova produzida, não pode a mesma sentença deixar de ser confirmada», o Ac. da Rel. do Porto de 18/3/92 proferido no Proc. nº 9210093 e relatado pelo então Desembargador PEREIRA MADEIRA (cujo sumário está disponível no site http://www.dgsi.pt.).].

Daqui resulta, liminarmente, a improcedência deste recurso no que tange à impugnação da matéria de facto e, por isso, no tocante à pretensa violação do citado princípio da Livre Apreciação Da Prova.

2) Da pretensa violação do princípio in dubio pro reo.

Na tese do ora Recorrente, como os depoimentos testemunhais invocados pela sentença recorrida para fundamentar a convicção do julgador acerca dos factos por ele considerados provados seriam, afinal, vagos, inconclusivos, confusos e hesitantes, em termos tais que não conseguem explicar o acidente, o arguido deveria ter sido absolvido, em conformidade com o princípio in dubio pro reo, perante as sérias dúvidas que tais depoimentos suscitam quanto ao modo como ocorreu o acidente. O Tribunal a quo teria por isso, violado aquele princípio.

Quid juris ?

Segundo um entendimento consensual na jurisprudência, «a violação do princípio "in dubio pro reo" pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência também só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido»[ Ac. da Rel. de Lisboa de 24/1/2001, proferido no Proc. nº 0066773 e relatado pelo Desembargador CARLOS SOUSA.] [Cfr., igualmente no sentido de que «só há violação do princípio in dubio pro reo quando da matéria de facto resulta que o Tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e, apesar disso, escolheu a tese desfavorável ao arguido», o Ac. do STJ de 27/5/1998 (in BMJ nº 477, pp. 303-349).] [Cfr., também no sentido de que «o Supremo Tribunal de Justiça só pode caso sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo, se da decisão recorrida resulta que o Tribunal recorrido tenha ficado na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido, caso em que estaria em causa uma regra de direito susceptível de ser sindicada em revista», o Ac. do STJ de 5/6/2002 proferido no Proc. nº 976/2003 e relatado pelo Conselheiro SIMAS SANTOS (cujo texto integral está disponível no site http://www.dgsi.pt.).].

Ora, no caso dos autos, não resulta minimamente da sentença condenatória ora sob censura que o tribunal a quo tenha chegado a um estado de dúvida insanável e, apesar disso, tenha escolhido a versão factual desfavorável ao Arguido ora Recorrente. Tanto basta para que o presente recurso tenha de improceder, quanto à pretensa violação do princípio in dubio pro reo.

Acresce que o princípio da presunção de inocência constitucionalmente consagrado no art. 32º, nº 1, da Constituição da República tão pouco impunha, in casu, o surgimento daquela dúvida [Como é sabido, «o princípio in dubio pro reo só se aplica no caso de surgir dúvida quanto à apreciação da matéria de facto» (HELENA MAGALHÃES BOLINA, “Razão de ser, Significado e Consequências do Princípio da Presunção de Inocência (art. 32º, nº 2, da CRP)” in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXX, 1994, p. 445). «A dúvida que o julgador está vinculado a resolver favoravelmente ao arguido é, assim, uma dúvida relativa aos elementos de facto – quer sejam pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer sejam factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão de ilicitude ou da culpa – e não sobre a interpretação da lei» (ibidem, p. 439). Já, porém, «o princípio da presunção de inocência, atento o objectivo que visa atingir, intervém em momento anterior, condicionando o surgimento dessa dúvida, impondo-o em todas as situações em que, à luz da verdade material, a culpabilidade do arguido não possa considerar-se afirmada com certeza» (ibidem, p. 445). «A dúvida é, assim, por imposição do princípio de presunção de inocência, uma dúvida legal: uma dúvida que deve surgir em determinadas circunstâncias e constitui também matéria de direito, não só a questão de saber se a dúvida surgida na apreciação da prova foi resolvida favoravelmente ao arguido – caso em que se está perante a verificação do respeito do princípio in dubio pro reo -, mas também se, em face da prova produzida, a dúvida surgiu quando devia ou, noutra perspectiva, se o juízo de certeza foi bem fundado» (ibidem). «Neste caso, o princípio cujo respeito se avalia é, não já o in dubio pro reo, mas, mais rigorosamente, o princípio da presunção de inocência» (ibidem). «O princípio da presunção de inocência distingue-se, assim, do princípio in dubio pro reo, não só pela sua relevância no tratamento do arguido ao longo de todo o processo e pelo seu reflexo extraprocessual como critério dirigido ao legislador ordinário, mas também, em sede de prova, impondo que a dúvida surja em determinadas circunstâncias, assim possibilitando, em momento lógico anterior, a aplicação do princípio in dubio pro reo» (ibidem, pp. 445-446).].

É que «o direito à presunção de inocência constitucionalmente garantido não é incompatível com que se admita que a convicção judicial num processo penal se possa formar sobre a base de uma prova indiciaria. Ponto é que essa convicção em sentido desfavorável ao arguido se alcance para além de toda a dúvida razoável, através de juízos objectivos e motiváveis» [Cit. Ac. da Rel. do Porto de 18/12/2002, proferido no Proc. nº 0210996 e relatado pelo Desembargador BAIÃO PAPÃO]. [Cfr., igualmente no sentido de que «nada impede que a prova indiciária, por si, permita fundamentar uma condenação», o Ac. da Rel. de Coimbra de 9/2/2000 (in Col. Jur., 2000, tomo I, p. 51).].

E esse é seguramente o caso dos autos. Na verdade, as inferências que o tribunal a quo extraiu dos depoimentos prestados pelas testemunhas presenciais do acidente (B ........, condutor do ciclomotor 1-LSD embatido pelo veículo tripulado pelo arguido; G ........, passageira do outro ciclomotor que circulava na E.N. nº 207, à frente do 1-LSD, a cerca de 20 metros; H ............., que chegou ao local imediatamente após o sinistro; J .......... e L ..........., que circulavam na E.N. nº 207 e chegaram ao local logo após o sinistro; e I .............., militar da GNR que elaborou a participação de acidente de viação junta aos autos, tendo confirmado as medições que constam da mesma) e dos documentos constantes de fls. 8-9, 26 a 47, 49 a 54, 56 a 71 e 73, acerca do modo como se produziu o acidente de viação em causa nos autos, são absolutamente razoáveis e lógicas, à luz das regras da experiência comum, enquanto correspondem ao normal desenvolvimento do curso das coisas.

O presente recurso improcede, portanto, quanto à pretensa violação do princípio in dubio pro reo.

3) Da pretensa insuficiência da matéria de facto considerada provada na sentença recorrida para se poder qualificar a conduta do arguido como integrando o elemento constitutivo do tipo de culpa negligente, tal como ele é traduzido pelo artigo 15º do Código Penal.

Da circunstância de se não ter provado que, no momento do acidente, o ciclomotor onde seguiam as vítimas tinha as respectivas luzes acesas e do facto de não ter sido possível apurar as circunstâncias que levaram o veículo conduzido pelo arguido a invadir a hemi-faixa de rodagem contrária, permite-se o Recorrente inferir que a matéria de facto considerada provada na sentença recorrida não permite qualificar a conduta do arguido como integrando o elemento constitutivo do tipo de culpa negligente, tal como ele é traduzido pelo artigo 15º do Código Penal, por isso que sempre se poderia questionar se o acidente não seria, afinal, imputável quer ao próprio condutor do ciclomotor que transportava a vítima, quer a terceiro, quer a caso fortuito estranho ao funcionamento do veículo (encandeamento, pneu rebentado, etc.).

Quid juris ?

Efectivamente, o tribunal a quo não deu como provado que o ciclomotor de matrícula 1-LSD (conduzido por B ........... e levando como passageira F .........) circulasse com as luzes acesas, nem, por outro lado, logrou apurar por que motivo o veículo conduzido pelo arguido invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária àquela em que circulava, vindo aí a colidir com o ..-LSD-..-.. (não se provou, designadamente, que o arguido tenha resolvido ultrapassar alguns veículos que seguiam à sua frente, atento o sentido de marcha Lousada/Paços de Ferreira, e que tenha sido para efectuar tal manobra que ele invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária àquela em que circulava).

Ainda assim, não deixou de se provar que o veículo tripulado pelo arguido invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária àquela em que circulava, vindo aí a colidir com o ciclomotor de matrícula ..-LSD-..-.., tendo o embate ocorrido na hemi-faixa esquerda da estrada, atento o sentido de marcha Lousada/Paços de Ferreira (em que seguia o ciclomotor), a cerca de 2,80 metros da berma esquerda atento esse sentido.

Sabendo-se – como se sabe – que, nos termos do art. 13º, nº 1, do Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio (em vigor à data dos factos), “o trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas e passeios”, apenas permitindo o nº 2 do mesmo preceito que se utilize o lado esquerdo da faixa de rodagem “para ultrapassar ou mudar de direcção” e só “quando necessário”, temos que o Arguido, ao invadir a hemi-faixa de rodagem contrária àquela em que circulava, infringiu, pelo menos, esta disposição do Código da Estrada.

Ora, «quando houver inobservância de leis ou regulamentos, a negligência consubstancia-se nessa inobservância, dispensando-se a prova em concreto, desde que o acidente seja um daqueles que a lei pretende evitar quando impôs a disciplina traduzida na norma/regra violada» [Ac. da Rel. de Coimbra de 31/10/1990 (in Col. Jurispª., 1990, tomo 4, p. 100).]. Efectivamente, «as regras da experiência da vida, o princípio da normalidade, ensinam que na base das infracções das regras de trânsito está a conduta negligente do condutor do veículo» [Ac. desta Rel. do Porto de 12/3/1986 (sumariado in BMJ nº 355, p. 435).] [Cfr., igualmente no sentido de que, «provando-se uma actuação contravencional do condutor do veículo, presume-se a sua culpa, no sentido de se projectar no juízo de censura final o desvalor da conduta contravencional, como causa do resultado típico criminal», o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça proferido no proc. nº 46 288 (apud LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS in “Código Penal Anotado”, II Vol, 3ª ed., 2000, p. 197).] [Cfr., ainda no sentido de que, «se é certo que a imputação de uma contravenção não pode fazer-se independentemente de todo o juízo de censura e de culpa, deverá por outro lado aceitar-se, neste domínio, uma presunção de culpa (negligência), embora admitindo prova em contrário», o Ac. desta Relação de 21/6/1995, proferido no Proc. nº 9540443 e relatado pelo Desembargador PEREIRA MADEIRA (cujo sumário pode ser consultado no site http://www.dgsi.pt.)]. [Cfr., de igual modo no sentido de que, «em sede de acidentes rodoviários, a imputação de um crime negligente terá subjacente a violação de um dever objectivo de cuidado que emerge das regras de experiência comum ou da violação das normas do Código da Estrada, ou da violação de ambas», pelo que, «tendo existido uma violação das normas estradais, e sendo o evento produzido do tipo que a lei quis evitar quando impôs a disciplina violada, deve presumir-se a negligência.», o Ac. da Rel. de Coimbra de 29/1/2003, proferido no Proc. nº 3741/02 e relatado pelo Desembargador SANTOS CABRAL (cujo sumário pode ser consultado no site http://www.dgsi.pt.).].

Na doutrina penalista, também HANS-HEINRICH JESCHECK [In “Tratado de Derecho Penal. Parte General”, Tradução espanhola da 3ª ed. alemã de 1978, Vol. 2º, Barcelona, 1981, pp. 801-802.] sustenta que «a violação de normas especiais sobre o cuidado que deve observar-se não indica, certamente, em todos os casos, que o autor tenha actuado imprudentemente (…), mas a contravenção de preceitos vinculantes constitui sempre “indício probatório” da concorrência de uma infracção do dever de cuidado».

Entre nós, FIGUEIREDO DIAS, depois de observar [In “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra, 2001, pp. 353-354.] que «o tipo de ilícito do facto negligente não deixa (…), em caso algum, integrar-se completamente pela mera causação de um resultado (p. ex., no caso do homicídio negligente do art. 137º, pela morte de outra pessoa causada pela conduta do agente), visto que, «para além disso torna-se indispensável que tenha ocorrido a violação, por parte do agente, de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impende e que conduziu à produção do resultado típico; e, consequentemente, que o resultado fosse previsível e evitável para o homem prudente, dotado das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do agente», não deixa igualmente de reconhecer [In ob. cit., pp. 359-360] que a violação das «normas jurídicas de comportamento existentes, sejam elas gerais e abstractas, contidas em leis ou regulamentos, sejam individuais, contidas em ordens ou prescrições da autoridade competente», «constituirá indício por excelência de uma contrariedade ao cuidado objectivamente devido» [ Ainda assim, segundo FIGUEIREDO DIAS (in ob. cit., p. 360), «quando o perigo típico de um comportamento pressuposto pela norma jurídica falte excepcionalmente, em virtude da especial configuração do caso concreto, não pode um tal comportamento ser considerado como contrário ao cuidado objectivamente devido». Assim, «se, v.g., um condutor “fura” a luz vermelha de um cruzamento em condições de plena visibilidade e quando as vias estão com movimento quase nulo, não preenche o tipo de ilícito das ofensas à integridade física ou do homicídio se alguém se atira subitamente para debaixo do automóvel e em consequência fica ferido ou vem a falecer» (ibidem).] [É certo que – para este Autor (In “Temas Básicos da Doutrina Penal” cit., p. 372) - «a não observância do cuidado objectivamente devido não perfecciona, por si própria, o tipo de ilícito negligente, antes importa que ela conduza – como expressamente afirma o art. 15º do CP – a uma representação imperfeita ou a uma não representação da realização do tipo». Donde que «o agente, para que seja punível por negligência, tem não apenas de violar o cuidado objectivamente imposto, mas ainda de não afastar o perigo ou evitar o resultado apesar de aquele se apresentar como pessoalmente cognoscível e este como pessoalmente evitável: só nesta medida se pode afirmar que ele documentou no facto qualidades pessoais de descuido ou de leviandade pelas quais tem de responder» (FIGUEIREDO DIAS in ob. cit., p. 377). Simplesmente, «para que a culpa negligente se afirme, não é necessário (nem possível) apelar ao concreto poder do agente de actuar de outro modo na situação» (A. e ob. citt., pp. 377-378). «Do que ali se trata é apenas da conclusão de que, de acordo com a experiência, os outros, agindo em condições e sob pressupostos fundamentalmente iguais àqueles que presidiram à conduta do agente, teriam previsto a possibilidade de realização do tipo de ilícito e tê-la-iam evitado» (A. e ob. cit., p. 378). ].

«Por isso, a invasão da faixa de rodagem contrária constitui uma actuação contravencional do condutor do veículo e presume-se a culpa, segundo as regras da experiência» [Cit. Ac. desta Rel. de 12/3/1986.]. De modo que, «não provando o réu que a invasão da faixa de rodagem contrária se ficou a dever a qualquer avaria mecânica ou a outro facto extraordinário estranho à sua vontade, é de concluir que o acidente ficou a dever-se a culpa sua por circular fora da sua mão de trânsito» [Ibidem.] [Cfr., igualmente no sentido de que, «tendo-se provado que um condutor invadiu a faixa de rodagem contrária por onde circulava um outro veículo em sentido contrário aí se dando o embate entre os dois veículos, compete ao primeiro condutor demonstrar que a contravenção foi estranha à sua vontade ou não foi determinante para o desencadeamento do facto danoso», o Ac. da Rel. de Lisboa de 26/3/1992 (publicado in Col. Jurispª., 1992, tomo II, p. 156).] [Cfr., também no sentido de que, «provando-se que o arguido conduzia de forma consciente e livre e não tendo ele provado que a invasão da berma da estrada, onde colheu peões, se ficou a dever a qualquer causa extraordinária estranha á sua vontade, é lícito concluir que o acidente se deu devido a sua negligência, na medida em que a condução de veículos é uma actividade voluntária, responsavelmente assumida», o já cit. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça proferido no proc. nº 46 288 (apud LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS in “Código Penal Anotado”, II Vol, 3ª ed., 2000, p. 197).] [Cfr., igualmente no sentido de que, «não tendo o arguido justificado o despiste do veículo que tripulava numa auto-estrada, com nevoeiro e piso completamente encharcado, devido a chuva intensa, a velocidade compreendida entre 90 e 110 km/hora, assim provocando a morte de duas pessoas que no talude contíguo à berma da via socorriam os ocupantes de outro veículo acidentado, cometeu um crime de homicídio negligente, pese embora a pluralidade de vítimas, pois agiu com negligência inconsciente», o Ac. da Rel. de Coimbra de 12/7/1999, proferido no Proc. nº 2447/99 e relatado pelo Desembargador MÁRIO BELO MORGADO (cujo sumário pode ser consultado no site http://www.dgsi.pt.)].

Eis por que, no caso dos autos, não tendo o Arguido ora Recorrente logrado provar que a invasão da faixa contrária àquela em que seguia, por parte do veículo por ele conduzido, resultou de qualquer avaria mecânica ou de qualquer outra circunstância extraordinária alheia à sua vontade, tem de presumir-se, à luz das regras da experiência da vida, que tal invasão era evitável e que, portanto, os resultados a que ela necessariamente conduziu (a colisão entre o veículo do Arguido e o ciclomotor onde viajavam as vítimas e a subsequente morte da ofendida F .......... e as ofensas à integridade física do ofendido B ........) eram previsíveis e evitáveis.

Donde que – contrariamente ao sustentado pelo ora Recorrente –, apesar de se não ter logrado apurar por que motivo concreto o veículo conduzido pelo arguido invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária àquela em que circulava, a matéria factual provada é suficiente para se poder imputar ao Arguido a autoria do crime de homicídio negligente p. e p. pelo art. 137º do Cód. Penal.

A esta conclusão não obsta a circunstância de tão pouco se ter provado que o ciclomotor de matrícula 1-LSD (conduzido por B ........ e levando como passageira F ............) circulasse com as luzes acesas.

Efectivamente, apesar de o acidente se ter verificado de noite (é facto notório que, às 20 horas do dia 28 de Março, já é noite, isto é, a noite já caiu), está provado que, por um lado, o local onde ocorreu o sinistro configura-se em recta com cerca de mil metros de comprimento, e de boa visibilidade e, por outro, a estrada tem aí cerca de seis metros e vinte centímetros de largura, desenvolvendo-se o trânsito nos dois sentidos de marcha.

De sorte que, nas concretas circunstâncias em que se deu a colisão entre o veículo tripulado pelo Arguido e o ciclomotor onde seguiam as vítimas, o facto de este ciclomotor porventura circular com as luzes apagadas não concorreu minimamente para a elevação do risco de produção do sinistro. O acidente (a colisão entre o veículo conduzido pelo Arguido e o ciclomotor onde seguiam as vítimas) apenas teve lugar porque o veículo tripulado pelo arguido invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária àquela em que circulava (como o demonstra o facto de o embate ter ocorrido na hemi-faixa esquerda da estrada, atento o sentido de marcha Lousada/Paços de Ferreira - em que seguia o ciclomotor -, a cerca de 2,80 metros da berma esquerda atento esse sentido). E – como vimos – essa invasão (que, em si mesma, consubstancia a infracção duma norma legal da circulação rodoviária: o cit. art. 13º-1 do Código da Estrada) não se encontra justificada por nenhuma avaria mecânica ou por qualquer outra circunstância extraordinária alheia à vontade do Arguido.

Em conclusão: o presente recurso improcede também, quanto a este 2º fundamento, consistente na pretensa insuficiência da matéria de facto considerada provada na sentença recorrida para se poder qualificar a conduta do arguido como integrando o elemento constitutivo do tipo de culpa negligente, tal como ele é traduzido pelo artigo 15º do Código Penal.

4º) Da questão de saber se, à luz dos parâmetros estabelecidos nos artigos 70º e 71º do Código Penal, o Arguido apenas deve ser condenado numa pena pecuniária (em detrimento da de prisão) e nunca superior a 180 dias à taxa diária adequada, sem imposição de qualquer pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pois aquela pena pecuniária satisfaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e satisfaria as exigências de reprovação e prevenção do crime.

A sentença recorrida entendeu que, no caso concreto, a pena de multa (cominada para o crime de homicídio negligente cometido pelo Arguido, em alternativa à de prisão, pelo cit. art. 137º do Cód. Penal) não satisfaz de forma suficiente e adequada as exigências de reprovação e prevenção do crime, visto o nosso país registar, nas últimas décadas, elevadíssimos índices de sinistralidade rodoviária, comparativamente com outros países europeus, decorrendo daí perdas irreparáveis de vidas humanas com importantes danos e custos sociais que importa travar e diminuir por todos os meios legais possíveis, um dos quais será a severidade das penas. Eis por que optou (nos termos do art. 70º do Cód. Penal) pela pena de prisão.

Quid juris ?

Como se sabe, o cit. art. 70º do Código Penal (na redacção resultante da revisão deste diploma operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março) fornece ao julgador o critério de orientação para a escolha, quando ao crime são aplicáveis, em alternativa, pena privativa ou pena não privativa da liberdade – como sucede relativamente ao crime de homicídio negligente praticado pelo Arguido (cfr. o cit. art. 137º, nº 1, do mesmo Código) e como também ocorre com aqueloutro crime de ofensa à integridade física por negligência igualmente cometido pelo Arguido (e do qual foi vítima o ofendido B ........) mas que, segundo a orientação praticamente uniforme da jurisprudência [Cfr., no sentido de que «pratica um só crime de homicídio por negligência o condutor de um veículo que, por agir com culpa inconsciente, provoca um só acidente de viação de que resulta a morte de uma pessoa e ofensas corporais em outra», o Ac. da Rel. de Coimbra de 19/10/1994 (publicado in Col. Jur., 1994, tomo 4, p. 58) e o Ac da mesma Relação de 6/4/1995 (publicado in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6º, fascículo I, p. 127 e segs., com anotação discordante de PEDRO CAEIRO).] [Cfr., igualmente no sentido de que, «quando o agente não prevê os resultados típicos, por actuar com culpa inconsciente, só é possível formular um juízo de censura por cada comportamento negligente, não tendo, assim, a pluralidade de eventos típicos virtualidade para desdobrar as infracções», o Ac. do S.T.J. de 28/10/1997 (in Col. Jur., Acs. do STJ, 1997, tomo 3, p. 212).] [Cfr., porém, no sentido de que, «em matéria de crimes por negligência consciente e violadores de bens jurídicos eminentemente pessoais, o agente comete tantos crimes quantos os resultados que previu e, injustificadamente, confiou que não se produziriam», o Ac. do S.T.J. de 8/7/1998 (in Col. Jur., Acs. do STJ, 1998, tomo 2, p. 237).] e pela qual também enveredou a sentença recorrida, não se encontra em concurso real com o referido crime de homicídio negligente – e traduz vincadamente o pensamento legislativo do Código de 1982 de reagir contra penas institucionalizadas ou detentivas, sempre que os fins das penas possam ser atingidos por outra via. O preceito impõe ao tribunal que dê preferência à pena não privativa da liberdade “sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” prescritas no art. 40º, nº 1, do Cód. Penal (a saber: a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade) [Enquanto o preceito correspondente do texto de 1982 (o artigo 71º) impunha a preferência pela pena não detentiva desde que esta se mostrasse “suficiente para promover a recuperação social do delinquente” e “satisfizesse as exigências de reprovação e de prevenção do crime”, o actual artigo 70º, resultante da Reforma introduzida no texto do Código Penal de 1982 pelo DL. nº 48/95, de 15 de Março, limita-se a remeter para as finalidades da punição prescritas no art. 40º, nº 1, (protecção dos bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade)].

A imposição legal da opção pela pena alternativa da prisão, sempre que, através dela, se possam realizar as finalidades da punição, significa que «a escolha entre a pena de prisão e a alternativa ou de substituição depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial» [MAIA GONÇALVES in “Código Penal Português Anotado e Comentado e Legislação Complementar”, 13ª ed., 1999, p. 247.]. Na verdade, resulta do cit. art. 40º-1 do Cód. Penal que a aplicação das penas e das medidas de segurança se dirige à «protecção subsidiária e preventiva, quer geral quer individual, de bens jurídicos e de prestações estatais: a realização do fim de prevenção geral (com o significado de salvaguarda da ordem jurídica na consciência da comunidade, já não no sentido de mera intimidação) e do fim de prevenção especial (reintegração do agente na sociedade), fins esses informadores sobretudo da fase de execução da pena» [LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS in “Código Penal Anotado”, 3ª ed., 1º Vol.., 2002, p. 565.].

Ora, é inegável que, num país (como o nosso) onde se registam elevadíssimos índices de sinistralidade rodoviária, comparativamente com outros países europeus, daí decorrendo, todos os anos, numerosas perdas irreparáveis de vidas humanas com importantes danos e custos sociais, a realização do fim de prevenção geral visado pelas penas só pode ser conseguida pela imposição duma pena privativa da liberdade, não sendo para tanto suficiente a aplicação duma simples pena pecuniária como é a multa.

Por outro lado, também a reintegração na sociedade dum agente como o ora Arguido, cuja conduta demonstra ter qualidades pessoais de descuido ou de leviandade merecedoras de forte censura (como o revela o facto de ele se ter permitido invadir a faixa de rodagem contrária àquela em que seguia, num local que se configura em recta com cerca de mil metros de comprimento, e de boa visibilidade e onde a estrada tem cerca de seis metros e vinte centímetros de largura, desenvolvendo-se o trânsito nos dois sentidos de marcha), postula necessariamente a aplicação ao mesmo duma pena privativa da liberdade, por ser evidente que a imposição duma simples pena de multa não assegura a reinserção do Arguido na sociedade.

O que tudo demonstra ter sido correcta e acertada a opção pela pena de prisão, em detrimento da de multa, feita pela sentença recorrida.

Ademais, na escolha da pena concreta, a sentença sob censura ponderou, com respeito pelos parâmetros enunciados no art. 71º, nºs 1 e 2, do Cód. Penal, a gravidade das consequências da actuação negligente do Arguido (traduzidas na perda irremediável de uma vida e em lesões graves e permanentes noutro ofendido, a necessidade premente de pôr cobro a este tipo de sinistralidade rodoviária, nomeadamente na área da comarca, atento o elevado número de acidentes mortais verificados, a circunstância (que milita a favor do Arguido) de ele não possuir antecedentes criminais e de não ter registo de condenações motivadas por acidentes de viação e o facto de ele estar integrado social, profissional e familiarmente.

Neste conspecto, a pena concreta aplicada (15 meses de prisão), situada ligeiramente abaixo do meio (18 meses) da pena abstracta (balizada entre 1 e 36 meses de prisão: cfr. o art. 137º, nº 1, do Cód. Penal), não pode, razoavelmente, ser considerada excessiva, devendo mesmo ser considerada demasiado branda, se se tiver em linha de conta que, além do homicídio de que foi vítima F .............., o Arguido também ofendeu gravemente a integridade física de outrém (o B ..........).

Também não procede aqueloutra objecção deduzida pelo Recorrente contra a imposição, pela sentença recorrida, da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados.

Efectivamente, um dos princípios gerais, em matéria de penas acessórias e efeitos das penas, é o de que a condenação pela prática de certos crimes pode determinar, quando a lei o disser, a proibição do exercício de alguns direitos ou profissões (art. 65º, nº 2, do Código Penal, introduzido na revisão deste diploma operada pelo cit. Dec-Lei nº 48/95, de 15 de Março).

Ora, nos termos do art. 69º, nº 1, al. a), do mesmo Código (na redacção anterior à que lhe foi, recentemente, conferida pela Lei nº 77/2001, de 13 de Julho), quem for punido por crime cometido no exercício da condução de veículos motorizados com grave violação das regras do trânsito rodoviário é condenado na proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre 1 mês e 1 ano.

A grave violação das regras do trânsito rodoviário, para os efeitos desta al. a) do nº 1 do art. 69º, deve ser primordialmente definida pelo direito estradal e, dentro deste, pelo Código da Estrada, como efectivamente o é nos arts. 148º e 149º desse diploma [Cfr., neste sentido, MAIA GONÇALVES in “Código Penal Português Anotado e Comentado e Legislação Complementar” cit., p. 243.].

Ora, nos termos do art. 148º, al. j), do Cód. da Estrada aprovado pelo DL. nº 114/94, de 3 de Maio (diploma que vigorou até 30/9/2001 e que estava ainda em vigor à data dos factos do presente processo), a transposição ou a circulação em desrespeito de uma linha longitudinal contínua delimitadora de sentidos de trânsito ou de uma linha mista com o mesmo significado constitui contra-ordenação grave.

Assim sendo, estando provado que o veículo conduzido pelo arguido invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária àquela em que circulava, tem de concluir-se que o crime de homicídio negligente por ele cometido o foi no exercício da condução de veículos motorizados e com grave violação das regras do trânsito rodoviário, para os efeitos do cit. art. 69º, nº 1, al. a), do Cód. Penal.

Bem andou, pois, o tribunal a quo ao impor ao Arguido/Recorrente a proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de doze meses (ao abrigo do disposto no art. 69º, nº 1, al. a), do Código Penal).

A circunstância de, já depois de praticado o facto, ter entrado em vigor a nova redacção dada ao referido art. 69º do Cod. Penal pela Lei nº 77/2001, de 13 de Julho, à face da qual a al. a) do seu nº 1 deixou de prever, entre as hipóteses que dão lugar à condenação na proibição de conduzir veículos com motor, a circunstância de o agente ser punido por crime cometido no exercício da condução de veículos motorizados com grave violação das regras do trânsito rodoviário, não consequência a automática insusceptibilidade de o Arguido ora recorrente continuar a incorrer nesta pena acessória, ex vi do art. 2º, nº 2, do Cód. Penal.

Efectivamente, «as penas (…) são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem» (nº 1 do mesmo artigo 2º), doutrina que tanto vale para a pena principal como as penas acessórias.

Impõe-se, isso sim, nos termos do nº 4 do mesmo preceito, averiguar se o regime penal resultante da cit. Lei nº 77/2001 se revela, em concreto, mais favorável ao Arguido, pois, se assim fosse, haverá que aplicá-lo.

Ora, à face da nova redacção conferida à cit. al. a) do nº 1 do art. 69º do Cód. Penal pela mencionada Lei nº 77/2001, só incorre na proibição de conduzir veículos como motor (mas agora por um período fixado entre 3 meses e 3 anos, e já não entre 1 mês e 1 ano – como sucedia na vigência da anterior redacção do corpo do nº 1 do cit. art. 69º) quem for punido por crime previsto nos artigos 291º ou 292º do mesmo Código, já não bastando para tanto a punição por qualquer outro crime (designadamente, o de homicídio negligente), desde que cometido no exercício da condução de veículos motorizados e com grave violação das regras do trânsito rodoviário (como ocorria na vigência da anterior redacção da mesma al. a) do nº 1 do art. 69º) [Cfr., precisamente no sentido de que, «após a entrada em vigor da Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, e como decorre da redacção dada à al. a), do n.º1, do art.69, do Código Penal, deixou de ser aplicável a pena acessória de proibição de conduzir por crime no exercício da condução de veículo motorizado com grave violação das regras do trânsito rodoviário, passando aquela pena acessória a ser aplicável, apenas, por crime previsto no art. 291° (condução perigosa de veículo rodoviário) ou no art. 292° (condução de veículo em estado de embriaguez), o Ac. da Rel. de Coimbra de 1/10/2003, proferido no Proc. nº 2053/03 e relatado pelo Desembargador OLIVEIRA MENDES (in http://www.dgsi.pt.)].

Donde que, efectivamente, o regime penal resultante da cit. Lei nº 77/2001 mostra-se, em concreto, mais favorável ao Arguido, havendo, por isso, que aplicá-lo, dado ainda não haver transitado em julgado a sentença condenatória proferida contra aquele (cit. art. 2º, nº 4, do Cód. Penal).

DECISÃO

Nestes termos, acordam os juizes da 4ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo Arguido A ......., assim confirmando, na íntegra, a sentença do ... Juízo do Tribunal da Comarca de ...... que o condenou, como autor material de um crime consumado de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal, na pena de quinze meses de prisão (declarada, todavia, suspensa na sua execução pelo período de três anos), salvo no tocante à proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de doze meses (ao abrigo do disposto no art. 69º, nº 1, al. a), do Código Penal), que não pode subsistir, mercê do disposto no art. 2º, nº 4, do Cód. Penal e da nova redacção conferida à al. a) do nº 1 do art. 69º do Cód. Penal pela Lei nº 77/2001, de 13 de Julho.

Custas do recurso a cargo do Recorrente.

Taxa de justiça: 10 (dez) UCs (art. 87º, nº 1, al. b), do Cód. das Custas Jud.).

Honorários da Tabela a favor do defensor oficioso.

Porto, 24/03/2004

Rui Manuel de Brito Torres Vouga

Arlindo Manuel Teixeira Pinto

Joaquim Rodrigues Dias Cabral

José Casimiro da Fonseca Guimarães