Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0322013
Nº Convencional: JTRP00035555
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: ADVOGADO
RESPONSABILIDADE CIVIL
CONTRATO DE MANDATO
SOLICITADOR
Nº do Documento: RP200306170322013
Data do Acordão: 06/17/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J VALONGO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: Celebrado contrato de mandato com solicitador com a finalidade de aquisição de um imóvel e sendo necessária a celebração de um contrato promessa de compra e venda, ao mandatário incumbe assegurar-se da dominialidade do imóvel sob pena de responsabilidade civil profissional pelos prejuízos que a sua conduta provocar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO :

I - RELATÓRIO

Acácio..... e mulher, Maria....., residentes na Travessa....., ....., propuseram no Tribunal Judicial de..... a presente acção ordinária contra Luísa....., casada, solicitadora, com domicílio profissional na Rua....., ....., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhes a quantia de Esc. 5.000.000$00, em virtude de ter actuado de modo profissionalmente reprovável e culposo ao não averiguar a identidade dos verdadeiros proprietários do prédio que os Autores se propunham comprar, cujos nomes exactos deviam figurar no contrato promessa redigido pela Ré.

Na sua contestação a Ré confirmou “a factualidade vertida” na petição inicial e requereu a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros....., com quem celebrou um seguro de responsabilidade civil profissional.

A seguradora..... foi admitida a intervir e apresentou contestação na qual pugna pela improcedência da acção, pedindo ainda que se suspendam os termos da acção até que se decida o processo crime instaurado pelos Autores contra os que, no contrato promessa, figuram como promitentes-vendedores.

Houve réplica dos Autores, articulado em que concluem como na petição inicial.

Foi proferida decisão logo no saneador, julgando-se a acção improcedente e absolvendo-se a Ré, bem como a interveniente, do pedido.

O recurso foi admitido como sendo de apelação, atribuindo-se-lhe efeito suspensivo (cfr. fls. 66).

Nas alegações de recurso, os apelantes formulam as seguintes conclusões :
I. Entre os apelantes e a apelada Luísa..... foi celebrado um contrato de mandato, nos termos do qual a apelada aceitou a incumbência de elaborar um contrato promessa de compra e venda referente a um prédio – fracção autónoma em fase de construção.
II. No exercício daquele mandato, a apelada Luísa..... elaborou um contrato promessa de compra e venda, não cuidando de requerer, na competente Conservatória do Registo Predial, certidão de descrição e inscrição do prédio ou fracção, limitando-se a identificá-lo como sendo “prédio urbano, ainda em construção, para habitação sito na Rua....., em..... com a ..... 1º Andar – traseiras com lugar de garagem para dois carros, Há. 36 – H”, nenhuma referência fazendo à inscrição ou omissão na matriz ou descrição ou omissão na Conservatória.
III. Ora, a apelada, sendo uma Solicitadora de profissão, tinha o especial dever de se assegurar sobre a legitimidade dos promitentes vendedores para celebrarem o contrato promessa em questão, tanto mais que se tratava de uma fracção autónoma ainda em fase de construção, dever esse que só seria cumprido com o recurso a documentos que certificassem os legítimos proprietários do prédio prometido vender.
IV. Em consequência da conduta omissiva da apelada, os recorrentes acabaram por prometer comprar uma fracção autónoma a quem não era o seu legítimo dono, e sem qualquer legitimidade para o negócio, entregando, a título de sinal, a quantia de Esc. 5.000.000$00, correspondente a quarenta por cento do total do preço.
V. Ao não diligenciar nos termos atrás referidos pelo conhecimento dos titulares do prédio, a omissão da apelada, muito reprovável do ponto de vista profissional, foi a condição sine qua non para que os recorrentes sofressem o prejuízo constante dos autos – perda dos 5.000.000$00 entregues a título de sinal.
VI. O comportamento da apelada Luísa....., fá-la incorrer, assim, em responsabilidade contratual sendo certo que funciona, neste caso, uma presunção legal de culpa cominada no art. 799º do Código Civil.
VII. Assim não o entendendo, a aliás douta sentença em crise violou os artigos 1157º, 486º, 798º e 799º do Código Civil.
VIII. Razão pela qual deve ser revogada e substituída por Douto Acórdão que atenda ao exposto.
IX. Decidindo em conformidade, V. Exªs farão, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA.

Contra-alegou a seguradora “.....”, pronunciando-se no sentido da improcedência da apelação.

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Limitando-se o objecto do recurso pelas conclusões dos recorrentes – arts. 684º, n.º 3 e 690º do CPC – a questão a decidir é a de saber se a Ré pode ser responsabilizada pelo prejuízo de Esc. 5.000.000$00 sofrido pelos Autores.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS
No saneador-sentença o Tribunal recorrido deu como assentes os seguintes factos :

1. No início do mês de Fevereiro de 1998, o Autor marido dirigiu-se ao escritório da Ré, tendo em vista a feitura de um documento para a compra de um prédio – fracção autónoma – ainda em construção.
2. A Ré, enquanto Solicitadora, aceitou a incumbência do Autor, comprometendo-se a praticar todos os actos e a elaborar todos os documentos necessários àquele fim, tendo, assim, solicitado ao Autor marido que este lhe facultasse a identificação das partes no negócio, bem como a descrição da fracção a adquirir.
3. O Autor marido forneceu à Ré os elementos pedidos, informando-se que vendedores eram o senhor Joaquim..... e mulher Maria D..... e que a fracção a adquirir fazia parte de um prédio em atrasado estado de construção, razão pela qual não poderia, desde logo, ser celebrada a respectiva escritura pública.
4. Na posse destes elementos, a Ré, com data de 16 de Fevereiro de 1998, elaborou a minuta de um contrato promessa de compra e venda.
5. Tal contrato foi assinado pelos aqui Autores e pelos referidos Joaquim..... e mulher, Maria D....., respectivamente na qualidade de promitentes compradores e promitentes vendedores, conforme documento de fls. 6 a 9 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
6. O preço ajustado entre as partes para a compra e venda da fracção em apreço foi de Esc. 12.500.000$00, tendo os Autores liquidado no acto da assinatura do contrato, a quantia de Esc. 5.000.000$00, a título de sinal.
7. Acontece, porém, que os promitentes vendedores que figuraram no mencionado contrato promessa de compra e venda – Joaquim..... e mulher – nunca foram, nem são, os proprietários do prédio ou da fracção prometida vender.
8. Pelos factos imputados aos referidos Joaquim..... e mulher, já o Autor apresentou a respectiva queixa-crime no Ministério Público junto do Tribunal da Comarca de....., no dia 14 de Janeiro de 1999, encontrando-se o processo na fase do inquérito, conforme documento de fls. 7 a 9, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
9. Entretanto, a fracção autónoma prometida vender já foi vendida pelo seu legítimo proprietário.
10. A Ré, com vista à celebração do contrato acima referido não requereu certidão da descrição e inscrição da fracção ou prédio na Conservatória do Registo Predial.
11. Entre a Ré e a interveniente existe um contrato intitulado de “seguro de responsabilidade civil profissional”, titulado pela apólice n.º...../...

O DIREITO
Urge, antes de mais, classificar o tipo de contrato estabelecido entre os Autores e a Ré Luísa......
Esta, enquanto solicitadora, foi abordada pelo Autor marido para que elaborasse um documento para a compra de um prédio – fracção autónoma – ainda em construção. A Ré aceitou essa incumbência, comprometendo-se a praticar todos os actos e a elaborar todos os documentos necessários àquele fim, tendo, assim, solicitado ao Autor marido que lhe facultasse a identificação das partes no negócio, bem como a descrição da fracção a adquirir – cfr. 1. e 2.
O Autor marido forneceu à Ré os elementos pedidos, informando-a que os vendedores eram Joaquim..... e mulher, Maria D....., e que a fracção a adquirir fazia parte de um prédio em atrasado estado de construção, razão pela qual não poderia, desde logo, ser celebrada a respectiva escritura pública.
Na posse destes elementos, a Ré, com data de 16 de Fevereiro de 1998, elaborou a minuta de um contrato promessa de compra e venda.
Tal contrato foi assinado pelos Autores/apelantes e pelos referidos Joaquim..... e mulher, Maria D....., respectivamente, na qualidade de promitentes compradores e promitentes vendedores, conforme documento de fls. 6 a 9, que aqui se dá por integralmente reproduzido – cfr. 3., 4. e 5.

Configura-se, com esta factualidade, um contrato de prestação de serviço, na modalidade de mandato, em que são mandantes os Autores e mandatária a Ré Luísa......
Através desse contrato a Ré não se comprometeu apenas a elaborar o contrato promessa de fls. 6 a 9. A obrigação que para ela decorreu desse contrato de mandato tem uma muito maior amplitude. De facto, a Ré obrigou-se perante o Autor marido a praticar todos os actos e a elaborar todos os documentos necessários ao negócio de compra e venda de uma fracção predial que os demandantes pretendiam adquirir – cfr. 1. e 2.
Para satisfação dessa finalidade (aquisição definitiva da fracção autónoma), mostrou-se necessária a feitura de um contrato promessa de compra e venda, dado o atraso verificado na construção – cfr. 3. e 4.

Refere o art. 1157º do CC que mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra, entendendo-se por actos jurídicos aqueles que são susceptíveis de produzir efeitos jurídicos – v. Prof. Galvão Telles, “Manual dos Contratos em Geral”, 4ª edição, pág. 15.
Além dos advogados, apenas os solicitadores com inscrição em vigor na Câmara podem, em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão, designadamente exercer o mandato judicial, nos termos da lei, em regime de profissão liberal remunerada – art. 77º, n.º 1, do DL 8/99, de 08.01 (Estatuto dos Solicitadores), e art. 99º, n.º 1, do DL 88/2003, em vigor desde o dia 26 de Maio p.f., que revogou aquele DL.
O contrato de mandato não está sujeito a forma especial, podendo, por isso, ser celebrado verbalmente – como o foi no presente caso - e presume-se oneroso quando consistir na prática de actos que o mandatário pratique por profissão – art. 1158º do CC.
O mandato, quer seja com representação, quer seja sem representação (art. 1180º), implica obrigações a que correspondem outros tantos direitos para cada uma das partes contratantes.
Resulta do art. 1161º, al. a), que o mandatário é obrigado a praticar os actos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante.
Como ensinam os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. II, edição de 1968, pág. 475, para que se possam tornar efectivas as instruções que o mandante entenda dever dar ao mandatário é que este está obrigado a prestar as informações que aquele lhe peça, relativas ao estado da gestão. Além das informações que forem pedidas pelo mandante, o mandatário terá de prestar aquelas cuja necessidade resulta do disposto na alínea c) do art. 1161º e ainda as que são impostas pelo dever geral de diligência a que, como todos os devedores, ele é sujeito.
Tratando-se de uma solicitadora, pessoa especialmente habilitada à prática de actos jurídicos, actividade de que faz profissão, impunha-se à Ré Luísa..... o dever de operar com as cautelas e a diligência necessárias á boa execução do mandato. Deveria, por isso, ter-se assegurado de quem era o titular inscrito do direito de propriedade sobre o prédio em construção na data em que foi celebrado o contrato promessa.
Mesmo que se obtempere que, nessa altura, nenhum prédio estava ainda construído, nem assim se pode aceitar a atitude da Ré. De facto, em 16 de Fevereiro de 1998 só estava ainda inscrita no registo predial a aquisição do prédio rústico, onde viria a ser implantada construção, a favor de “P....., Limitada”.
Bastava, porém, este elemento para fazer suscitar dúvidas sobre a dominialidade da fracção prometida vender. E era obrigação da Ré Luísa..... fazer chegar essas dúvidas aos mandantes. Se estes, mesmo assim, persistissem na primitiva informação prestada à mandatária, então sim, poderia considerar-se isenta de culpa a actuação desta. Todavia, o que os autos unicamente nos dizem é que a Ré Luísa..... nem curou de requerer a certidão da descrição e inscrição da fracção ou prédio na Conservatória do Registo Predial.
Diz-se na sentença, seguindo o alegado pela seguradora, que as razões de exigência de documentos para formalizar o contrato promessa são inferiores às do contrato definitivo. Não podemos estar completamente de acordo com essa asserção. Pense-se, por exemplo, na possibilidade de se clausular no contrato promessa a execução específica, tal como sucedeu no contrato promessa dos autos (v. cláusula 7ª). Se os nomes dos promitentes vendedores (elemento essencialíssimo do contrato promessa) não correspondem aos de quem legitimamente detém o direito de propriedade do bem a transmitir, como é que se pode obter a execução específica do contrato ?
Por outro lado, não tem o relevo que a apelada insinua (art. 7º da contestação) e que a sentença recorrida explicita (fls. 57), o facto de os mandantes terem entregue á Ré Luísa..... o mapa de acabamentos da obra e planta do prédio.

Faltou, assim, a Ré, a um dever primário de cumprimento do mandato que lhe foi conferido: a não averiguação da dominialidade do prédio prometido vender, omissão que viria a causar, de forma directa e necessária, o prejuízo patrimonial invocado pelos apelantes.
Com efeito, impunha-se à Ré, em razão da sua profissão e da normal execução do contrato de mandato, essa averiguação e a consequente informação aos mandantes.
A culpa da Ré Luísa....., que o art. 799º do CC presumia, manifesta-se, afinal, de forma impressiva, clara e efectiva.

A obrigação de indemnizar existe quando haja o dever jurídico de dar o conselho, recomendação ou informação e se tenha procedido com negligência, como sucedeu no presente caso, através de uma atitude omissiva – v. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 4ª edição, págs. 468/469 e arts. 485º, n.º 2, e 486º do CC.

A indemnização confina-se, na hipótese dos autos, ao prejuízo patrimonial consistente na perda da quantia monetária entregue pelos Autores aos “promitentes vendedores”, a título de sinal.
O valor desse prejuízo é de Esc. 5.000.000$00, ou seja, 24.939,89 euros.

A responsabilidade pelo pagamento dessa quantia, verificados que estão todos os pressupostos da responsabilidade civil contratual, recai sobre a Companhia de Seguros....., por força do contrato de seguro de Responsabilidade Civil Profissional de fls. 36 e ss. – cfr. 11.

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III - DECISÃO
De acordo com o que ficou exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida que se substitui por outra que, julgando procedente a acção, condena a Companhia de Seguros “.....” a pagar aos Autores a quantia de 24.939,89 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal em cada momento, contados desde a citação.

Custas nas duas instâncias pelas Rés Luísa..... e Companhia de Seguros......
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Porto, 17 de Junho De 2003
Henrique Luís de Brito Araújo
Fernando Augusto Samões
Alziro Antunes Cardoso