Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0731000
Nº Convencional: JTRP00040191
Relator: AMARAL FERREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
COMPETÊNCIA CONVENCIONAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RP200703150731000
Data do Acordão: 03/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 710 - FLS. 172.
Área Temática: .
Sumário: I- Nos termos do disposto no art. 74º, nº 1, do CPC, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, há que distinguir, na determinação do Tribunal competente, em razão do território: se o R. for pessoa singular, o Tribunal competente será o do seu domicílio, ou um Tribunal localizado na área metropolitana de Lisboa, quando tanto o credor como o R. tenham domicílio em tal área; sendo demandada uma pessoa colectiva, pode o credor optar pelo Tribunal do lugar em que a obrigação devia ser cumprida ou pelo Tribunal do domicílio do R.
II- Nesta última hipótese, também está vedado o afastamento, por convenção, das regras de competência territorial, sendo oficioso o conhecimento da correspondente excepção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO.

1. “B…………….., S.A.”, com sede em ……….., Maia, instaurou nos Juízos Cíveis do Porto, onde foi distribuída à …..ª Secção do ….º Juízo, em 12/05/2006, contra “C………………., Ldª”, com sede na Rua ……….., …., …º, sala …, Lisboa, a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de 13.487,91 Euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal sobre 10.930,78, até efectivo e integral pagamento, alegando, em síntese, que, no exercício da sua actividade, celebrou com a R. um contrato de prestação de serviço telefónico móvel terrestre e de fornecimento de bens, nos termos do qual lhe prestou os serviços identificados nas facturas juntas, no valor global de 10.930,78 Euros, que a R. não pagou nem nas datas de vencimento nem posteriormente.

2. A R. contestou impugnando toda a factualidade alegada pela A. e, concluindo pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido, pede a condenação da A. como litigante de má fé, aduzindo que, apesar de ter sido outorgada a escritura da sua constituição, não só não chegou a ser registada como não desenvolveu qualquer actividade, desconhecendo quem teria celebrado o contrato de prestação de serviços com a A. já que a assinatura que dele consta não corresponde à de qualquer das suas sócias.

3. Respondeu a A. e, reafirmando o alegado na petição, deduz o incidente de intervenção principal provocada, como associadas da R., de D…………… e de E……………..

4. Seguiu-se a prolação de despacho que, declarando territorialmente incompetentes, para a tramitação da acção, os Juízos Cíveis do Porto, e competente o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, ordenou a sua remessa, após trânsito, ao último dos referidos Tribunais.

5. Discordando do assim decidido, agravou a A. que, nas respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões:
1ª: Diversamente ao propugnado no despacho em mérito, é permitido às partes afastar as regras de competência do território, por via da cláusula 10ª do contrato junto aos autos, que convencionou o foro do Porto como o competente.
2ª: A competência convencional está sujeita à disciplina legal prevista nos artigos 100º, 110º e 74º, todos do C.P.C., pelo que deverá aferir-se a validade da sobredita convenção em função do âmbito de aplicação dos ditos preceitos e que importa por isso determinar.
3ª: Na fixação do sentido e alcance da lei não deve o intérprete cingir-se à letra da lei, mas reconstruir a partir dos textos o pensamento legislativo (artigo 9º, nº 1, do Código Civil).
4ª: Sucede que, os artigos 110º e 74º do C.P.C. foram recentemente alterados pela Lei nº 14/2006, de 26/04. Face à recente alteração legislativa, o elemento lógico, mormente os trabalhos preparatórios e o fim visado pela norma, assume especial relevo na interpretação daqueles preceitos.
5ª: A entrada em vigor da Lei nº 14/2006, de 26/04, foi precedida de ampla discussão e publicidade, através do designado plano de acção de descongestionamento dos tribunais aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 100/2005, de 30/05.
6ª: Uma das medidas adoptadas com vista a atingir o almejado descongestionamento foi justamente a introdução da regra de competência territorial do tribunal da comarca do réu.
7ª: Um dos fundamentos da nova regra, plasmado quer no plano de acção, quer na proposta de Lei 389/2005, é o valor constitucional da defesa do consumidor. Mais se esclarece na respectiva proposta de lei que o demandante poderá optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação devia ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva “por estar ausente o referido valor constitucional de protecção do consumidor”.
8ª: A proposta de Lei 389/2005 não previa qualquer alteração do artigo 110º, o artº 74º apresentava a redacção que hoje consta da Lei nº 14/2006, de 24/06, e o artigo 100º apenas vedava às partes o afastamento das regras de competência territorial nos casos a que se referem os artigos 100º e, quando uma delas seja pessoa singular, o nº 1 do artigo 74º.
9ª: Analisados os trabalhos preparatórios é fácil concluir qual a mens legislatoris: descongestionar os tribunais, redistribuindo territorialmente a litigância cível com protecção do consumidor (pessoa singular).
10ª: Já no caso das pessoas colectivas e porque falece o valor da protecção do consumidor, o legislador pretendeu deixar na disposição das partes a convenção do foro (artigo 100º da proposta de lei) e, na ausência de convenção, facultar ao credor a opção entre o tribunal do lugar da sede da demandada e o do lugar do cumprimento da obrigação (artigo 74º da proposta de lei).
11ª: Com a introdução da nova regra da competência territorial o legislador pretendeu alcançar um duplo objectivo, a redistribuição territorial da litigância protegendo concomitantemente o consumidor.
12ª: Sucede que a Lei nº 14/2006, de 26/04, veio efectivamente alterar o artigo 74º nos termos propostos, mas não contemplou a alteração ao artigo 100º. Por outro lado, contrariamente à proposta de lei, o artº 110º veio a ser alterado.
13ª: Compreende-se, porém, a opção em causa pois o legislador pretendeu descongestionar os tribunais e cumulativamente proteger o consumidor.
14ª: Nesta conformidade, o artigo 74º, nº 1, tem natureza imperativa apenas no que respeita às pessoas singulares. Adicionalmente, o legislador introduziu no artigo 110º, o artº 74º, nº 1, 1ª parte e, consequentemente, sujeitou-o ao conhecimento oficioso. Ou seja, conferiu uma maior protecção ao consumidor, submetendo a violação da regra ao conhecimento oficioso.
15ª: Ora, a necessidade de submeter ao conhecimento oficioso a nova regra da competência dispensou a alteração proposta ao artº 100º, atenta a remissão que este já previa para o artigo 110º.
16ª: A redacção do artigo 110º, com referência expressa à 1ª parte do nº 1 do artigo 74º, teve em vista proteger apenas o consumidor e exclui, por isso, do seu âmbito de aplicação aquelas situações em que o credor pode optar entre dois tribunais competentes, ou seja no caso do demandado ser pessoas colectiva.
17ª: Ao remeter para o artigo 110º, deve o artigo 100º ser interpretado com esse mesmo sentido, isto é o de que é permitido afastar as regras de competência territorial nos casos em que o credor pode optar entre dois tribunais competentes, ou seja no caso do demandado ser pessoa colectiva.
18ª: É este o resultado lógico da exegese, baseado no argumento a maiori ad minus, a lei que permite o mais permite o menos. É que a norma plasmada no artigo 74º, nº 1, tem carácter dispositivo no que respeita às pessoas colectivas, pois quanto a estas tem o credor a faculdade de optar entre o tribunal do lugar do domicílio do réu e o do lugar do cumprimento da obrigação.
19ª: Mal se compreenderia que a lei facultasse ao credor um direito potestativo no que respeita à escolha do foro competente (artº 74º, nº 1), mas já não lhe permitisse escolhê-lo de comum acordo com o devedor.
20ª: A nova regra da competência territorial do domicílio do réu visa um objectivo cumulativo, descongestionamento dos tribunais e protecção do consumidor.
21ª: Se o fim da norma fosse o descongestionamento dos tribunais tout court, o carácter dispositivo que esta reveste no que respeita às pessoas colectivas não faria qualquer sentido.
22ª: É que no caso das pessoas singulares a norma obriga o credor a intentar a acção no lugar do domicílio daquelas, o que distribui a litigância pelas mais variadas comarcas do país.
23ª: Já no que respeita às pessoas colectivas o credor pode optar pelo lugar do cumprimento da obrigação, o que permite uma deslocalização em massa dos processos de um tribunal para outro e não uma redistribuição dos mesmos pelo território nacional.
24ª: Assim sendo, não se compreende qual seria o fim visado pela proibição da convenção expressa do foro no caso das pessoas colectivas, já que tal convenção não introduz qualquer diferença face ao disposto no artigo 74º.
25ª: Por todo o exposto, deve concluir-se que, nos termos conjugados dos artigos 100º, nº 1, 110º, nº 1, e 74º, nº 1, é permitido às partes afastar as regras de competência territorial nas acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações e em que o réu seja pessoa colectiva.
26ª: Nesta conformidade, o despacho objecto do presente agravo viola o disposto no artigo 9º, nº 1, do C.C., devendo ser substituído por outro que considere o Tribunal do Porto como competente por força da cláusula 10ª do contrato junto aos autos.
27ª: Sem prescindir, ainda quando proceda a excepção de incompetência territorial, deverá o despacho proferido pelo tribunal a quo ser substituído por outro que, ao abrigo do disposto nos artigos 3º, nº 3, e 265º, nºs 1 e 2, ambos do C.P.C., faculte à Autora, ora Agravante, a possibilidade de optar entre o tribunal do lugar do domicílio da Ré, a saber, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, e o tribunal do lugar do cumprimento da obrigação, a saber, o Tribunal Judicial da Comarca da Maia, atento o disposto no artigo 774º do C.C..
28ª: Como ficou supra exposto, o artigo 74º, nº 1, reveste carácter dispositivo no que respeita às acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações e em que o réu seja pessoa colectiva, porquanto o credor pode optar entre o tribunal do lugar do domicílio do réu e o tribunal do lugar do cumprimento da obrigação.
29ª: A este respeito escreveu Abílio Neto que “se o tribunal competente (artº 111º - 3, depender da escolha do credor, deverá o tribunal, ao abrigo do poder-dever consignado nos nºs 1 e 2 do artº 265º, ordenar a notificação daquele para, no prazo que lhe for assinalado, comunicar ao tribunal essa escolha, dando-se, então, cumprimento ao nº 3 deste artº 111º”.
Nestes termos e nos melhores de Direito que doutamente se suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência:
- Revogado o despacho proferido pelo Tribunal a quo por violação do disposto no artigo 9º, nº 1, do C.C., na fixação do sentido e alcance dos artigos 100º, nº 1, 110º, nº 1, e 74º, nº 1, do C.P.C., julgando-se competente o tribunal da comarca do Porto, ou
- Caso assim se não entenda, seja substituído por despacho que ordena a notificação da Autora, ora Agravante, para escolha do tribunal competente nos termos dos artigos 3º, nº 3, 265º, nºs 1 e 2, e 74º, nº 1, do C.P.C..

6. Não tendo sido oferecidas contra alegações, colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

1. Os factos a considerar provados para a decisão do agravo são, para além dos que constam do presente relatório, que aqui se dão por reproduzidos, os seguintes:
Nos termos da cláusula 10ª, nº 1, das condições gerais do contrato – fls. 10 - para qualquer questão resultante da validade, eficácia, interpretação, integração ou cumprimento das obrigações pecuniárias do contrato será competente o foro da Comarca do Porto, com expressa renúncia a qualquer outro.

2. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do CPCivil), que neles se apreciam questões e não razões e que não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, as questões suscitadas no presente agravo são as de saber se, no caso em apreço, em que a R. é uma pessoa colectiva, é possível afastar, por convenção, as regras da competência territorial e se o conhecimento dessa excepção é de conhecimento oficioso.

A agravante, que se encontra sediada na Maia, propôs, em 12 de Maio de 2006, a presente acção no Tribunal da Comarca do Porto - Juízos Cíveis -, contra a agravada, com sede em Lisboa, por força da cláusula constante do contrato entre ambas celebrado – 10ª, nº 1.
O Mmº Juiz do ..º Juízo Cível do Porto, ..ª Secção, ao qual foi distribuída a acção, conhecendo oficiosamente da excepção em causa, declarou-se incompetente, em razão do território, para os termos da acção, atribuindo a competência ao Tribunal da Comarca de Lisboa.
A agravante pugna pela competência do Tribunal recorrido, por entender ser possível afastar as regras da competência territorial nas acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações quando, como no caso, a agravada é uma pessoa colectiva, e que o conhecimento dessa excepção não é de conhecimento oficioso e, subsidiariamente, a substituição do despacho agravado por outro que ordene a sua notificação para escolher o tribunal competente, ou seja, o tribunal do lugar do cumprimento da obrigação - o Tribunal da Comarca da Maia - ou o tribunal do domicílio da ré - o Tribunal Cível da Comarca de Lisboa.

Tendo a acção sido instaurada em 12 de Maio de 2006, são-lhe aplicáveis as redacções introduzidas pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, aos artºs 74º, nº 1, e 110º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (diploma a que pertencerão os demais preceitos legais a citar, sem outra indicação de origem).
Na verdade, tendo as partes convencionado o foro da comarca do Porto como o competente para resolução de eventuais conflitos relativos ao contrato, celebrado em data anterior à referida alteração legislativa, isso mesmo resulta da aplicação das leis processuais no tempo.
Subscrevendo, a este respeito, a posição de A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 46, que remetem a respectiva solução para o que se encontra prescrito na nova lei que, através das disposições transitórias especiais, circunscrevem o campo temporal da sua aplicação, referem os mesmos autores que, ao lado das disposições especialmente insertas em determinados diplomas, há que considerar ainda as normas transitórias sectoriais ou parcelares, destinadas a definir, em termos relativamente genéricos, o domínio temporal das leis processuais reguladoras de certas matérias (prazos, forma dos actos, etc.).
Porém, sempre que a lei não contemple disposição transitória, especial ou sectorial, segundo os mesmos autores, a solução geral das leis processuais, não poderá deixar de ser a do princípio da aplicação imediata que, pese embora não ter consagração expressa na lei, é inerente ao direito processual, quer porque é um ramo do direito público que se sobrepõe aos interesses particulares dos litigantes, quer porque é direito adjectivo e, nessa medida, regula tão só o modo como as partes podem exercer os direitos reconhecidos na lei substantiva.
A Lei 14/2006, contém uma norma transitória especial no que se refere à sua aplicação no tempo, dispondo o artigo 6º que “A presente lei aplica-se apenas às acções e aos requerimentos instauradas ou apresentados depois da sua entrada em vigor”, e entrou em vigor em 1 de Maio de 2006 (cfr. artº 2º da Lei nº 74/98, de 11/11 – “os actos legislativos e os outros actos de conteúdo genérico entram em vigor no dia neles fixado, não podendo, em caso algum, o início de vigência verificar-se no próprio dia da publicação - nº 1 -; na falta de fixação do dia, entram em vigor no 5º dia após a publicação - nº 2”), ou seja, antes da instauração da presente acção
Assim, quer pelo princípio da aplicação imediata das leis processuais, quer face à norma de direito transitório constante do citado artº 6º, não restam dúvidas quanto à aplicação da lei nova aos processos instaurados após a entrada em vigor da referida Lei nº 14/2006, seja qual for o momento da celebração dos contratos em que se funda a pretensão do demandante.

Feita esta observação, e porque as duas questões suscitadas no agravo implicam a interpretação das mesmas normas legais (os citados artºs 74º, nº 1, e 110º, nº 1, importa ter presente o disposto no artº 9º do Código Civil, relativo à interpretação da lei, que preceitua o seguinte:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3 ...”.
Constituindo a apreensão literal do texto o ponto de partida de toda a interpretação, interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei (Manuel de Andrade, Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das leis, págs. 21 e 26).
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., pág. 58 e segs., o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório de diplomas ou dos trabalhos preparatórios da lei.
Na tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina, v.g., elementos de ordem histórica e racional ou teleológica.
O elemento histórico compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.
O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar.

Antes da entrada em vigor da Lei nº 14/2006, o nº 1 do artº 74º estipulava que “A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento, será proposta, à escolha do credor, no tribunal do lugar em que a obrigação devesse ser cumprida ou no tribunal do domicílio do réu”.
Quanto ao lugar do cumprimento das obrigações, às obrigações pecuniárias aplica-se, supletivamente, o artº 774º do Código Civil, nos termos do qual a prestação deve ser efectuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento.
Assim, desconsiderando a cláusula relativa ao pacto de aforamento, o tribunal territorialmente competente para dirimir litígios emergentes do contrato era o da comarca da Maia (sede da A.) ou o da comarca de Lisboa (sede da R.), à escolha da A..
Porém, as partes acordaram, por escrito, em atribuir a competência jurisdicional exclusivamente à comarca do Porto, o que lhes era permitido pelo artº 100º nº 1, 2ª parte (nos termos do qual é permitido às partes afastar, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência em razão do território, com a ressalva prevista no mesmo preceito, que são os casos a que se refere o artº 110º).
Neste artº 110º, em que se enunciavam as situações em que o tribunal podia conhecer oficiosamente da sua incompetência quanto ao território, não se incluíam, à data da celebração do contrato, litígios como o dos autos, ou seja, os integrados na previsão do nº 1 do artº 74º do Código de Processo Civil.
Assim, antes da entrada em vigor da Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, por força do pacto de aforamento, a comarca do Porto seria a competente para conhecer do litígio.

A Lei nº 14/2006 modificou o nº 1 do artº 74º, que passou a estipular que “A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento, é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana”.
Assim, quando o réu é pessoa singular, o tribunal competente será o do seu domicílio, ou um tribunal localizado na área metropolitana de Lisboa, quando tanto o credor como o réu tenham domicílio nessa área metropolitana.
Quando o réu é uma pessoa colectiva, pode o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação devia ser cumprida ou pelo tribunal do domicílio do réu.
Essa mesma Lei veio alterar o disposto na alínea a) do nº 1 do artº 110º, que passou a ter a seguinte redacção:
“1. A incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, sempre que os autos fornecerem os elementos necessários, nos casos seguintes:
a) Nas causas a que se referem os artigos 73º, a primeira parte do nº1 e o nº2 do artigo 74º, os artigos 83º, 88º e 89º, o nº1 do artigo 90º, a primeira parte do nº1 e o nº2 do artigo 94º”.
Importa ainda ter presente o que dispõe o nº 1 do artigo 100º: “As regras de competência em razão da matéria, da hierarquia, do valor e da forma de processo não podem ser afastadas por vontade das partes; mas é permitido a estas afastar, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência em razão do território, salvo nos casos a que se refere o artigo 110º.”
Porque as redacções dos preceitos acabados de referir, com as alterações introduzidas pela Lei nº 14/2006, designadamente ao artº 110º, nº 1, al. a), quando se refere às causas a que se refere a primeira parte do nº 1 do artº 74º, não são claras quanto às questões suscitadas no agravo, há que proceder à sua interpretação nos termos que acima se deixaram expostos.

A Lei nº 14/2006, tem a sua origem na Proposta de Lei nº 47/X, a qual foi discutida na generalidade na Assembleia da República em 02.02.2006.
Na exposição de motivos dessa Proposta de Lei pode ler-se, no que ao caso interessa, o seguinte:
“O Programa do XVII Governo Constitucional assumiu como prioridade a melhoria da resposta judicial, a consubstanciar, designadamente, por medidas de descongestionamento processual eficazes e pela gestão racional dos recursos humanos e materiais do sistema judicial.
A necessidade de libertar os meios judiciais, magistrados e oficiais de justiça para a protecção de bens jurídicos que efectivamente mereçam a tutela judicial e devolvendo os tribunais àquela que deve ser a sua função, constitui um dos objectivos da Resolução do Conselho de Ministros n,° 100/2005, de 30 de Maio de 2005, que, aprovando um Plano de Acção para o Descongestionamento dos Tribunais, previu, entre outras medidas, a «introdução da regra de competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, sem prejuízo das especificidades da litigância característica das grandes áreas metropolitanas de Lisboa e Porto».
A adopção desta medida assenta na constatação de que grande parte da litigância cível se concentra nos principais centros urbanos de Lisboa e do Porto, onde se situam as sedes dos litigantes de massa, isto é, das empresas que, com vista à recuperação dos seus créditos provenientes de situações de incumprimento contratual, recorrem aos tribunais de forma massiva e geograficamente concentrada.
Ao introduzir a regra da competência territorial do tribunal da comarca do demandado para este tipo de acções, reforça-se o valor constitucional da defesa do consumidor - porquanto se aproxima a justiça do cidadão, permitindo-lhe um pleno exercício dos seus direitos em juízo - e obtém-se um maior equilíbrio da distribuição territorial da litigância cível.
O demandante poderá, no entanto, optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o demandado seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o demandado tenha domicílio nessa mesma área. No primeiro caso, a excepção justifica-se por estar ausente o referido valor constitucional de protecção do consumidor; no segundo, por se entender que este intervém com menor intensidade. Com efeito, nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, não se afigura especialmente oneroso que o réu ou executado singular continue a poder ser demandado em qualquer das demais comarcas da área metropolitana em que reside, nem se descortinam especiais necessidades de redistribuição do volume processual hoje verificado em cada uma das respectivas comarcas.”

Sobre esta matéria, a Proposta de Lei previa a alteração da redacção do nº 1 do artº 74º do Código de Processo Civil, nos termos que vieram a ser consignados na Lei aprovada.
Porém, a proposta propugnava a alteração do nº 1 do artº 100º do Código de Processo Civil e não alterava o artº 110º do mesmo diploma.
Quanto ao nº 1 do artº 100º, acrescentava-se “e, quando uma delas seja pessoa singular, o nº 1 do artigo 74º e o nº 1 do artigo 94º”.
Isto é, afastava-se a possibilidade de celebração de pactos de aforamento em contrário ao disposto no nº 1 do artigo 74º e do nº 1 do artigo 94º (esta, relativa à competência em matéria de execuções). Porém, como não se alterava a redacção do artigo atinente aos poderes de conhecimento oficioso, pelo juiz, da incompetência territorial (artº 110º), o qual não incluía nessa possibilidade de intervenção os casos previstos no nº 1 do artigo 74º (nem os previstos no nº 1 do artº 94º) o texto legislativo proposto deixava nas mãos das partes a possibilidade de serem desrespeitadas as novas regras de competência territorial, pois se o demandante as violasse e o demandado nada dissesse, o juiz nada poderia fazer.
Disso nos dá conta a reunião da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias de 1/3/2006, em que o Grupo Parlamentar do PSD propôs a eliminação da alteração sugerida pelo Governo ao artº 100º, o qual manteria a redacção vigente e apresentou uma proposta de substituição da alínea a) do nº 1 do artigo 110º do Código de Processo Civil.
Conforme se relata no Diário da Assembleia da República, de 4/3/2006, II série-A, “o Sr. Deputado António Montalvão Machado, do PSD, apresentou as duas propostas, tendo começado por recordar que a iniciativa legislativa em causa visava alterar a regra da competência territorial do tribunal para as acções judiciais (declarativas e executivas) de dívidas, substituindo a regra da competência do foro do lugar do cumprimento da obrigação pela do domicílio do demandado, assim contribuindo para desafogar as comarcas de Lisboa e do Porto.
Assinalou, porém, que, caso tal alteração legislativa não fosse acompanhada de outra (a prevista para o artigo 110º, em alternativa à proposta pelo Governo para o artigo 100°), no sentido de a violação da nova regra de competência territorial ser de conhecimento oficioso, a norma seria inútil, uma vez que, caso o demandado não suscitasse a questão da incompetência territorial do tribunal (o que acontece actualmente na grande maioria dos processos executivos, em que não é deduzida oposição à execução), as acções continuariam a decorrer onde tivessem sido propostas (continuando a sobrecarregar os tribunais de Lisboa e do Porto), uma vez que o tribunal não poderia conhecer oficiosamente da excepção da sua incompetência territorial.”
As duas propostas de alteração ao texto sugerido pelo Governo foram aprovadas, na Comissão, por unanimidade dos partidos que se encontravam presentes na altura da discussão e votação (PS, PSD e CDS/PP) e correspondem às alterações introduzidas pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, aos referidos artigos do Código de Processo Civil.

Ora, recorrendo aos elementos histórico e teleológico das alterações introduzidas pela Lei nº 14/2006 aos artºs 74º, nº 1, e 110º, nº 1, al. a) do Código de Processo Civil, entende-se que não podem deixar de ser afirmativas as respostas às duas questões suscitadas no agravo, ou seja, apesar de a agravada ser uma pessoa colectiva, que é de conhecimento oficioso a violação das regras da competência territorial e que elas não podem ser afastadas por convenção.
Isso mesmo resulta da exposição dos motivos da Proposta de Lei nº 389/2005, que, no cumprimento do Programa do XVII Governo Constitucional, visou concretizar um dos objectivos da Resolução do Conselho de Ministros nº 100/2005, de 30 de Maio, através da aprovação de um Plano de Acção para o Descongestionamento dos Tribunais, prevendo a introdução da regra de competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, sem prejuízo das especificidades da litigância característica das grandes áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.
A adopção dessa medida assentava na constatação de que grande parte da litigância cível se concentrava nos principais centros urbanos de Lisboa e Porto, onde se concentravam as sedes dos litigantes de massa, ou seja, das empresas que, com vista à recuperação dos seus créditos provenientes de situações de incumprimento contratual, recorrem aos tribunais de forma massiva e geograficamente concentrada.
E com a introdução da regra da competência territorial do tribunal da comarca do demandado para este tipo de acções, reforçava-se o valor constitucional da defesa do consumidor, e obtinha-se um maior equilíbrio da distribuição territorial da litigância cível.
Portanto, constituindo objectivo do legislador, com a introdução da regra da competência territorial do tribunal da comarca do demandado, nas acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações [parecendo ser este o único sentido da expressão “primeira parte do nº 1 do artº 74º”, constante do artº 110º, nº 1, al. a), já que a própria Proposta de Lei se refere especificamente às acções relativas ao cumprimento de obrigações], essencialmente, obstar à concentração da litigância cível em Lisboa e Porto (embora com reforço do valor constitucional da defesa do consumidor e um maior equilíbrio da distribuição territorial da litigância cível, ele sairia defraudado se, por outra via (v.g., através de pactos de aforamento que atribuíssem competência territorial àquelas comarcas, quando nenhuma conexão – sede ou domicílio de qualquer das partes - tivessem com elas), fosse permitida essa concentração e se não se atribuíssem ao juiz poderes de conhecimento oficioso da violação dessa regra da competência territorial.
E esse objectivo da Lei sai claramente reforçado com as alterações propostas na Assembleia da República e que vieram a ser aprovadas, e as considerações que lhes estiveram subjacentes («o desafogar das comarcas de Lisboa e Porto» e a inutilidade da norma de substituição da regra de competência do foro do lugar do cumprimento da obrigação pela do domicílio do demandado, se não fosse «acompanhada de outra … no sentido de a violação da nova regra de competência territorial ser de conhecimento oficioso»).
Assim, por força da alteração introduzida pela mesma Lei aos artºs 74º, nº 1, e 110º, nº 1, alínea a), o juiz deve zelar pelo cumprimento dessa norma de competência territorial, pois a sua violação passou a ser de conhecimento oficioso, e, por força da referida ressalva contida no artº 100º, nº1, (de que as partes não podem afastar a aplicação das regras de competência em razão do território nos casos a que se refere o artº 110º), as partes deixaram de poder validamente convencionar o afastamento da aplicação de tal regra, entendimento que tem claro apoio no texto legal.
Quer isto dizer que, à luz do novo regime legal, em contratos como o dos autos, o tribunal competente, quanto ao território, para dirimir os litígios dele emergentes, é ou o da comarca de Lisboa – sede da demandada - ou o da comarca da Maia - porque a lei deixa ao credor a possibilidade de optar pelo tribunal do lugar do cumprimento da obrigação, lugar esse que, como se referiu, por aplicação supletiva do artº 774º do Código Civil, é o do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento.
Do que acaba de se expor, decorre que o tribunal recorrido não podia, sem dar a possibilidade à agravante de optar por um dos referidos tribunais, ordenar a remessa dos autos ao Tribunal da Comarca de Lisboa, por ser apenas esse o tribunal competente, nesta parte procedendo o agravo.

III. DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao agravo e, revogando o despacho agravado na parte em que ordena a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, ordenar a sua substituição por outro que, previamente, notifique a agravante para indicar por qual dos dois referidos tribunais (Maia ou Lisboa) opta e, só após, ordenar a sua remessa para o tribunal pelo qual venha a ser feita a opção.
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Custas pela agravante na proporção de metade.
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Porto, 15 de Março de 2007
António do Amaral Ferreira
Manuel José Pires Capelo
Ana Paula Fonseca Lobo