Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6651/08.8TAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: CONFLITO DE DEVERES
ESTADO DE NECESSIDADE DESCULPANTE
CRIMES FISCAIS
APROPRIAÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP201206206651/08.8TAVNG.P1
Data do Acordão: 06/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – No n.º 1 do art. 36° do C. Penal contemplam-se as hipóteses em que o agente é colocado perante o dilema de, na impossibilidade de cumprimento tempestivo ou simultâneo de deveres que sobre ele impendem, ter de optar pelo cumprimento de um deles, sacrificando o outro.
II – No confronto entre o dever de entregar à Segurança Social as quantias descontadas nos salários dos trabalhadores da sociedade e o dever de manter esta em actividade, pagando as despesas correntes de funcionamento, mormente os salários, prevalece aquele.
III – Não está a coberto do estado de necessidade desculpante, previsto no art.º 35º do C. Penal, a conduta daquele que, para manter a sociedade em laboração, desvia as quantias devidas à Segurança Social.
IV – Não é inconstitucional, por violação dos princípios da presunção de inocência, da igualdade e da proporcionalidade, a interpretação da norma do art. 107° n° 1 do RGIT, no sentido de afastar a aplicação das causas de exclusão da ilicitude e da culpa nos casos em que os gerentes, não podendo cumprir as duas obrigações em concurso, optam pelo pagamento dos salários dos trabalhadores em detrimento do pagamento das contribuições à Segurança Social.
V - Pese embora a reaproximação ao tipo inicial previsto no RJIFNA, e a consequente distanciação do crime de abuso de confiança previsto no art. 205° do C. Penal, o elemento apropriativo continua presente nos crimes de abuso de confiança tributários.
VI - A apropriação implícita no tipo legal de crime “não tem de ser necessariamente material, podendo ser, como quase sempre é, apenas contabilística” e “verifica-se com a não entrega das contribuições à segurança social e respectiva afectação a finalidades diferentes, por parte da entidade empregadora”.
VII - Não viola a Constituição a norma do artigo 105.° do RGIT, designadamente no sentido de que tal artigo acolhe, como elemento implícito, a exigência de apropriação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal nº 6651/08.8TAVNG.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1.Relatório
No 2º juízo criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, em processo comum com intervenção de tribunal colectivo, foram submetidos a julgamento, além de outro[1], os arguidos B…, C… e D…, SA, devidamente identificados nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu, além do mais, condenar cada um deles pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 107º nº 1, por referência ao art. 105º nº 5, ambos do RGIT, 30º nº 2 e 79º do C. Penal, o primeiro e o segundo nas penas de 2 anos e 2 meses de prisão e de 3 anos de prisão, respectivamente, com execução suspensa pelo mesmo período e subordinada a demonstrarem, no mesmo prazo, o pagamento à segurança social da quantia global de 295.618,20 €, acrescida de juros de mora sobre os valores e períodos referidos nos pontos a. a t. da al. b) dos factos ali considerados como provados, e a terceira em 900 dias de multa à taxa diária se 50 €, num total de 45.000 €.
Na procedência parcial do pedido de indemnização civil que contra eles havia sido deduzido pelo Instituto da Segurança Social, também constituído como assistente nos autos, foram os três arguidos condenados, solidariamente, a pagar ao demandante a quantia de 623.701,57 € com os juros de mora devidos.
Inconformados com a sentença, dela interpuseram recurso os referidos arguidos, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que contemple as alterações à decisão da matéria de facto que propugnam e os absolva da prática do crime em questão ou, se assim se não entender, os dispense da respectiva pena ou a considere especialmente atenuada, para o que apresentaram as seguintes conclusões:

I. Com o presente RECURSO versa-se matéria de direito e impugna-se matéria de facto, tendo, por isso, como objecto, também a reapreciação da prova gravada.
II. No que respeita à matéria de facto, entendem os Arguidos que o Tribunal a quo não terá ponderado devidamente toda a prova carreada para os autos, violando, assim, o artigo 127.° do Código de Processo Penal (CPP).
III. Em primeiro lugar, a redacção da alínea m) da matéria de facto provada deverá ser alterada, na medida em que, para além de tal facto decorrer do sector de actividade da sociedade Arguida, se demonstrou em audiência de julgamento, nomeadamente através dos depoimentos dos ARGUIDOS B… (cuja gravação se inicia às 10h22m25s e termina às 10h38m31s) e C… (cuja gravação se inicia às 10h39ml0s e termina às 10h59m33s) que as despesas inerentes ao tipo de actividade desenvolvida pela sociedade arguida - prestação de serviços de segurança - se traduzem essencialmente nos vencimentos a pagar aos trabalhadores (vigilantes).
IV. Assim, a alínea m) da matéria de facto dada como provada deverá passar a ter a seguinte redacção; “Os arguidos B… e C… actuaram num quadro de dificuldades financeiras sofridas pela sociedade arguida naqueles períodos, o que os determinou a canalizar os recursos financeiros para outras despesas inerentes à actividade da sociedade, essencialmente vencimentos dos trabalhadores, de modo a manter os postos de trabalho e a laboração normal da empresa”.
V. Em segundo lugar, existem determinados factos relevantes para a aferição da ilicitude e da culpa da conduta dos ARGUIDOS, que não foram seleccionados para a matéria de facto.
VI. O Tribunal, na selecção da matéria de facto dada como provada, limitou-se a mencionar as dificuldades financeiras da sociedade, bem como os atrasos dos pagamentos dos clientes, “principalmente os clientes públicos”, sem especificar, como devia, qual a situação que afectou de forma mais significativa as disponibilidades financeiras da ARGUIDA, levando-a ao não pagamento dos montantes sub iudice: a dívida da Câmara Municipal ….
VII. O Tribunal não teve em conta, por um lado, o teor da certidão emitida pelo Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 4, junta como Doc. n.° 25 à Contestação, onde se declara a existência de diversas penhoras de créditos, nomeadamente as penhoras dos créditos do Município … que totalizam o montante de € 863.661,58.
VIII. Por outro lado, não foram igualmente considerados os depoimentos dos ARGUIDOS B… (cuja gravação se inicia às 10h22m25s e termina às 10h38m31s) e C… (cuja gravação se inicia às 10h39ml0s e termina às 10h59m33s), os quais destacaram o valor elevado da dívida que a Câmara Municipal … detinha para com a sociedade arguida e como tal dívida condicionou a possibilidade de pagamento atempado tanto das contribuições à Segurança Social como dos impostos.
IX. Da mesma forma, a testemunha E…, cuja gravação do depoimento se inicia às 12h01m38s e termina às 12h04m21s, demonstrou conhecer a existência da dívida do Município ….
X. Denota-se/ assim, dos elementos enunciados, que os factos descritos tiveram uma relevância extrema na evolução desfavorável das condições financeiras da sociedade ARGUIDA, o que terá levado ao não pagamento das contribuições à Segurança Social,
XI. Tendo ficado igualmente demonstrado que os ARGUIDOS contaram sempre, isto é, todos o meses, com o pagamento da Câmara Municipal …, o que possibilitaria o cumprimento atempado das suas obrigações perante a Segurança Social. Como é evidente, esta matéria é de extrema relevância para a aferição da ilicitude e da eventual culpa dos ARGUIDOS, não podendo deixar de estar inserida expressamente no acervo de factos provados.
XII. Nessa medida, devem ser aditados à matéria de facto provada os seguintes factos:
- “A dívida que o Município … detinha para com a sociedade Arguida ascendeu, pelo menos, ao montante de € 863.661,58”;
- “O montante de € 863.661,58, relativo aos créditos que a sociedade Arguida detinha perante o Município …, foi penhorado pelo Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 4”;
- “No momento de cada uma das resoluções mensais referidas em g) os Arguidos confiaram no recebimento dos montantes devidos pelo Município …”.
XIII. No que respeita à matéria de Direito, entendem os ARGUIDOS que o conjunto da situação de facto dada como provada, mormente nos factos descritos nas alíneas m) a y), bem como na matéria cujo aditamento se requereu, revela a inexistência de ilicitude ou de culpa na prática dos factos imputados aos ARGUIDOS.
XIV. O Tribunal a quo afasta a aplicabilidade das causas de exclusão da ilicitude ou de desculpa, ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, nomeadamente quando está em causa o pagamento dos salários dos trabalhadores e dos custos essenciais à manutenção da laboração da empresa, em detrimento do pagamento das contribuições à segurança social, limitando-se a seguir a linha jurisprudencial que tem vindo a ser (mal) defendida pelos Tribunais Superiores.
XV. Esta tomada de posição, sem ter o cuidado de apreciar os factos concretos que se podem subsumir numa situação de exclusão da ilicitude ou da culpa, é absolutamente inadmissível.
XVI. No caso dos autos, o circunstancialismo que originou a falta de pagamento atempado das contribuições à Segurança Social pode sintetizar-se da seguinte forma:
i) Os ARGUIDOS depararam-se com uma situação financeira da sociedade ARGUIDA muito diferente daquela que lhes tinha sido apresentada inicialmente [alínea n) a u) da matéria de facto provada],
ii) Foi necessário proceder ao pagamento de contribuições e impostos anteriores ao período de administração dos ARGUIDOS;
iii) Nos períodos em que existia alguma disponibilidade financeira, esta teve que ser direccionada essencialmente para o pagamento dos vencimentos dos trabalhadores [alínea m) da matéria de facto provada];
iv) Verificaram-se atrasos acentuados no pagamento dos serviços prestados aos clientes [alínea x) da matéria de facto provada];
v) A Câmara Municipal … deixou de pagar atempadamente à sociedade ARGUIDA facturas no montante de, pelo menos, € 863.661,58 (alíneas cujo aditamento se requereu);
vi) Todos os meses, quando procediam ao pagamento dos salários, os ARGUIDOS contavam com o pagamento das dívidas do Município …, o que lhes permitiria, no dia 15 seguinte, procederem ao pagamento das contribuições à Segurança Social (alíneas cujo aditamento se requereu);
vii) Os ARGUIDOS canalizaram os recursos financeiros disponíveis para pagar os vencimentos dos trabalhadores, na medida em que não lhes era possível cumprir ambas as obrigações [alínea m) e alíneas cujo aditamento se requereu].
XVII. O condicionalismo descrito enquadra-se, necessariamente, numa situação de exclusão da ilicitude, por aplicação do conflito de deveres, previsto no artigo 36.° do Código Penal (CP). Se assim não se entender, a situação enunciada sempre teria que se enquadrar na figura do estado de necessidade desculpante, previsto no artigo 35.° do CP.
XVIII. Coloca-se, em primeira linha, a questão de saber se no caso dos autos poderiam os ARGUIDOS licitamente ter cumprido o dever de pagar os salários dos trabalhadores, em detrimento do pagamento das contribuições à Segurança Social. Trata-se da opção entre cumprir o dever de pagar as contribuições à Segurança Social e o dever de pagar aos trabalhadores e de garantir o seu posto de trabalho.
XIX. Os bens jurídicos em causa em cada um dos deveres (ambos deveres legais) têm protecção constitucional, nos termos dos artigos 63.°, 103.°, 104.°, e 59.°, alínea a), e n.° 3, todos da CRP, não se podendo, nessa medida, aferir, à partida, qual terá maior preponderância.
XX. Em bom rigor, não se pode fazer prevalecer o dever de pagar impostos ou contribuições à Segurança Social, por proteger um bem jurídico supra-individual, como faz o Tribunal a quo, já que o direito a receber a retribuição protege a dignidade da pessoa humana - direito com uma dimensão também ela universal. Mais, a norma que prevê a garantia de uma remuneração condigna ao trabalhador, e da correspectiva manutenção dos postos de trabalho, também ela visa proteger interesses de cariz supra individual, no âmbito do próprio Estado social.
XXI. Acresce que o facto de o não pagamento de impostos e contribuições à Segurança Social ser punido criminalmente também não é critério relevante para aferir da hierarquia dos deveres, já que, para além de o não pagamento atempado do vencimento constituir contra-ordenação grave, nos termos dos n.°s 4 e 6 do artigo 278.° do Código do Trabalho, o pagamento a credores não titulares de garantia ou privilégio com preferência em relação aos créditos dos trabalhadores constitui um crime, punido com pena de prisão até três anos, por aplicação dos artigos 324.°, n.°s l e 3, e 313.°, n.° 1, alínea d), do Código do Trabalho (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 4 de Maio de 2010, no âmbito do processo n.° 1161/09.9TBLRA, in www.dgsi.pt). Qualquer das condutas a adoptar pelos ARGUIDOS se revelava, assim, ilícita e criminalmente sancionada.
XXII. Seja como for, e ainda que se entenda estarmos perante um conflito entre um dever jurídico não penalmente tutelado e um dever jurídico-penal, o primeiro pode, e, neste caso, deve, prevalecer sobre o segundo.
XXIII. Não é legítimo defender-se, como se faz na sentença recorrida, que o dever legal de pagar as contribuições à Segurança Social (e os impostos) se sobrepõe ao dever de pagar aos trabalhadores.
XXIV. A ilicitude da conduta dos ARGUIDOS está, como tal, afastada, devendo os mesmos ser absolvidos do respectivo crime e, consequentemente, do pedido cível deduzido pelo ASSISTENTE, nos termos do artigo 36.°, n.° l, do CP.
XXV. Se assim não se entender, o que não se admite, a culpa dos ARGUIDOS sempre estaria afastada, nos termos do disposto no artigo 35.°, n.° 2, do CP.
XXVI. Na realidade, o não pagamento das contribuições à Segurança Social apresentou-se para os ARGUIDOS como a única forma de assegurar o emprego das largas dezenas de trabalhadores, pagando os respectivos salários e mantendo os postos de trabalho.
XXVII. O não pagamento dos salários originaria praticamente de imediato a paralisação da actividade da empresa e a apresentação à insolvência demonstrava-se como muito mais prejudicial para os trabalhadores, para a própria Segurança Social e para a economia em geral.
XXVIII. Para aferir da culpa dos ARGUIDOS, terá igualmente que relevar a circunstância de a sociedade ARGUIDA ser credora do Município … num montante que atingiu cerca de € 900.000,00. Os ARGUIDOS tinham a expectativa, todos os meses/ do recebimento dos montantes que lhe eram devidos por esta entidade pública.
XXIX. Não era exigível que ao final de cada mês, sabendo que tinham dinheiro a receber de uma Câmara Municipal, os ARGUIDOS (ou qualquer homem médio) retivessem o dinheiro dos vencimentos dos seus trabalhadores, originando a paralisação da empresa e pondo em causa a subsistência daqueles - não era de todo exigível que os ARGUIDOS agissem de outro modo.
XXX. De igual modo, não pode ser indiferente o facto de os ARGUIDOS terem procedido a pagamentos parciais à Segurança Social, tendo, inclusive, tentado celebrar um acordo para pagamento da dívida a prestações [alíneas v) e y) da matéria de facto provada].
XXXI. O facto de os ARGUIDOS terem renunciado ao cargo de administradores quando constaram não ser já possível resolver os problemas financeiros em que a sociedade Arguida se encontrava tem de ser devidamente ponderado [alínea c) da matéria de facto provada].
XXXII. Como tal, verificando-se a inexigibilidade de outra conduta por parte dos ARGUIDOS e existindo um perigo actual para interesses constitucionalmente protegidos, deverá ter aqui aplicação o artigo 35.° do CP, nomeadamente o seu n.° 2, determinando-se a dispensa de pena ou a atenuação especial da pena aos ARGUIDOS.
XXXIII. Ao excluir-se a aplicação das causas de exclusão da ilicitude e da culpa aos casos em que os gerentes, não podendo cumprir as duas obrigações em concurso, procedem ao pagamento dos salários dos trabalhadores/ em detrimento do pagamento das contribuições à Segurança Social, como faz o Tribunal a quo, cria-se uma norma inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência, do princípio da igualdade e da proporcionalidade, previstos nos artigos 32.°, n.° 2, 13.° e 18.°, n.° 2, da CRP, respectivamente, violando igualmente o artigo 6.°, n.° 2, 14.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
XXXIV. Aliás, a própria norma constante do artigo 107.°, n.° l, do RGIT, que criminaliza a não entrega das contribuições à Segurança Social, padece de inconstitucionalidade, por violação do artigo 18.°, n.° 2, da CRP, já que passou a exigir-se para preenchimento do tipo apenas a não entrega das quotizações e não já a apropriação.
XXXV. Por fim, e em qualquer caso, a situação vivida pelos ARGUIDOS deveria ter sido devidamente considerada na fixação da medida da pena, demonstrando-se demasiado gravosas as penas de prisão, ainda que suspensas na sua execução, aplicadas aos ARGUIDOS B… e C….

Na resposta, o MºPº defendeu a improcedência do recurso, considerando que a sentença recorrida não merecia qualquer reparo, quer em termos de facto quer em termos de direito, e que, por isso, devia ser mantida nos seus precisos termos.
O recurso foi admitido.
Nesta Relação, a Exmª Srª PGA emitiu parecer no qual se manifestou no mesmo sentido, acompanhando os argumentos expendidos na resposta ao recurso, e acrescentando apenas o entendimento de não poder colher a pretensão dos arguidos em ver a exclusão da ilicitude afastada por força do conflito de deveres com que se confrontaram, nem haver qualquer inconstitucionalidade do crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., tendo os recorrentes apresentado resposta na qual reiteram o teor das alegações produzidas no recurso, nomeadamente quanto à relevância da especificação do destino primordial que foi dado aos escassos recursos financeiros da sociedade recorrente para a ponderação da verificação das causa de exclusão da ilicitude ou da culpa que invocaram e quanto à inconstitucionalidade da interpretação da norma que as exclui à partida e que considera tratar-se de um entendimento cego e distante da realidade.
Colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre decidir.

2.Fundamentação
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

a) A arguida D…, SA., constitui uma sociedade anónima, titular do NIPC ……….., situando-se a sua sede, desde 2005, na …, n° …., .°, em Vila Nova de Gaia, tendo como objecto social a “instalação e gestão de centrais de recepção e monitorização de alarmes, a vigilância de bens móveis e imóveis e o controle de acessos de pessoas e bens, o transporte, a guarda e a distribuição de valores, a elaboração de estudos de segurança, a formação de pessoal de vigilância, protecção pessoal, prevenção e combate a incêndios e apoio técnico, o fabrico, a comercialização, instalação e manutenção de dispositivos de prevenção e do objecto no pacto social e todas as demais actividades que venham a enquadrar legalmente no sector de segurança privada”.
b) Em 6 de Outubro de 2005, foram nomeados para o conselho de administração da sociedade arguida: o arguido B…, na qualidade de presidente do conselho de administração, o arguido C…, na qualidade de 1° vogal, e o arguido F…, na qualidade de 2° vogal.
c) Os arguidos B…, C… e F… fizeram parte do conselho de administração da sociedade arguida, nas qualidades, respectivamente, de presidente, 1° vogal e 2° vogal, desde 6 de Outubro de 2005 até 30 de Setembro de 2008, data em que renunciaram aos respectivos cargos no conselho de administração.
d) Em consequência, para o biénio de 2008/2009, foi nomeado como administrador único da sociedade arguida G….
e) Desde Outubro de 2005 até Setembro de 2008, na qualidade de membros do conselho de administração da sociedade, eram pelo menos os arguidos C… e B… quem, de comum acordo e em conjugação de esforços, geriam e controlavam de facto a sociedade, designadamente realizando os actos de administração, gestão e direcção da sociedade, decidindo da afectação dos respectivos recursos financeiros ao cumprimento das obrigações correntes, do pagamento dos salários aos trabalhadores, retenção das contribuições devidas e pertencentes à Segurança Social, bem como da tomada de opções e controlo do cumprimento das obrigações fiscais e da Segurança Social.
f) Pelo menos os arguidos C… e B… conheciam as obrigações legais que impedem sobre a sociedade que administravam, em especial no que concerne ao pagamento das remunerações aos trabalhadores da sociedade, designadamente que do total das remunerações pagas deveria ser efectuada declaração ao Centro Regional de segurança Social da área até ao dia 15 de cada mês subsequente ao do pagamento dos salários, acompanhada do valor neles descontado a título de contribuições para a Segurança Social, correspondendo a 11% quando se tratasse de remunerações a trabalhadores dependentes ou 10% sobre as remunerações dos gerentes e 7,8% sobre as remunerações atribuídas a reformados.
g) No âmbito da actividade desenvolvida, a partir de Outubro de 2005, pelo menos os arguidos C… e B…, de comum acordo e em conjugação de esforços, foram decidindo, mediante resolução mensal sucessivamente renovada, não entregar à Segurança Social os montantes que a título de contribuições à Segurança Social descontavam dos salários pagos aos trabalhadores e gerentes da sociedade arguida e de, ao invés, utilizar tais quantias em benefício dos interesses dessa mesma sociedade.
h) Assim, de acordo com tal decisão e com o objectivo referenciado, pelo menos os arguidos C… e B…, em representação da sociedade D…, SA, procederam ou mandaram proceder aos descontos nos salários efectivamente pagos aos trabalhadores da referida sociedade, a título de contribuições devidas à Segurança Social, à taxa de 11%, bem como nas remunerações que efectivamente foram pagas aos membros dos órgãos estatutários a título de cotizações da Segurança Social, à taxa de 10%, das seguintes quantias pecuniárias nos períodos a seguir discriminados, no total de € 623.701,57 €:
o. Outubro / 2005 - 13.736,57 €
b. Novembro/2005 - 28.994.65 €
c. Dezembro/2005 - 52.548,00 €
d. Março / 2006 - 44.743,63 + € 1.030,40 €
e. Abril / 2006 - 54.996.26 + € 600,00 + € 938,46 €
f. Maio /2006 - 56.383,00 + € 600,00 + € 974,32 €
g. Junho / 2006 - 45.859,24+ € 600,00 +€ 686,24 €
h. Julho / 2006 - 32.017,04 + € 1.200,00 + 782.37 €
i. Agosto / 2006 - 24.506,18 + € 600,00 + € 436,66 €
j. Setembro/ 2006 - 22.989,58 + € 600,00 + € 387,24 €
k. Outubro / 2006 - 22.902,20 + € 600,00 + € 381.08 €
l. Novembro/2006 - 21.243,35 + € 600,00 + € 342,69 €
m. Dezembro/2006 - 35.409,85 + € 1.200,00 + € 667,86 €
n. Janeiro / 2007 - 24.212.67 + € 600,00 + € 362,95 €
o. Fevereiro /2007 - 17.199,59 + € 600,00 + € 388,55 €
p. Março / 2007 - 16.728,20 + € 600,00 + € 402,66 €
q. Abril / 2007 - 20.309,13 + € 600,00 + € 347,54 €
r. Maio /2007 - 12.367,82 + € 600,00 + € 352,83 €
s. Junho / 2007 - 13.141,93 + € 900,00 + € 490,00 €
t. Julho / 2007 - 9.987,02 + € 900.00 + € 588,64 €
u. Agosto / 2007 - 5.611.78 + € 600,00 + € 243,28 €
v. Setembro/ 2007 - 5.038,68 + € 600,00 + € 234,00 €
w. Outubro / 2007 + 4.593,72€ + € 600,00 € + 234,00 €
x. Novembro / 2007 - 3.938,06 + € 600,00 € + 191,17€
y. Janeiro / 2008 - 4.785,49 € + 617,46 € + 240,81 €
z. Fevereiro / 2008 - 3.478,45 + € 617,46 + € 240,81,
i) Apesar de terem procedido às deduções das contribuições para a Segurança Social nas remunerações pagas aos trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários da sociedade arguida, os arguidos não procederam à entrega das quantias descontadas em tais remunerações para efeito de contribuições devidas à Segurança Social, nem até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que dizem respeito, nem nos 90 dias subsequentes, utilizando tais quantias em proveito da actividade económica da sociedade arguida.
j) Do mesmo modo, notificados para procederem ao pagamento das quantias supra referidas (e respectivos juros) nos termos do disposto no artigo 105°, n°4, al. b), do RGIT, os arguidos não o fizeram nem nos 30 dias subsequentes, nem até à presente data.
k) Pelo menos os arguidos B… e C… agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que os montantes que retiveram, nos termos acima descritos, pertenciam e eram devidos Estado / Segurança Social e que a este deviam ser entregues.
l) Os arguidos B… e C… agiram de comum acordo e em conjugação de esforços, sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei.
m) Os arguidos B… e C… actuaram num quadro de dificuldades financeiras sofridas pela sociedade arguida naqueles períodos, o que os determinou a canalizar os recursos financeiros para outras despesas inerentes à actividade da sociedade, de modo a manter os postos de trabalho e a laboração normal da empresa.
Das contestações (exclusivamente)
n) Aquando da compra da sociedade, em 19 de Novembro de 2004, os arguidos constataram existir um erro, mormente porquanto as reais condições financeiras da sociedade arguida, tendo esta dificuldades financeiras e volume de dívidas que não esperavam.
o) Constatou-se, nomeadamente, que se encontravam por pagar as contribuições para a Segurança Social, num total de € 310.391,46.
p) Acresce que, aquando da assunção de funções da nova administração da D…, as dívidas de IVA, as dívidas relativas a retenções na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e as dívidas referentes a contribuições para a Segurança Social, todas reportadas ao mês de Outubro de 2004, - no valor de € 71.667,38, € 28.166,41 e € 93.694,01, respectivamente -, também não tinham sido regularizadas pela anterior administração.
q) A D… veio também a aperceber-se de que a sociedade não tinha liquidez para suportar o pagamento integral de todas, sendo certo que a liquidação destas dívidas se demonstrava essencial, sob pena de a sociedade se ver impedida de participar em quaisquer concursos públicos.
r) O sector público representava uma parte importante da facturação anual da D….
s) Assim, foi necessário suportar, através de entradas da accionista maioritária, o pagamento das dívidas relativas ao IVA devido pelos meses de Junho a Setembro de 2004, e, bem assim, proceder à liquidação das contribuições para a Segurança Social dos meses de Agosto a Outubro de 2004, acrescidas dos respectivos juros de mora
t) Procedeu-se, como tal, a pagamentos no valor total de € 587.200,16
u) Com efeito, ainda antes de 30 de Setembro de 2004, haviam sido instaurados diversos processos de contra-ordenação fiscal contra a D…, motivados pelo atraso no pagamento do IVA devido pelos meses de Outubro de 2003 a Julho de 2004.
v) A situação financeira e comercial da sociedade ARGUIDA apresentava-se, assim, como débil, tendo os ARGUIDOS desenvolvido esforço para tentar reabilitar a mesma, inclusivamente conseguiram pagar alguns montantes à Administração Fiscal e à Segurança Social.
w) A crise financeira que se fez sentir afectou fortemente as disponibilidades financeiras da sociedade ARGUIDA.
x) Os clientes começaram a pagar os serviços com muito atraso, principalmente os clientes públicos.
y) Tentaram, inclusive, celebrar um acordo de pagamento a prestações com a Segurança Social.
Outros factos provados
z) A sociedade arguida está sem laborar e sem trabalhadores desde 2008.
aa) Quanto ao arguido C…:
a. É administrador de empresas, auferindo rendimento mensal de cerca de € 4.700,00 ilíquidos;
b. A esposa é professora, auferindo cerca de € 3.000,00 ilíquidos;
c. Tem dois filhos maiores e autónomos;
d. Vive em casa própria, pagando cerca de € 350,00 da prestação mensal do empréstimo contraído para a sua aquisição;
e. Utiliza um automóvel BMW …, de 1991;
f. É licenciado em economia;
g. Tem os antecedentes criminais que constam do CRC de fls. 313 a 316, assim resumidos:
i. Uma condenação, por decisão de 2001, transitada em 23.09.2003, pela prática, em 1996, de um crime de abuso de confiança. p. e p. pelo art. 205.º do CP, na pena de 9 meses de prisão, suspensa por 3 anos e 6 meses;
ii. Uma condenação, por decisão de 2005, transitada em 08.01.2007, pela prática, em 1995, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na pena de 18 meses de prisão, suspensa por 4 anos.
bb) Quanto ao arguido B…:
a É administrador de duas empresas, auferindo rendimento mensal de cerca de € 4.000,00 líquidos;
b. Vive com um filho menor em casa própria, pagando cerca de € 1.700,00 da prestação mensal do empréstimo contraído para a sua aquisição;
c. Utiliza um automóvel BMW … da empresa;
d. É licenciado em gestão de empresas;
e. Tem os antecedentes criminais que constam do CRC de fls. 312, traduzido numa condenação de 2009, pela prática, em 2004, de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 80 dias de multa.
cc) Quanto ao arguido F…:
a. É reformado, auferindo rendimento mensal de cerca de € 3.000,00 ilíquidos;
b. Vive com a esposa em casa própria, pagando cerca de € 450,00 da prestação mensal do empréstimo contraído para a sua aquisição;
c. Tem dois filhos maiores e autónomos
d. Tem um Honda …;
e. É licenciado em ciências militares;
f. Não tem antecedentes criminais.

Como não provados, os seguintes factos:

a) O arguido F… actuou de comum acordo com os demais arguidos no âmbito da actuação objectiva e subjectiva destes referida nos factos provados.
b) O arguido F… agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Das contestações (exclusivamente)
c) Em 30 de Setembro de 2004, a diferença entre o activo e o passivo da D… era negativa num montante de € 35.865,13.
d) As dívidas de IVA eram exactamente de € 265.904,82.
e) O sector público representava exactamente 45% da facturação anual da D….

A convicção do tribunal foi assim explicada:

Als. a) a f), i) e j) dos factos provados:
O tribunal formou a sua convicção desde logo com base na confissão/confirmação de todos os arguidos envolvidos.
Als g), h), k) e l) dos factos provados:
O tribunal a sua convicção quanto a estes factos também com base desde logo nos depoimentos dos arguidos B… e C…, os quais, para além de admitirem a correcção dos valores não entregues (tal como também não foram postos em causa pelo representante da sociedade arguida) e de admitirem que conheciam as obrigações fiscais, acabaram por confirmar, de forma mais ou menos explícita, que optaram por canalizar os recursos financeiros da sociedade para as despesas necessárias à sua laboração (nomeadamente salários dos trabalhadores), em detrimento das obrigações tributárias. Na verdade, o arguido B… assumiu expressamente a opção em causa, ainda que dizendo que sempre foi intenção pagar a dívida, ainda que mais tarde, e que a opção não foi tomada à partida para todos os períodos, mas foi sendo sucessivamente renovada, em face das dificuldades financeiras que a sociedade não ultrapassava, tal como, aliás, se julgou provado. Por sua vez, o arguido C…, apesar de menos assertivo, confirmou que pelo menos sabia que, quando decidia pagar os salários dos trabalhadores e efectuar outras despesas, nomeadamente com veículos, dificilmente teria dinheiro para pagar à segurança social no prazo previsto, o que acaba por traduzir a opção provada e afirmada pelo arguido B…, para mais quando se constata que a omissão de pagamento à segurança social perdurou durante vários meses e de forma sucessiva.
Quanto aos valores, os mesmos resultam dos mapas de fls. 3 a 5 do apenso.
Resta salientar que, como disse expressamente o arguido B…, não resultou da prova que os arguidos tenham decidido, logo em Outubro de 2005, deixar de pagar sempre as contribuições à segurança social, mas antes se verificou, até pela experiência comum, que os arguidos foram decidindo desta forma em cada mês, perante as dificuldades financeiras que iam enfrentando.
Al. m) dos factos provados:
Resultou dos depoimentos coincidentes de todos os arguidos, os quais se mostraram credíveis e convincentes, para mais quando corroborados pelos documentos de fls. 232 a 295.
Als. n) a y) dos factos provados:
Resultaram dos depoimentos dos arguidos B…, C… e representante legal da sociedade arguida, que depuseram, ainda que de forma genérica sobre esta factualidade, mas corroborados pelos documentos de fls. 232 a 295.
Al. z) dos factos provados:
Resultou do depoimento do representante legal da sociedade arguida, sem contradição.
Als. aa) a cc) dos factos provados:
Os factos provados quanto às condições pessoais e económicas dos arguidos e quanto aos antecedentes criminais resultaram das declarações de cada um deles e dos CRC de fls. 185, 311 a 312 e 313 a 316.
Als. a) e b) dos factos não provados:
Não foi produzida qualquer prova neste sentido, sendo antes coincidente a prova (arguidos e testemunhas H…, I…, J…, todas trabalhadoras da sociedade arguida) no sentido de que o arguido F… estava apenas ligado, na prática, à área operacional e de formação, nada decidindo ou sabendo ao nível da administração da empresa.
Als. c) e e) dos factos não provados:
Apesar de algo irrelevante, não foi produzida prova desta exacta factualidade.

3. O Direito
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[2], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[3]
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, são as seguintes as questões suscitadas:
- erro de julgamento;
- verificação de causas de exclusão da ilicitude e da culpa;
- violação dos princípios da presunção de inocência, da igualdade e da proporcionalidade;
- inconstitucionalidade do art. 107º nº 1 do RGIT por não exigir que tenha havido apropriação;
- medida das penas.

3.1. Os recorrentes consideram que a prova produzida não foi devidamente ponderada e que, por isso, foi violado o art. 127º do C.P.P. Em concreto, defendem, por um lado, que a al. m) deve ser alterada de forma a consignar que as despesas para as quais os recursos financeiros foram canalizados foram “essencialmente vencimentos dos trabalhadores”, uma vez que estas são as despesas essenciais inerentes ao tipo de actividade desenvolvida pela sociedade recorrente, conforme foi declarado pelos recorrentes B… e C…; e, por outro, que existem factos que consideram relevantes para a aferição da ilicitude e da culpa da conduta dos recorrentes, especificamente a existência da elevada dívida do Município … para com a sociedade recorrente, com cujo pagamento contavam e que, não tendo sido efectuado, condicionou fortemente a possibilidade de cumprimento atempado das suas obrigações para com a Segurança Social, que resultaram das declarações prestadas pelos referidos recorrentes, do depoimento da testemunha E… e da certidão emitida pelo Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 4 e junta com a contestação, mas que, não tendo ficado a constar da decisão da matéria de facto, a ela devem ser aditados.

Tendo os recorrentes invocado o erro de julgamento e cumprido os ónus de especificação aludidos nos nºs 3 e 4 do art. 412º do C.P.P., vamos proceder à análise das objecções que apontaram à forma como foi decidida a matéria de facto em face da prova produzida.
Começando pela al. m), verificamos que a discordância dos recorrentes se cinge à concretização do destino principal que foi dado aos recursos financeiros de que a sociedade foi dispondo de modo a que fique consignado que as despesas inerentes à sua actividade para que foram canalizados foram essencialmente os vencimentos dos trabalhadores. Na motivação da decisão de facto refere-se que a prova da matéria vertida na aludida al. “resultou dos depoimentos coincidentes de todos os arguidos, os quais se mostraram credíveis e convincentes, para mais quando corroborados pelos documentos de fls. 232 a 295”. Ouvida a gravação da prova, verificamos que apenas os recorrentes B… e C… se pronunciaram a respeito da concreta afectação que foi dada aos recursos da sociedade, declarando o primeiro que optaram por cumprir com os trabalhadores, sendo os vencimentos destes e não questões de fornecedores que essencialmente estão em causa no ramo em questão, o que o segundo também confirmou, referindo que a sociedade, para além dos vencimentos do pessoal, tinha muito poucas despesas de funcionamento, nomeadamente com circulação de pessoas e com automóveis, sendo que até a substituição de fardas quase não era feita. Também a testemunha I…, que trabalhou para a sociedade durante alguns meses no ano de 2005, referiu que os salários aos trabalhadores foram sempre pagos, não tendo sido produzida qualquer prova em contrário. Assim, e embora a afectação dos recursos financeiros ao pagamento dos vencimentos dos trabalhadores já esteja implícita nos objectivos que determinaram aqueles recorrentes a canalizar os recursos financeiros para outras despesas inerentes à actividade da sociedade porque o foram de modo a manter os postos de trabalho e a laboração normal da empresa (manutenção e laboração estas que normalmente implicam o cumprimento das obrigações de natureza salarial das entidades patronais para com os respectivos trabalhadores) concede-se que a concretização pretendida é a que melhor traduz a prova relevante que acerca desta matéria foi produzida, razão pela qual a al. m) deverá ser alterada de forma a contemplá-la, ficando com a seguinte redacção:
“Os arguidos B… e C… actuaram num quadro de dificuldades financeiras sofridas pela sociedade arguida naqueles períodos, o que os determinou a canalizar os recursos financeiros para outras despesas inerentes à actividade da sociedade, essencialmente vencimentos dos trabalhadores, de modo a manter os postos de trabalho e a laboração normal da empresa.”
Quanto aos factos que os recorrentes consideram ter sido provados e que, como tal, pretendem sejam aditados à decisão da matéria de facto de forma a melhor retratar o contexto de graves dificuldades financeiras em que agiram, verificamos que, da solicitação feita pela administração da sociedade recorrente e da certidão que, na sua sequência, foi emitida pelo Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 4 (documentos juntos com a contestação e que constam a fls. 283 e 284-289, respectivamente), resulta que esta entidade procedeu à penhora de créditos que aquela sociedade detinha sobre diversos clientes, figurando entre eles seis créditos, no valor total de 870.661,58€, sobre o Município …, que foram pagos em datas situadas entre 15/4/08 e 23/12/08. Ambos os recorrentes B… e C… aludiram à existência de créditos avultados, em particular sobre a …, que tiveram reflexos na capacidade financeira da sociedade recorrente: o primeiro referiu a existência de problemas com as entidades públicas, nomeadamente a dívida daquela autarquia, que ascendia a cerca de um milhão de euros, e que os levaram a optar por atrasar os pagamentos às entidades fiscais, enquanto que o segundo afirmou que a … foi o grande cancro que minou todo o problema daquela sociedade e referiu os vários esforços que foram feitos no sentido de conseguir que essa dívida fosse paga, sempre com a expectativa de que tal viesse a suceder e assim conseguissem disponibilidade financeira que lhes permitisse resolverem o problema. Também a testemunha E… referiu ter ouvido na altura falar na existência de vários créditos, nomeadamente sobre a … que, através dos cemitérios, devia uma soma exorbitante de dinheiro.
Relativamente a esta situação, apenas foi dado como assente o que ficou a constar da al. x) dos factos provados. Porque se trata de factos que os recorrentes já haviam alegado em sede de contestação e se mostram confirmados por documentos e bem assim declarações e depoimento que foram considerados credíveis, revestindo-se de interesse na medida em que fornecem um quadro mais preciso do circunstancialismo que rodeou a actuação dos recorrentes, consideramos que deve ser alterada a redacção da referida alínea, que passará a ser a seguinte:
“Os clientes começaram a pagar os serviços com muito atraso, principalmente os clientes públicos e especificamente o Município …, cuja dívida para com a sociedade arguida ascendia, pelo menos, a 863.661,58€, tendo sido este um dos créditos desta sociedade que veio a ser penhorado pelo Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 4 e foi sendo pago entre Abril e Dezembro de 2008.”
Aceita-se igualmente, porque perfeitamente plausível, que tenham sido envidados esforços no sentido de conseguir o pagamento das dívidas, e em particular do da …, e que houvesse a expectativa de que o respectivo pagamento viesse a ocorrer – assim como qualquer credor tem a expectativa de que o seu crédito lhe seja pago -, tal como foi referido pelo recorrente C…; outrotanto já não quanto à confiança que os recorrentes tenham tido, no momento de cada uma das resoluções referidas na al. g), de que se viesse a concretizar o recebimento dos montantes devidos por aquela autarquia, permitindo-lhes dessa forma efectuarem o pagamento das contribuições devidas à Segurança Social. Pessoas experientes na gestão de empresas, como é o caso dos recorrentes B… e C…, seguramente sabedores das, públicas e notórias, crónicas dificuldades financeiras que a … já há muitos anos vem atravessando, e vendo goradas as sucessivas diligências que encetaram para conseguir o pagamento dos montantes em dívida, dificilmente se concebe que ao longo de um período de mais de 2 anos, tenham confiado que, de um momento para o outro, esse pagamento viesse a ocorrer. Assim, consideramos que apenas deve ser complementada a al. y) dos factos provados, passando a ficar com a seguinte redacção:
“Os recorrentes efectuaram, sem resultado, diversas diligências junto do Município … no sentido de obter o pagamento dos montantes em dívida, e tentaram, inclusive, celebrar um acordo de pagamento a prestações com a Segurança Social.”

3.2. Estribados na pretendida alteração da decisão de facto, e bem assim nos factos descritos nas als. m) a y) dos factos provados, os recorrentes consideram que o tribunal afastou indevidamente, sem apreciar os factos concretos que as revelam, a existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, limitando-se a seguir a linha jurisprudencial que vem sendo defendida, a seu ver mal, pelos tribunais superiores, nomeadamente quando está em causa o pagamento dos salários dos trabalhadores e dos custos essenciais à manutenção da laboração da empresa em detrimento do pagamento das contribuições à segurança social. O circunstancialismo verificado no caso - porque se depararam com uma situação financeira muito diferente da que lhes tinha sido inicialmente apresentada e foi necessário proceder ao pagamento de contribuições e impostos anteriores ao período em que assumiram a administração da sociedade recorrente, porque a Câmara Municipal …, contrariamente ao que contavam, não procedeu ao pagamento atempado das avultadas dívidas que tinha para com aquela, porque foi necessário, para manter os postos de trabalho e evitar todas as consequências nefastas que adviriam da paralisação da actividade da empresa, canalizar os recursos financeiros disponíveis para o pagamento dos vencimentos dos trabalhadores, e porque esses recursos não chegavam para cumprir essa obrigação e a de pagar as contribuições à segurança social, devendo a primeira prevalecer sobre a segunda e não sendo exigível que os recorrentes agissem de outro modo – enquadra-se, no seu entender, no conflito de deveres previsto no art. 36º do C. Penal, que exclui a ilicitude, com a consequente absolvição em termos criminais e civis, ou, assim se não entendendo, no estado de necessidade desculpante previsto no nº 2 do art. 35º do mesmo diploma que justifica a dispensa da pena ou a sua atenuação especial.

No que respeita ao conflito de deveres, dispõe o nº 1 do art. 36º do C. Penal, na parte que ora nos interessa, que “Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos (…), satisfizer dever (…) de valor igual ou superior ao do dever (…) que sacrificar.”
Neste preceito contemplam-se as hipóteses em que o agente é colocado perante o dilema de, na impossibilidade de cumprimento tempestivo ou simultâneo de deveres que sobre ele impendem, ter de optar pelo cumprimento de um deles, sacrificando o outro. O agente agirá a coberto desta causa de justificação optando pelo cumprimento do dever mais valioso, no caso de ser possível hierarquizar os deveres em confronto por referência aos bens jurídicos protegidos e à importância que aqueles deveres assumem para a pessoa que vinculam. Nos casos em que não é possível estabelecer essa hierarquização, perante a colisão de deveres de igual valor, o agente pode eleger o cumprimento de qualquer um desses deveres e, cumprindo-o, fica afastada a ilicitude da sua conduta ao preterir o outro dever conflituante. Pois, “quando a ordem jurídica exige o cumprimento de vários deveres incompatíveis, não dando ao respectivo destinatário critério de escolha, tem de contentar-se com o cumprimento de qualquer deles”[4].
No caso, os recorrentes viram-se “divididos” entre o dever de entregar à Segurança Social as quantias descontadas nos salários dos trabalhadores das sociedade recorrente e o dever de manter esta em actividade, pagando as suas despesas correntes de funcionamento, mormente aqueles salários.
A superioridade do primeiro daqueles deveres parece-nos evidente, como vem sendo reiteradamente afirmado, de forma que julgamos uniforme, pela jurisprudência dos tribunais superiores aos quais, de forma recorrente, a questão tem vindo a ser colocada[5].
Por um lado, as obrigações fiscais têm natureza legal, enquanto que as obrigações para com trabalhadores (ou fornecedores) têm natureza contratual; por outro, o incumprimento das primeiras pode gerar responsabilidade contra-ordenacional e/ou criminal, enquanto que o mero incumprimento das segundas pode gerar apenas responsabilidade civil; por outro, ainda, no primeiro caso estão em causa interesses de natureza pública, enquanto que no segundo interesses essencialmente de natureza privada. Além disso, a componente preponderante do dever que os recorrentes optaram por satisfazer (assegurar a sobrevivência das sociedade recorrente, finalidade que dependia em grande medida do pagamento dos salários dos trabalhadores) confere-lhe um cariz mais próprio do que alheio, pelo que também por essa perspectiva resultaria diminuído no confronto com o dever preterido, sendo certo que o conflito de deveres relevante é um conflito entre deveres para com os outros[6].
Sendo, pois, de menor valor o dever que os recorrentes optaram por cumprir, temos de concluir que a ilicitude da sua conduta não é afastada pelo nº 1 do art. 36º.

A figura jurídica do estado de necessidade vem contemplada nos arts. 34º e 35º do C. Penal, no primeiro revestindo a natureza de um verdadeiro direito de necessidade e constituindo causa de exclusão da ilicitude, e no segundo como mera causa de exclusão ou diminuição da culpa.
Centraremos a nossa atenção naquele art. 35º, que regula o estado de necessidade desculpante invocado pelos recorrentes[7]. De acordo com o nº 1 deste preceito, “Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.”
Esta norma reporta-se unicamente à defesa de bens jurídicos eminentemente pessoais, do agente ou de terceiro, e exige que o perigo que ameaça bens dessa natureza seja actual, que a conduta adoptada pelo agente seja o único modo de o remover, e que, segundo as circunstâncias do caso, não seja razoável exigir-lhe comportamento diferente.
Para os casos em que não esteja em causa nenhum bem jurídico daquela natureza, rege o nº 2 do mesmo preceito: “Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado de pena.”.
Ou seja, a defesa de bens ou interesses jurídicos que não os indicados no nº 1, ainda que verificados os requisitos exigidos por esta norma, não afasta a culpa do agente, mas apenas a mitiga, constituindo mera circunstância passível de atenuar especialmente a pena ou, em casos excepcionais, fundamento para que esta seja dispensada.
No caso de que nos ocupamos é manifesto que a actuação dos recorrentes teve em vista a defesa de interesses de natureza patrimonial/social, como resulta claramente do que foi considerado como provado na al. m). Razão pela qual, desde logo, não tem aplicação o nº 1 do art. 35º.
Mas, ainda que passível de cair no âmbito da previsão do nº 2 deste preceito, necessário seria que também se verificassem os demais requisitos exigidos pelo nº 1, ou seja, que a conduta adoptada pelos recorrentes B… e C… para remover o perigo de insolvência que ameaçava a sobrevivência da sociedade recorrente de que eram administradores e a manutenção dos postos de trabalho dos respectivos trabalhadores fosse a única viável e capaz de remover aquele perigo, e que, naquelas circunstâncias, não lhe fosse razoavelmente exigível outro comportamento. Não resulta da matéria de facto provada que não houvesse ao alcance dos recorrentes outras vias para conseguir a remoção daquele perigo, embora seja certo e seguro que os sucessivos “desvios” para os fins acima indicados, sempre os mesmos, das quantias devidas à Segurança Social se apresentava, de entre as possíveis, como a mais fácil, uma vez que não demandava nenhum esforço ou sacrifício imediato na medida em que os montantes utilizados já se encontravam na disponibilidade dos recorrentes (bastando-lhes proceder a meras operações contabilísticas, deduzindo aos salários dos trabalhadores o valor das contribuições devidas e imputando no pagamento de outras dívidas – de despesas, sobretudo de salários, relacionadas com o funcionamento da sociedade recorrente - as verbas assim descontadas). Além de que, não estando afastada a possibilidade de recurso a outros meios lícitos para alcançar o mesmo fim, é evidente que era exigível aos recorrentes outro comportamento que não a opção, fácil, pela prática de comportamentos delituosos. Mais que não fosse o próprio reconhecimento de que, uma sociedade que, anos a fio, vai sendo gerida à espera de Godot ( no caso, os créditos que tardam em ser satisfeitos ), sem encontrar nem procurar outra alternativa de sobrevivência senão a de ir deixando de cumprir as suas obrigações fiscais ou para-fiscais – e assim onerando o Estado com os riscos inerentes à actividade de empresário -, não é viável e o seu destino há-de passar, mais cedo ou mais tarde, muito provavelmente, pelo fecho das portas[8]. Uma verdadeira “crónica de uma morte anunciada”, pois o arrastar da situação, o adiamento da resolução dos problemas que, pela sua persistência, não são meramente conjunturais, sem que se dê um milagre, só vai implicar, fatalmente, que eles se vão avolumando e agravando e que, no entretanto, os custos dessa situação se vão repercutindo na comunidade em geral, que lhes é alheia…
Em conclusão, não há lugar ao afastamento da culpa dos recorrentes por, desde logo, não estarem em causa bens jurídicos eminentemente pessoais, e também não há lugar à dispensa da pena nem à sua atenuação especial por não se mostrarem preenchidos os requisitos de que também o nº 2 do art. 35º as faz depender. Os motivos que estiveram subjacentes à conduta ilícita dos recorrentes podem valer, apenas, como mera circunstância atenuante de carácter geral (cfr. al. c) do nº 2 do art. 71º) e como tal devem ser sopesados, pois é de toda a justiça que se confira tratamento diferenciado ao agente que utiliza a prestação tributária/contributiva para prover ao cumprimento dos deveres sociais e/ou contratuais da sua empresa por contraponto àquele que as desvia para satisfazer necessidades de natureza egoísta.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.

3.3. Os recorrentes consideram que a interpretação que o tribunal recorrido fez da norma do art. 107º nº 1 do RGIT, afastando a aplicação das causas de exclusão da ilicitude e da culpa nos casos em que os gerentes, não podendo cumprir as duas obrigações em concurso, optam pelo pagamento dos salários dos trabalhadores em detrimento do pagamento das contribuições à Segurança Social, é inconstitucional por violar os princípios da presunção de inocência, da igualdade e da proporcionalidade, previstos nos arts. 32º nº 2, 13º e 18º nº 2 da CRP, assim como os arts. 6º nº 2 e 14º da CEDH.

A invocada violação dos princípios acima aludidos teria pertinência caso a decisão recorrida, e bem assim a orientação jurisprudencial em que se estriba, recusasse a aplicabilidade das causas de exclusão da ilicitude e da culpa aos crimes de natureza fiscal, e, nomeadamente, ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, sem mais e quaisquer que fossem os contornos do caso concreto. Mas, obviamente, não é assim. De facto, o que se sustenta é que a indisponibilidade de recursos para efectuar o cumprimento simultâneo dos deveres de pagar impostos/contribuições e de pagar salários e/ou dívidas decorrentes do funcionamento das empresas, e a afectação dos mesmos em desfavor do primeiro, não preenche, pelas razões que indicámos no ponto anterior, os pressupostos da previsão legal de acordo com a qual tais causas se encontram conformadas – exigindo-se, quanto mais, a prova de todos os elementos típicos da infracção em apreço[9].
Nem a presunção de inocência, nem a proibição do excesso resultam beliscadas, e tão pouco se configura, com a interpretação que a jurisprudência vem fazendo das normas envolvidas, um tratamento discriminatório. Discriminação de sinal contrário haveria, sim, se se tratassem com injustificada benevolência comportamentos que a lei qualifica de ilícitos criminais, desculpabilizando, fora do quadro legal vigente, os respectivos agentes que, perante dificuldades financeiras, optassem por cumprir os seus deveres contratuais/sociais em detrimento das suas obrigações fiscais/contributivas, por confronto com o que é exigido aos demais, empresas e respectivos administradores/gerentes, que, muitas vezes contra ventos e marés, se vão denodadamente esforçando por as cumprir.

3.4. Os recorrentes consideram, ainda, que a norma do art. 107º nº 1 do RGIT padece de inconstitucionalidade, por violação do art. 18º nº 2 da C.R.P., por o preenchimento do tipo já não exigir a apropriação, bastando a não entrega das quotizações.

Retomamos aqui, no essencial, tudo quanto, a propósito desta mesma questão, já tivemos ocasião de referir em recurso[10] em que ela também nos foi colocada:

A questão relativa à apropriação como elemento dos crimes de abuso de confiança previstos na lei tributária, agudizada pelas alterações legislativas que a formulação do tipo matricial foi sofrendo ao longo dos anos, não é nova, tendo sido objecto de apreciação quer na doutrina, quer em várias decisões jurisprudenciais.

No RJIFNA aprovado pelo DL nº 20-A/90 de 15/1, vinha previsto, no nº 1 do seu art. 24º, como crime de abuso de confiança a conduta de “quem, com intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida, e estando legalmente obrigado a entregar ao credor tributário a prestação tributária que nos termos da lei deduziu, não efectuar tal entrega total ou parcialmente”.
Com o DL nº 394/93 de 24/11, esta redacção foi alterada, passando a ser a seguinte: “quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário”.
A previsão destas normas era extensiva à não entrega ou apropriação de prestações contributivas da segurança social deduzidas nos salários ou vencimentos, face ao disposto no respectivo nº 3 e no art. 6º do DL nº 103/80 de 9/5.
Fazendo a análise comparativa daquelas duas redacções, considerava-se, então[11], que, durante a vigência da primeira, “bastava a “não entrega total ou parcial” de cada prestação tributária efectivamente deduzida ou retida pelo sujeito passivo (comissão por omissão), com intenção de obter para si ou para outrem “vantagem patrimonial indevida”, para se prefigurar este tipo legal de crime”, não sendo necessário que o agente, fizesse “sua a coisa, que disponha dela como se fosse própria, mas apenas que não a entregue estando juridicamente obrigado a fazê-lo”, enquanto que, a partir da segunda, passou a ser necessária “a apropriação de cada uma daquelas quantias, com integração na esfera patrimonial do sujeito passivo ou do substituto tributário (comissão por acção)”, podendo tal apropriação “traduzir-se na simples fruição ou na disposição pelo devedor de cada uma das prestações tributárias deduzidas ou retidas (IRS ou IRC) ou liquidadas com obrigação de as entregar ao credor tributário (IVA)”.
O DL nº 140/95 de 14/6 veio aditar ao RJIFNA um capítulo no qual foram autonomizados os denominados crimes contra a segurança social, entre eles o crime de abuso de confiança em relação à segurança social, previsto no art. 27º-B, no qual se pune a conduta de “as entidades empregadoras que, tendo deduzido o valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entregarem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, no período de 90 dias, do mesmo se apropriando”.
Com a entrada em vigor do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001 de 5/6, nova reformulação foi introduzida na previsão legal destes dois tipos de ilícito que passaram a ter as seguintes redacções, que - excepção feita a uma alteração introduzida a um deles pela Lei nº 64-A/2008 de 31/12 que para aqui não interessa - ainda se mantêm: o art. 105º, “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar (…)”, e o art. 107º, “As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entregarem[12], total ou parcialmente, às instituições de segurança social (...)”.
Pese embora a reaproximação ao tipo inicial previsto no RJIFNA, e a consequente distanciação do crime de abuso de confiança previsto no art. 205º do C. Penal, o elemento apropriativo continua presente nos crimes de abuso de confiança tributários.
“Efectivamente, tornar-se-ia inconcebível que se falasse em «abuso de confiança» quando a prestação tributária não fosse recebida, consequentemente não fosse detida nem retida pelo sujeito passivo da relação jurídica tributária. Seria incongruente falar-se então de uso indevido, i é, de abuso por quem nunca chegou a ser depositário da prestação.
Continua, pois, a haver certa semelhança com o abuso de confiança previsto no Código Penal na medida em que o abuso de confiança fiscal é também um delito especial concretamente na forma de delito de dever, pelo que o seu agente só pode ser aquele que detém uma qualificação determinada resultante da relação de confiança que o liga àquilo que recebeu a título não translativo da propriedade e que fundamenta o especial dever de entrega à Administração Fiscal.
Pode, assim, dizer-se que face à estatuição do art.º 105º/1 do RGIT apesar do tipo ter uma estrutura meramente formal dispensando o elemento «apropriação», logo a inversão do título de posse, ele não prescinde do recebimento da prestação pelo seu agente.
O crime ou tipo de crime de abuso de confiança fiscal está contido no n.º1 do art.º 105º do RGIT. Trata-se de crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida. O art.º 105/1 não permite outra interpretação.”[13]
“I - Muito embora, no actual RGIT (art. 105º) – e ao contrário do que sucedia com o anterior RJIFNA (art. 24º) – não se faça expressa referência à apropriação, todavia, ela está contida (pelo menos de forma implícita) no espírito do texto normativo, sendo ela uma consequência lógica do desvio do destino das prestações tributárias retidas.
II – E nem se diga que a apropriação de que antes falava o legislador visava tão só o enriquecimento do património pessoal do agente e já não o desvio das prestações para fins de gestão da empresa (pagamento a fornecedores ou empregados), pois a lei não faz essa distinção, além de que a ideia fulcral do crime de abuso de confiança, seja ele fiscal ou não, é sempre a de que se dá a valores licitamente recebidos um rumo diferente daquele a que se está obrigado.”[14]
Considerações que, obviamente têm plena aplicação, mutatis mutandis, também quanto ao crime de abuso de confiança contra a segurança social.
E só uma leitura nestes termos se mostra conforme com a Constituição, nomeadamente com os arts. 18º e 27º (…), como repetidamente tem sido considerado em diversas decisões dos nossos tribunais superiores (e, bem assim, do TC), como aquelas a que pertencem os excertos que, pela sua inteira pertinência, adiante se deixam transcritos:
“V - No RJIFNA, na redacção conferida ao DL 20-A/90, de 15-01, pelo DL 394/93, de 24-11, exigia-se para configuração do crime de abuso de confiança fiscal a apropriação indevida por inversão do título da posse, com censurável animus rem sibi habendi; no RGIT, aprovado pela Lei 15/01, de 05-06, basta a não entrega, mas subjacentemente, embora a tónica se tenha deslocado, na lei nova, para a simples não entrega, continua a estar presente a ideia de apropriação, pois que quem recebe das mãos de terceiro prestações tributárias, ficando investido na qualidade de seu depositário, e não as entrega, em via de regra é porque delas se apropriou, conferindo-lhes um destino não legal.”[15]
“I - Da interpretação do tipo legal de crime previsto no art. 107.º do RGIT emergem duas orientações de sinal distinto: a primeira, de génese jurisprudencial, considera que a integração dos elementos constitutivos tem implícita e pressupõe a apropriação; a segunda, doutrinal, entende que ali se consagra liminarmente a “não entrega” como único elemento do tipo, elegendo-se um crime de omissão.
II - Só com o entendimento de que a apropriação continua a ser um elemento essencial do tipo, tal como na anterior tipificação constante do RJIFNA, se reconduz aquele a uma exigência de dignidade penal, se delimita a fronteira entre o axiologicamente neutro e o relevante e carente de tutela em termos penais, e se pode afirmar, sem reservas, a constitucionalidade do preceito.
III - Entendimento esse – de que a infracção prevista no art. 27.º-B do RJIFNA está actualmente prevista no art. 107.º do RGIT numa perspectiva de continuidade – já expresso por este STJ, em acórdão de 23-04-2003: «Se bem interpretarmos o que neles se contém, chegaremos sem esforço à conclusão de que as diferenças são apenas literais que não de fundo, tudo não passando de uma mera diferença de redacção, sem qualquer significado essencial. É certo que no anterior regime o acento tónico da conduta do agente recai na apropriação, enquanto que no actual se não utiliza essa expressão. Todavia, o regime continua a ser o mesmo. Com efeito, embora se não faça referência expressa à apropriação, ela está contida no espírito do texto, pois se o agente não entrega à administração tributária as prestações que deduziu e era obrigado a entregar, é porque se apropriou delas, dando-lhes assim um destino diferente daquele que lhe era imposto por lei» (cf., no mesmo sentido, Ac. do STJ de 31-05-2006).
IV - Assim, o tipo legal matizado no art. 107.º do RGIT não padece de inconstitucionalidade, por ofensa do princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade, desde que interpretado nos termos referidos.”[16]
“X - Na linha da jurisprudência do TC, também se entende que não existe qualquer vício de inconstitucionalidade no crime de abuso de confiança fiscal. Não está em causa aqui, simplesmente, a aplicação de uma pena que pode ser de prisão, devido ao facto de alguém não cumprir as suas dívidas. Toda a arquitectura dos preceitos que prevêem os crimes de abuso de confiança fiscal ou contra a segurança social, inclui, para além disso, o elemento apropriação, melhor, um dolo de apropriação de certos montantes, em relação aos quais tudo se passa como se o agente fosse depositário.
(…) Entendemos que a eliminação da previsão actual do elemento apropriação não fez mais do que clarificar o entendimento da lei, enveredando pela interpretação do artº 27º-B. do RGIFNA, nos termos da qual, aquele segmento não constituía um elemento típico do crime, com verdadeira autonomia (cf. v.g. Ac. deste STJ de 26/1/2000, Pº 815/99, 3ª Secção).
Na verdade, não se vê como é que é possível receber um montante monetário, como depositário, para lhe dar um destino, e, em prejuízo desse destinatário, afectar o montante a outra finalidade, sabendo que se está a beneficiar ilegitimamente outrem (ou o próprio), se se actuasse fora de um quadro em que o aludido depositário faz seu o montante recebido. O agente tem forçosamente que agir em relação a esse montante como se fosse coisa sua, e ainda que por escasso tempo, logo que ultrapassada a data estipulada para a respectiva entrega. Isto independentemente de fazer tenções de vir a repor as quantias não entregues, ou de, das mesmas, não ter tirado proveito para si.
A expressão final “do mesmo se apropriando”, que se vê na previsão do artº 27º-B do RGIFNA, é pois, a nosso ver, a síntese conclusiva do comportamento antes descrito.
Esta interpretação vê-se aliás reforçada, pela nova previsão do crime, no artº 107º do RGIT. Nova previsão mais clarificadora que inovadora, e que vem, no fundo, tornar clara a falta de completa coincidência entre este crime e o crime de abuso de confiança do artº 205º do CP.”[17]
“Qualquer dos actuais tipos penais parece prescindir (pelo menos literalmente) dessa apropriação, bastando-se com a “não entrega” de prestação tributária.
Ou, dizendo mais, se os anteriores tipos penais – à luz do regime instituído pelo Dec-Lei nº 394/93, de 24-11 - se construíram à imagem do crime “clássico” do abuso de confiança, os actuais tipos penais parecem afastar-se declaradamente daquela figura clássica, pelo menos literalmente, parecendo prescindir da dita apropriação.
Partindo de duas previsões legais (obrigação de dedução e obrigação de entrega) constrói-se o tipo de ilícito e parte-se para a presunção, pela não entrega, da existência da posse e inversão do título (ou prescinde-se mesmo da sua existência factual, leitura que será permitida). De forma linear: quem tem a obrigação de deduzir e não entregou praticou um crime, independentemente da posse e apropriação.
Ora, permitir que tal ocorra é objectivar a responsabilidade criminal é, depois disso, abrir a porta ao ónus da prova e sua inversão. É permitir presumir factos e culpa. É não distinguir crime de contra-ordenação (v. g. artigo 114º do RGIT).
Obviamente tal leitura contraria os mais elementares princípios de direito penal e atenta contra o edifício constitucional.
Assim, uma leitura da letra do artigo 105º do RGIT que prescinda da apropriação indevida reconduzir-nos-ia à afirmação da sua inconstitucionalidade material. Daí que se concorde com o expendido por Jorge Manuel Monteiro Pereira de que o tipo incriminador não abrange a “não dedução”, a “não liquidação e “o não recebimento por parte do agente”. - In “Despenalização da não entrega da prestação tributária” – O novo nº 4 do artigo 105º do RGIT”. Verbo Jurídico, pag. 5.
No mesmo sentido Isabel Marques da Silva na afirmação de que a prévia dedução ou cobrança da prestação tributária constitui um pressuposto do tipo. - In “Regime Geral das Infracções Tributárias”, pag. 181. Almedina, 2007.
Afirmações que nos permitem concluir que o tipo de ilícito criminal imputado ao arguido deve ser entendido como tipo doloso, com a exigência da possibilidade de reprovação da conduta do arguido a título de conduta dolosa, tendo por base omissão ou omissões reprováveis por o arguido não ter agido, conhecendo e querendo, em conformidade com o dever jurídico, apropriando-se indevidamente de prestação que tinha a obrigação de entregar à administração fiscal.
Assim, da jurisprudência do Tribunal Constitucional que materialmente tem procurado suster a preponderância de argumentos a favor da constitucionalidade do artigo 105º do RGIT e que surge como legitimação material do citado preceito podem retirar-se os seguintes elementos úteis para uma leitura materialmente constitucional do tipo penal em presença [Tomando como modelo o Ac. 640/03 do TC de 20-01-2004 (relator Cons. Mota Pinto), onde está em causa o IVA cobrado, enumeram-se os elementos do tipo, a saber (naquilo que nos interessa)]:
A existência (legal) de uma obrigação de entrega à administração tributária de uma prestação tributária;
A existência de uma prestação tributária deduzida (nos termos legais);
A falta dolosa dessa entrega;
A exclusão do dolo específico e da punibilidade da negligência;
Sendo certo que o obrigado se encontra numa posição ”que poderemos aproximar da do fiel depositário”, reafirma-se que o não cumprimento da obrigação de entrega é elemento do tipo, mas “o que importa para a punibilidade do comportamento é a falta dolosa de entrega da prestação” e a “mera impossibilidade de incumprimento não é elemento do crime de abuso de confiança...” (?) e a não entrega atempada da prestação, tornando possível embora, a instauração do procedimento criminal, vê a punibilidade da conduta dos arguidos dependentes da “apropriação dolosa da referida prestação” – (Ac. 80/00, de 29-11-2000, sendo relatora a Consª. Maria Helena Brito e por referência ao crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social).
Assim, a “apropriação” indevida, melhor dizendo, a “posse” ou “detenção” prévia do quantum da prestação é elemento que continua a fazer parte do tipo de ilícito numa leitura nada literal do preceito, pois que o agente comporta-se relativamente à prestação uti dominus, havendo um momento de inversão do título de posse, sendo a não entrega a manifestação exterior desse momento subjectivo.
Este o sentido material que pode ser dado ao tipo penal em análise face à constante jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido da constitucionalidade do tipo, não obstante a crítica acerba de que foi alvo. - V. g. Manuel da Costa Andrade, “O abuso de confiança fiscal e a insustentável leveza de um acórdão do Tribunal Constitucional”, in RLJ, ano 134, pags. 307-325 e “Direito Penal Económico e Europeu: textos doutrinários”, vol. III, pags. 229-253. Coimbra Editora, 2009.
Serão, assim, elementos do tipo de ilícito em presença: a existência (legal) de uma obrigação de entrega à administração tributária de uma prestação tributária; a existência de uma prestação tributária efectivamente deduzida ou cobrada (nos termos legais); a falta dolosa dessa entrega.”[18]
“O invocado art.º 18/2 da Constituição da República Portuguesa estatui que «A lei só pode restringir direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
O n.º3 do mesmo artigo estatui que «As leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais»
Por esta redacção é unânime a consideração que no transcrito n.º2 se consagra o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso. Princípio este que se desdobra no princípio da adequação (as medidas restritivas devem revelar-se meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei), princípio da exigibilidade (tais medidas devem ainda revelar-se necessárias porque os fins visados não podiam obter-se por outros meios menos gravosos), princípio da proporcionalidade stricto sensu (os meios restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa justa medida, impedindo-se medidas desproporcionadas ou excessivas em relação aos fins obtidos).
Pelo n.º3 fica-se a saber que as leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias devem ser gerais (por se dirigirem a uma generalidade de pessoas) e abstractas (por serem aplicáveis a um conjunto indeterminado de casos). E não ter carácter retroactivo –, o que também está consagrado no art.º 29/1 da Constituição e com o qual se prende o princípio da legalidade previsto no art.º1º/1 do Código Penal.
O art.º 1º do Código Penal consagra o princípio da legalidade, dele decorrendo que para uma conduta humana assumir a característica de infracção criminal torna-se indispensável que coincida formalmente com a descrição feita numa norma legal que preveja, directa ou indirectamente, uma pena.
Seu corolário é o princípio da tipicidade, pelo qual cabe à lei e só a esta especificar quais os factos ou condutas que constituem um crime e quais os pressupostos que justificam a aplicação duma pena. Por isso importa que a sua definição seja tanto quanto possível precisa.
Com função primacialmente garantística impõe-se que só a lei possa delimitar uma função delituosa. Donde a sua consagração constitucional no art.º 29º e a apresentação da lei penal como um sistema fechado, sem possibilidade de aplicação analógica ou extensiva (embora nesta última com indefinição sobre o que ela realmente constitui).
A isto adite-se que é da competência relativa da Assembleia da República a definição dos crimes e penas [art.º 165/1 alínea c)]
No caso o legislador entendeu prescindir no tipo do elemento «apropriação», mas pela caracterização que já fizemos do tipo não se vê que ele padeça de qualquer inconstitucionalidade.
A sua inconstitucionalidade careceria de ser demonstrada. Não basta a gratuita afirmação de que o art.º 105º é inconstitucional; será necessário demonstrar que o legislador violou aqueles princípios constitucionais referidos.
A nosso ver tais princípios não foram violados. Nem os recorrentes demonstram o contrário. A criminalização da não entrega dolosa daquilo que se recebeu a título não translativo da propriedade, mesmo sem a prova da inversão do título de posse, não nos parece que corresponda a qualquer medida discriminatória, desnecessária ou excessiva susceptível de constituir a violação do art.º 18/2 da Constituição da República Portuguesa.”[19]
“A «apropriação» é uma consequência lógica do desvio do destino das prestações tributárias retidas, pelo que, assim entendida, como omissão de entrega dessas prestações a quem de direito, com sua utilização para outros fins. Não se trata apenas da não entrega das prestações tributárias, mas da sua utilização para outros fins, com consciência de que as mesmas eram pertença do Estado.
(…) Não é inconstitucional o artigo 105.º do RGIT, designadamente no sentido de que tal artigo acolhe, como elemento implícito, a exigência de apropriação.”[20]

Tendo presente o que se retira da argumentação expendida nestes arestos[21], concluímos, sem necessidade de mais alongadas considerações, pela não verificação da apontada inconstitucionalidade.

E, porque a apropriação implícita no tipo legal de crime “não tem de ser necessariamente material, podendo ser, como quase sempre é, apenas contabilística” e “verifica-se com a não entrega das contribuições à segurança social e respectiva afectação a finalidades diferentes, por parte da entidade empregadora” [22], estando os recorrentes pessoas singulares perfeitamente cientes do dever de entrega dos montantes que foram descontados aos salários dos trabalhadores da sociedade recorrente a título de contribuições para a segurança social, tendo optado, no exercício das suas funções de administração, por destiná-los a outros fins, também é inquestionável que, conforme já foi demonstrado na decisão recorrida, a sua conduta preenche integralmente a previsão do crime de abuso de confiança contra a segurança social por cuja prática foram condenados.
Assim como também inexiste fundamento para alterar o que foi decidido no que concerne ao pedido cível, matéria relativamente à qual, aliás, os recorrentes não apresentaram qualquer discordância autónoma.

3.5. Finalmente, os recorrentes sustentam que a situação por eles vivida não foi devidamente valorada na fixação da medida das penas e que as penas de prisão, ainda que suspensas na sua execução, aplicadas aos recorrentes B… e C… são demasiado gravosas.

No que concerne à determinação das penas aplicadas aos recorrentes pessoas singulares, únicas que foram alvo de contestação, a decisão recorrida, depois de indicar a moldura abstracta aplicável (prisão de 1 a 5 anos) e de afastar a dispensa e atenuação especial da pena, por se não verificarem os respectivos pressupostos, enunciou, da seguinte forma, as circunstâncias relevantes para o efeito:
No que tange à censura ético-jurídica dirigida aos arguidos, esta radica na modalidade mais intensa do dolo, o directo (art. 14.º, n.º 1, do CP).
Quanto ao grau de ilicitude, este verifica-se consistente, tendo presente o valor consideravelmente elevado referente à conduta mais grave (€ 56.534,72) – ainda que não exceda em grande medida o valor referência da qualificação do crime - o valor muito mais elevado da quantia global penalmente relevante e o período longo em que perdurou a conduta dos arguidos.
Quanto às necessidades de prevenção especial, estas revelam-se não muito elevadas, porquanto os arguidos se mostram integrados familiar, profissional e socialmente, e, em especial, tendo em conta os pagamentos parciais, o esforço desenvolvido para efectuar o pagamento e o quadro de dificuldades financeiras em que os arguidos actuaram. Quanto ao arguido B… verifica-se, ainda, de favorável, a ausência de antecedentes criminais relevantes nesta área de criminalidade, sendo que o mesmo já não sucede quanto ao arguido C…, o que funciona em seu desfavor e como circunstância agravante da pena, na perspectiva de ser exigida uma pena com mais impacto para evitar a prática de novos crimes desta natureza.
Relativamente às necessidades de prevenção geral positiva, as mesmas são consideráveis, atentos os fundamentos supra expostos sobre a penalização destas condutas e sobre a falta de exclusão da ilicitude e da culpa, que aqui se reproduzem.
E, ponderadas que foram, considerou adequadas as penas de 2 anos e 2 meses de prisão e de 3 anos de prisão para os recorrentes B… e C…, respectivamente.
Da leitura do segmento que transcrevemos, verificamos que, contrariamente ao alegado pelos recorrentes, o tribunal recorrido teve em atenção, como devia, o circunstancialismo de graves dificuldades financeiras em que os recorrentes agiram - o mesmo que foi feito constar da matéria de facto provada e que as alterações cuja introdução acima considerámos justificar-se não fazem mais do que concretizar. O qual, aliás, não difere em muito daquele que frequentemente se verifica nas situações subjacentes aos processos-crime instaurados pela prática de ilícitos desta natureza. Mesmo levando em conta o referido contexto, e perante as demais circunstâncias que influem na determinação da medida concreta da pena, mormente as elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir e a necessidade de promover a consciência ética fiscal numa sociedade que ainda não interiorizou devidamente a importância que o pagamento de impostos e tributos afins assume na prossecução de funções fundamentais do Estado ligadas ao bem comum e à correcção das desigualdades e em que os níveis de evasão fiscal se mantêm assaz elevados[23], bem como o elevado valor do prejuízo causado ( art. 13º do RGIT ), as penas que foram fixadas não se mostram excessivas em face da moldura abstracta cabida, não ultrapassando a medida da culpa nem destoando da prática jurisprudencial em casos de contornos semelhantes.
Daí que inexista fundamento para proceder à sua redução, mostrando-se também correcta a suspensão da sua execução e a imposição da condição de pagamento, nos termos decididos e que, neste aspecto em particular, não foram alvo da discordância dos recorrentes.

4. Decisão
Por todo o exposto, e sem prejuízo das alterações à decisão da matéria de facto provada nos termos indicados acima em 3.1., julgam improcedente o recurso e mantêm a sentença recorrida.
Vai cada um dos recorrentes condenado em 4 UC de taxa de justiça.

Porto, 20 de Junho de 2012
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves
Vasco Rui Gonçalves Pinhão Martins de Freitas
___________________
[1] F…, que veio a ser absolvido do crime de abuso de confiança contra a segurança social por cuja prática vinha pronunciado.
[2] (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[3] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[4] cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. II, pág. 93.
[5] cfr., entre muitos outros, os Acs. STJ 13/12/01, proc. nº 01P2448 (“O conflito de deveres que exclui a culpa é, necessariamente, um conflito de deveres para com os outros. Por isso, na actuação dos arguidos, que integraram montantes de IVA liquidados no património da sociedade de que eram sócios gerentes, e os afectaram a outras finalidades, para assegurar a continuação da laboração da empresa, designadamente ao pagamento dos salários dos trabalhadores, não se verifica qualquer conflito de deveres juridicamente relevante; com efeito, um dos deveres conflituantes - o de assegurar o funcionamento do negócio - não é alheio mas próprio (a satisfação do interesse dos trabalhadores é secundária relativamente à daquele interesse próprio prevalente)”); 9/5/02, proc. nº 02P1231 (“Preenchido se mostra, pois, o ilícito penal previsto no art. 24º do RJIFNA. E contra este entendimento não briga o facto - aliás dado como provado - das quantias que o arguido ilicitamente reteve ter sido utilizada no pagamento de salários a trabalhadores ou de créditos a fornecedores. É bem certo que se não fossem feitos os pagamentos aos fornecedores, estes deixariam de entregar as matérias primas que a sociedade transformava e que constituíam a base da sua laboração. É igualmente certo que o pagamento de salários a trabalhadores era algo que se justificava não só de um ponto de vista estritamente legal como humano. Nem assim, porém, se pode falar em conflito de deveres que exclua a ilicitude do facto (art. 36º do C. Penal), desde logo porque a obrigação de entregar os impostos retidos tem natureza legal e o seu incumprimento consubstancia a prática de crime, o que não sucede com as outras obrigações referidas (STJ 15/1/97, CJ-STJ V 1º 190). O interesse protegido pela norma incriminadora em questão é, assim (pelo menos para o nosso legislador, pois que lhe dispensou cobertura penal), superior ao implícito na obrigação de cumprimento de contratos e de pagamento de salários não sendo, assim, razoável - sempre na perspectiva do nosso legislador - impor ao Estado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza do interesse (de terceiros) ameaçado - cfr. neste sentido, isto é, no de que a regra contida no art. 36º do C. Penal deve ser integrada pelo esclarecimento fornecido pelas regras contidas no art. 34º do mesmo diploma, particularmente nas suas alíneas b) e c), o Prof. Cavaleiro de Ferreira, "Lições de Direito Penal, Parte Geral, I", 246/247.”); 10/11/04, proc. nº 0414155 (“(…) levando às últimas consequências a pretendida equiparação entre a obrigação e o desejo de pagar salários e de manter a laboração da empresa e a obrigação de entregar as quantias devidas à Segurança Social, estaria a distorcer-se gravemente as regras do mercado, conhecida que é a forte e por vezes feroz concorrência entre empresas, que determina que nem todas tenham capacidade ou possam continuar a competir. Deste modo, estaria encontrada a «fórmula» que permitiria que algumas empresas, além de evitarem a perseguição criminal pelos crimes fiscais, usufruíssem de inadmissíveis vantagens de concorrência relativamente àquelas que cumprem as suas obrigações.”); 14/12/05, proc. nº 0443829 (“A obrigação de uma empresa de pagar os salários dos trabalhadores e despesas correntes do seu funcionamento não suplanta nem sequer iguala, na hierarquia legal, o dever de pagar os impostos.”); 14/12/05, proc. nº 0541858 (“(…) a manutenção de uma empresa a trabalhar, com ou sem os pagamentos dos trabalhadores em dia, não se sobrepõe ao dever de pagar os impostos” ); 31/5/06, proc. nº 06P1294 (“IX. Invoca-se, com frequência, e os arguidos não escapam a esse conhecido modelo, citando a Prof.ª Fernanda Palma, esta apontando que se revela “ uma tendência da jurisprudência portuguesa para não autonomizar a lógica da desculpa da lógica da justificação e restringir a desculpa, situando-a dentro de limites muito rígidos“ (O Princípio da Desculpa em Direito Penal, Almedina, 221 /222), num tratamento de escasso favor, à margem da rejeição do direito de necessidade, conflito de deveres e até o estado necessidade desculpante. No ilícito fiscal, afirmou Augusto Silva Dias, In Ciência e Técnica Fiscal, n.º 22, Julho de 1990, 18, parafraseando Borgmann, assiste–se a uma situação de ”inevitável conflito”, que produz tendencialmente uma transferência de custos para terceiros que é, em grande parte, responsável pelo crescimento da evasão fiscal; por um lado, os agentes económicos ou aguentam os prejuízos causados por uma concorrência fiscalmente desleal ou têm de seguir-lhe o exemplo; por outro o próprio Estado perante a fuga ao fisco tende a aumentar a pressão fiscal com sacrifício daqueles que aceitam e cumprem as suas obrigações fiscais e daqueles que têm a sua situação tributária sob controlo. Assiste-se, neste domínio, segundo este autor, a uma racionalidade instrumental, como disse Habermas, adversa à realização de valores sociais, como sejam a correcção de injustiças e melhoria das condições de vida, desfavorável à formação de um sólido sentimento de justiça e consciência fiscal –cfr. Rev. citada, pág. 19. A própria comunidade começa a relevar a filosofia do imposto, a atentar no não pagamento, a forma como o é, o número daqueles que a ele se furtam e os inconvenientes comunitários presentes, não só retardando a realização das finalidades colectivas como o encargo a suportar, por eles próprios, ante a indiferença ao pagamento. Não se atenta que a entidade patronal recebe de outrém, de terceiro, aquelas quantias com obrigação de as restituir ao fisco ou à Segurança Social numa posição próxima de fieis depositárias; tais somas não integram o seu património social, com elas não devendo contar–se – não são sua propriedade, provêm de terceiros, por título não translativo de domínio , e não é ou não deve ser por elas , que se recorre ao financiamento salarial ou aquisição de bens e equipamentos sociais -, sendo visível , até , um grave abuso , de consequências incontornáveis, no caso de contributos à Segurança Social em que é flagrante o prejuízo causado ao trabalhador que, não raro, se acha desprovido do direito a benefícios sociais , pela retenção ilegítima de prestações por quem o não devia, apesar do desconto efectuado. De colisão de deveres (art.º 36.º, do CP) não se pode falar, de ordem tal que se situe o de pagamento aos trabalhadores e fornecedores da empresa num patamar superior ao da administração fiscal do Estado, de ceder ou sacrificar ante os interesses daqueles (ambos são importantes) porque a ser assim estava descoberto o processo de as empresas, alegando dificuldades financeiras, mesmo não sendo esse o caso, caindo-se no mais completo arbítrio, se apropriarem do que lhes não cabe, comprometendo os superiores interesses públicos que a arrecadação respectiva visa satisfazer, sendo os trabalhadores, ao fim e ao cabo, as primeiras e imediatas vítimas dessa flagrante ilegalidade, a breve trecho sem protecção social e emprego.”); RP 12/3/03, proc. nº 0210289 (“Não se pode equacionar o problema em sede de conflito de deveres, pela simples razão de que a obrigação legal de entregar as contribuições à Segurança Social é superior ao dever funcional de manter a empresa a funcionar e de pagar os salários aos trabalhadores e as dívidas aos fornecedores (…) levada às últimas consequências, a pretendida equiparação entre a obrigação de pagar salários e a obrigação de entregar as contribuições devidas ao Fisco ou à Segurança Social, implicaria uma grave distorção das regras da concorrência, e, assim, estaria encontrada a “fórmula” que permitiria a algumas empresas, além de evitarem a perseguição criminal pelo crime de abuso de confiança fiscal, usufruírem de vantagens inadmissíveis de concorrência relativamente a outras que cumprem as suas obrigações.”), 5/12/07, proc. nº 0416130 (“(…) temos alguma dificuldade em compreender, partindo das regras de experiência, que algum empresário, que o seja verdadeiramente, não veja como uma obrigação legal ou então de segundo plano, o pagamento de impostos que ele, por si ou através da sua sociedade, retém a terceiros, e que, em contrapartida, considere justificado que em vez de os entregar ao fisco os afecte às necessidades da sua empresa, por mais prementes que estas sejam. A propósito a jurisprudência tem sido praticamente uniforme em entender que no caso dedesvio” – leia-se apropriação ou falta de entrega – dos impostos ou contribuições à segurança social retidas e devidas ao fisco/segurança social para pagamento dos salários ou de fornecedores/credores de uma sociedade, não se verifica, em regra, nenhuma falta de consciência de ilicitude ou causa de exclusão da ilicitude ou da culpa de quem assim actua, porquanto o dever legal de entregar aquelas quantias é superior a estes outros – neste sentido, veja-se por exemplo, o Ac. STJ de 2001/Jun./01 [CJ (S) II/227], Ac. R. P. de 2004/Nov./10 [CJ V/209], 2007/Mai./30, Ac. R. G. de 2002/Nov./11 [CJ V/285], Ac. R. E. de 2005/Abr./19, estando o terceiro, relatado pelo primeiro dos adjuntos, e o último divulgados em www.dgsi.pt. Mais concretamente diremos que não configura qualquer direito de necessidade tipificado no art. 34.º do Código Penal, porquanto não existe nenhuma superioridade na obrigação contratual de pagar os salários ou dívidas societárias em detrimento das obrigações tributárias, as quais, como já referimos, têm natureza legal – veja-se o Ac. R. C. de 2003/Abr./02, divulgado em www.dgsi.pt Não traduz igualmente nenhum estado de necessidade desculpante da previsão do art. 35.º – neste sentido vejam-se os Ac. R. P. de 2002/Mar./06, este em www.dgsi.pt e o Ac. R. C. de 2001/Out./17 [CJ IV/61].
Isso só sucederia se a falta de liquidação dessas obrigações legais fiscais fosse adequada para afastar um perigo actual (qual ???!!!), não removível de outro modo, que ameaçasse a vida, integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, desde que não lhe fosse exigível, segundo as circunstâncias do caso, outro comportamento, o que aqui não sucede. Pelas mesmíssimas razões, também não se pode dizer que existe um conflito de deveres que afaste a ilicitude de tais factos, como permite o art. 36.º do Código Penal, segundo o qual “Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar” – neste sentido o Ac. STJ de 1997/Jan./15, [CJ (S) I/190]”) e 6/1/10, proc. nº 130/03.7IDAVR.P1 (“A tese da aplicabilidade do estado de necessidade (justificante ou desculpante) e do conflito de deveres aos crimes de abuso de confiança fiscal e contra a segurança social, nas situações em que a conduta do agente é motivada pelo intuito de manter a empresa em laboração e de assegurar o pagamento dos salários dos trabalhadores, não tem tido acolhimento jurisprudencial, com base no entendimento de que nesses casos inexiste preponderância do interesse a salvaguardar em relação ao interesse sacrificado, porque o dever de pagar salários e a necessidade de manter a empresa a funcionar não têm superioridade sobre o dever legal de entregar os descontos feitos à Segurança Social, e bem assim por falta de demonstração, nesses casos, de que se esteja perante um perigo actual e não removível de certos bens jurídicos – vida, integridade física, honra ou a liberdade do agente ou de terceiro – e que não fosse razoável exigir comportamento diferente”); RG 14/3/05, proc. nº 131/05-1 (“(…) a partir do momento em que o Estado, que representa a sociedade, decidiu criminalizar a apropriação por parte das entidades empregadoras das importâncias deduzidas nas retribuições a título de contribuições para o regime de Segurança Social, não há dúvida de que para a ordem jurídica, considerada na sua totalidade, o dever de não se apropriar dessas contribuições prevalece sobre o dever das entidades patronais pagarem os salários. (…) De resto, não se pode considerar sequer que os arguidos ao utilizarem as contribuições devidas para pagar salários estejam a agir num estrito cumprimento do dever, devendo notar-se que ao manter postos de trabalho, utilizando dinheiro pertencente à Segurança Social, não só prejudicam o Estado mas também as empresas que cumprem as suas obrigações legais, desvirtuando as regras da livre concorrência.”); RC 25/5/11, proc. nº 472/04.48TAAGD.C1 (“Da prova produzida em sede de audiência de julgamento resulta que os quantitativos devidos a título de quotizações e não entregues à Segurança Social foram canalizados para os factores de produção da sociedade arguida. Ora, conforme foi já analisado, o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social consuma-se com a simples não entrega das quantias devidas[15 - Ac. RP 12.11.2003, www.dgsi.pt], irrelevando o facto de os montantes terem sido utilizados no pagamento de matérias-primas e/ou salários dos trabalhadores. Assim se compreende que seja crime a não entrega desses montantes à Segurança Social Tributária, mas já o não seja o não pagamento de salários aos trabalhadores, tendo de ser assacadas as inerentes responsabilidades no foro laboral. Por sua vez, ainda que os trabalhadores tenham direito à retribuição (art. 58º e ss. da Constituição da República Portuguesa), o certo é que o Estado tem de realizar certos objectivos de realização económica, social e cultural, custeadas pelas receitas fiscais, que acaba por se afirmar superior. Por outro lado, existe um conjunto de mecanismos que visam recuperar as empresas que se encontrem numa situação económica difícil, não sendo o não pagamento de impostos uma forma de obviar a tais estados, sob pena de tratamento desigual das empresas. De resto, não se pode dizer que o dever de pagar os salários seja para salvaguarda exclusiva dos interesses destes, pois que, em última instância, acaba por visar a satisfação de um interesse próprio, que é a manutenção do negócio em funcionamento, não podendo o Estado ser onerado com os riscos da actividade do empresário...[16 - Ac. RG 11.11.2002, CJ, ano XXVII, tomo V, pág. 285 e ss.] E se a empresa se encontra numa situação de insolvência, então é seu dever requerer essa declaração (art. 6º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de falência –CPEREF – e art. 18º do Código da Insolvência e de Recuperação de Empresas – CIRE) e não continuar a laborar à custa de quantias que não lhe pertencem, mas ao Estado. Compreende-se deste modo que o direito dos trabalhadores ao salário, assim como dos credores ao pagamento das matérias-primas fornecidas, não se afirme superior aos interesses do Estado, termos em que a actuação do arguido, actuando em representação da arguida sociedade, não se encontra justificada por actuar ao abrigo de um direito de necessidade.[17 - Ac. STJ 20.06.2001, CJSTJ, ano IX, tomo II, pág. 227 e ss.; Ac. RP 10.11.2004, CJ, ano XXIX, tomo V, pág. 209 e ss.; Ac. RP 15.12.2004, www.dgsi.pt] Particularmente impressivo sobre esta matéria, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa[18 -Ac. RL 12.07.2005, CJ, ano XXX, tomo IV, pág. 133 e ss.] que “nada permite concluir que o dever de manter a empresa a funcionar, nomeadamente através do pagamento dos salários aos seus trabalhadores, seja superior ao de cumprir as obrigações fiscais, sendo certo que este último dever é uma obrigação legal e assim superior ao dever funcional de manter a empresa com os pagamentos em dia (…). Acresce que, a versão do recorrente distorcia gravemente as regras do mercado, conhecida que é a forte concorrência entre empresas que determina que nem todas tenham capacidade ou possam continuar a competir. Desse modo, estaria encontrada a «fórmula» que permitiria que algumas empresas, além de evitarem a perseguição criminal pelos crimes fiscais, usufruíssem de inadmissíveis vantagens de concorrência relativamente àquelas que cumprem as suas obrigações…”. De igual modo, não estando os deveres numa relação de paridade (um dever legal e o outro dever de cumprir contratos)[19 -Ac. STJ 15.01.1997, CJSTJ, ano V, tomo I, pág. 190 e ss.; Ac. RG 11.11.2002, CJ, ano XXVII, tomo V, pág. 285 e ss.; Ac. STJ 18.06.2003, www.dgsi.pt; Ac. RP 09.06.2004, www.dgsi.pt; Ac. RP 15.02.2006, www.dgsi.pt; Ac. RP 26.09.2007, www.dgsi.pt ], não se vislumbra em que moldes se poderá sustentar estar a conduta justificada no que à sua ilicitude concerne, por o arguido ter actuado num contexto de conflito de deveres… Mas, mesmo para quem assim não entenda, sempre se imporá concluir que, entre a imposição legal de não se apropriar das quantias por si deduzidas e de as entregar ao Estado, traduzido num dever geral de omissão – e o dever de acção – pagamento de salários – sempre prevaleceria o primeiro»”). RL 22/9/04, proc. nº 4855/2004-3 (“III – Não colhe a argumentação de que, no conflito de deveres entre pagar os salários dos trabalhadores e manter a laboração e pagar as quantias devidas ao Estado, o primeiro se sobrepõe ao segundo. A verdade é que não se deve entender como conflito de deveres a situação em que estejam em confronto interesses próprios (manter a sociedade em funcionamento para o que tem que se satisfazer as obrigações para com os trabalhadores) e interesses alheios – cumprir a obrigação de entregar ao Estado as quantias que lhe pertencem.”) e 15/2/07, proc. nº 1552/07-9 (“4. Na hierarquia de valores em causa, o interesse do Estado está a um nível muito superior do interesse privado do arguido em pagar os salários e viabilizar a manutenção da empresa. 5. A entrega das quantias às entidades referidas, para além de constituir um dever legal e, por isso, superior ao dever funcional de manter a actividade laboral da empresa, é muito mais relevante do que este, na medida em que assim ficam acautelados quer as prestações de assistência médica, quer os subsídio de desemprego, quer ainda a futura reforma dos trabalhadores não só do arguido mas também de outras empresas.”), RE 15/11/11, proc. nº 120/03.0IDFAR.E1 (“1. O dever de pagar impostos e o de pagar salários não são, em face da ordem jurídica, qualitativamente equiparáveis, atendendo quer à sua fonte, que é legal, no caso do primeiro, e contratual, no do segundo, quer à natureza dos interesses que têm por função tutelar, que é pública, quanto ao primeiro, e privada, relativamente ao segundo. 2. Por conseguinte, em caso de conflito em que o cumprimento de um implique necessariamente o sacrifício do outro, o dever de pagar impostos deverá sobrelevar, como regra, ao do pagamento de salários, conforme vem sustentando a generalidade da jurisprudência. 3. Mesmo que assim se não entenda, sempre diremos que o conflito de deveres nem sequer deverá ser colocado, em abstracto, relativamente às quantias recebidas pelo sujeito «interposto», no quadro de uma relação de substituição fiscal. Nesse contexto, o sujeito «interposto» fica investido da disponibilidade fáctica e jurídica dessas importâncias, mas estas não se integram no seu património, pois foram-lhe entregues a título não translativo da propriedade, para a exclusiva finalidade de serem entregues ao Fisco. Assim sendo, as quantias em referência não respondem por outras obrigações pecuniárias a que esteja vinculado o sujeito que as receba, incluindo as que relevem do pagamento de salários.”)
[6] Neste sentido cfr., entre outros, Acs. STJ 13/12/01, proc. nº 01P2448 e RG 11/11/02, proc. nº 283/02-1.
[7] A problemática que envolve esta questão, usualmente suscitada a par do conflito de deveres, nos crimes de natureza fiscal, também foi objecto de apreciação na generalidade dos arestos que em nota anterior deixámos referenciados.
[8] Pois, como acertadamente se considera, a dado passo, no já citado Ac. RC 25/5/11, e também acima já referimos, “a obrigação do pagamento dos salários só se põe enquanto se mantiver a obrigação da manutenção dos postos de trabalho e a obrigação da manutenção da empresa em funcionamento só se mantém enquanto esta tiver viabilidade económica”, além que que “existe um conjunto de mecanismos que visam recuperar as empresas que se encontrem numa situação económica difícil, não sendo o não pagamento de impostos uma forma de obviar a tais estados, sob pena de tratamento desigual das empresas” e “se a empresa se encontra numa situação de insolvência, então é seu dever requerer essa declaração (art. 6º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de falência –CPEREF – e art. 18º do Código da Insolvência e de Recuperação de Empresas – CIRE) e não continuar a laborar à custa de quantias que não lhe pertencem, mas ao Estado.”
[9] Como se refere no já citado Ac. RC 6/1/10, “Ainda que em tese geral se admita o funcionamento das causas de justificação e de exculpação no âmbito dos crimes de abuso de confiança fiscal e contra a segurança social, sempre seria necessário que estivessem reunidos os necessários pressupostos.”
[10] Ac. RP 24/2/10, proc. nº 29/06.5TAMTS.P1 de 24/2/2010.
[11] Conforme vem referido por Alfredo José de Sousa, Infracções Fiscais (Não Aduaneiras), 3ª ed., pág. 108.
[12] A entrega deve ser feita até ao 15º dia do mês seguinte àquele a que disserem respeito (cfr. art.º 5º nº 2 do DL nº 103/80; art.º 18º do DL nº 140-D/86 e art.º10º nº 2 do DL nº 199/99 de 8/6 que revogou o Dec-Lei nº 140-D/86 à excepção dos seus art.ºs 8 e 19).
[13] cfr. Ac. RC 26/5/09, proc. nº 206/02.8TAACB.C1
[14] cfr. Ac. STJ 24/3/03, C.J. ano XXVIII, t. I, pág. 234.
[15] cfr. Ac. STJ 18/10/06, proc. nº 06P2935
[16] Ac. STJ 10/1/07, proc. nº 4099/06-3ª.
[17] Ac. STJ 18/2/10, proc. nº 432/09.9YFLSB-5ª
[18] cfr. Ac. RC 21/10/09, proc. nº 12/08.6IDGRD.C1
[19] cfr. Ac. RC 26/5/09, já acima citado.
[20] cfr. Ac. RC 25/3/09, proc. nº 97/04.4IDCBR.C1
[21] Veja-se também, entre outros e com interesse para as questões suscitadas, o Ac. TC nº 61/07 de 30/1/07 e os arestos que nele vêm citados.
[22] Como se refere, nomeadamente, no Ac. RP 12/3/03, proc. nº 0210289.
[23] A este propósito, e traduzindo o entendimento da generalidade da nossa jurisprudência, vejam-se, entre outros, os Acs. STJ 21/12/06, proc. nº 06P2946: “É sabido que a fuga aos impostos é um dos elementos que mais tem concorrido para o imparável descalabro financeiro do Estado Português ou, sob outro prisma, o seu pagamento pontual surge como condição da subsistência deste, certo que de tais aspectos não se mostra totalmente consciencializado o cidadão comum. E, porque assim é, a reacção penal não se compadece com a adopção de penas simbólicas que perpetuam um sentimento de impunidade, ou pecuniárias, pois não levam à interiorização, por parte do agente, da responsabilidade pelo acto danoso, subestimando-o (Acórdãos de 17-04-02, Proc. n.º 160/02 e de 19-10-05, Proc. n.º 2321/05, qualquer deles da 3.ª Secção). Muito pelo contrário, desvalorizando a ilicitude que lhe está subjacente, adensam um sentimento generalizado de quase despenalização, que perpassa transversalmente à comunidade: conclusão esta que se espelha na frequência e na amplitude que vai assumindo a violação dos deveres fiscais, reforçadas pela progressiva desvalorização do acto punitivo e facilitada pela má consciência cívica em matéria fiscal. Tratando-se de quantias já com alguma expressão, a imposição directa de uma pena de multa que se reflecte monetariamente numa pequena parcela do montante total em dívida, pode contribuir, ainda mais, para “um amolecimento da consciência colectiva do dever de cumprimento das obrigações fiscais” (expressão empregue no Acórdão deste Tribunal de 21-04-04, Proc. n.º 259/04 - 3.ª Secção). Em termos de prevenção geral, só a pena de prisão realiza cabalmente as finalidades das penas, destacando-se os factores de dissuasão de potenciais delinquentes e a protecção de interesses tidos como fundamentais do Estado. Atendendo à directriz plasmada pelo n.º 1 do art. 40.º do Código Penal, em sede de reprovação e prevenção destas infracções, aparece como muito mais eficaz a pena de prisão, mesmo que com execução suspensa (Acórdão de 13-10-04, Proc. n.º 2370/04 - 3.ª Secção).” e RP 19/2/2003, proc. nº 0141409: “(…) este ramo do direito tem especificidades muito próprias. Assim é hoje um dado adquirido a eticização do direito penal fiscal, pois o sistema fiscal não pode ser visto, numa perspectiva redutora, apenas como o meio de arrecadar receitas, cabe-lhe também a realização de objectivos de justiça distributiva, o financiamento das actividades sociais do Estado, cfr. artºs 103º e 104º da Constituição. Nesta perspectiva é correcta a previsão da pena de prisão como pena principal. Mais, como refere Anabela Rodrigues, Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria penal fiscal, DPEE, textos doutrinários, vol. II, pág. 484, a pena de prisão é, em abstracto, a pena mais adequada por ser a única capaz de responder às necessidades de promover a consciência ética fiscal, não se lhe podendo assacar os efeitos criminógenos que normalmente andam ligados ao cumprimento deste tipo de pena. Acresce que o requisitório contra as penas curtas de prisão perde neste tipo de criminalidade, muita da sua força: os efeitos dessocializadores que lhe andam ligados, na maior parte dos casos, não se fazem sentir ou são substancialmente minorados, cfr. aut. ob. e loc. cit.”