Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
357/10.5TAAMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: CRIME DE PECULATO DE USO
CONSUMAÇÃO
Nº do Documento: RP20120620357/10.5TAAMT.P1
Data do Acordão: 06/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O crime de peculato de uso previsto no art° 376° n° l do Cód. Penal consuma-se com a utilização, pelo funcionário, de veículo ou outra coisa móvel de valor apreciável, para fins alheios àqueles a que se destinam, independentemente de o fim visado pelo agente se ter ou não concretizado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 357/10.5TAAMT.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No termo do inquérito que, com o nº 357/10.5TAAMT, correu termos nos serviços do MºPº do Tribunal Judicial de Amarante, o MºPº deduziu acusação contra B… e C…, devidamente identificados nos autos, imputando-lhes a prática, em co-autoria material de um crime de peculato de uso p. e p. pelo art. 376º nº 1 do Cód. Penal.
Tendo sido requerida a abertura da instrução pelo arguido B…, o Sr. Juiz de Instrução, depois de efetuadas as diligências requeridas, proferiu despacho de não pronúncia.
Inconformado com a decisão instrutória, dela interpôs recurso o Ministério Público pedindo que seja revogada tal decisão e substituída por outra que pronuncie os arguidos pela prática do crime de que foram acusados, formulando as seguintes conclusões:
1. A prova produzida no decurso do inquérito e da instrução permite preencher todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal do crime de peculato de uso;
2. De uma correta apreciação da prova produzida em sede de inquérito e de instrução, de acordo com as regras da experiência comum, resulta fortemente indiciado que os arguidos não atuando como possuidores zelosos e não respeitando os fins a que o veículo em causa se destinava, lhe deram destino diverso, utilizando-o em proveito próprio contra as disposições legais e ordem expressa de superior hierárquico;
3. No presente caso foi recolhida, quer em sede de inquérito, quer em sede de instrução, prova bastante da prática do crime de peculato de uso, indiscutivelmente na forma consumada, que vinha imputado aos arguidos, o utilizaram em proveito próprio um veículo automóvel, propriedade do Estado, sendo irrelevante “in casu” que tenham logrado, ou não, o seu propósito de adquirir sapatos, na vizinha comarca de Felgueiras, por onde circularam com o já identificado veículo;
4. A douta decisão recorrida, por ter feito incorreta interpretação e aplicação dos preceitos legais acima referidos, deve ser revogada.
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O arguido C… respondeu às motivações de recurso, pugnando pela bondade da decisão recorrida e pela negação de provimento do recurso.
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O recurso foi admitido por despacho proferido a fls. 835, em que se sustentou o decidido.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-Geral adjunta emitiu douto parecer em sentido concordante com o recurso interposto pelo Mº Público na 1ª instância.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
É do seguinte teor a decisão instrutória objecto de recurso, no excerto que, ao caso, importa: (transcrição)
«A instrução que tem carácter facultativo, visa, in casu, a comprovação jurisdicional dos pressupostos jurídicos da acusação pelo M.P., nos termos do artigo 286º, nº 1 do Código de Processo Penal.
Constitui, portanto, uma fase preparatória e instrumental em relação ao julgamento.
Assim, a prova produzida em sede de instrução tem carácter meramente indiciário, no sentido em que não se pretende através dela a demonstração da realidade dos factos, antes e tão só indícios, sinais de ocorrência do crime, donde se pode formar a convicção, para a decisão de pronúncia, de que existe uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (cfr. artigos 308º nºs 1 e 2; 283º, nº 2 e 301º nº 3 do Código de Processo Penal), visando-se assim apurar se, em face das diligências probatórias realizadas, foram ou não recolhidos indícios suficientes da prática pelo arguido de factos que constituam crime [cfr. Germano Marques da Silva, in “Curso de Direito Processual Penal”, Editorial Verbo, 1994, páginas 182/183].
O que sejam indícios suficientes procurou o legislador definir no artigo 283º nº 2 do Código de Processo Penal, quando estatui “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”. Não basta assim a existência de meros indícios para submeter um arguido a julgamento, mas é também necessário que esses indícios permitam um juízo de prognose póstuma, no sentido de haver probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança. Por outras palavras, pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 1/3/2005 (Processo nº 1481/04.1, acessível em www.dgsi.pt/jtre): «Para que os indícios sejam suficientes, ou seja, para que os indícios tenham um valor probatório é necessário que sejam precisos, graves e concordantes».
Assim, «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime de que o não tenha cometido, havendo por isso uma probabilidade mais forte de condenação do que absolvição» (cfr. Acórdão de 05/06/1996 do Tribunal da Relação do Porto, disponível em www.dgsi.pt).
Constitui assim, a existência de indícios suficientes, que para terem valor probatório, terão de ser precisos, graves e concordantes (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01/03/2005 acessível em www.dgsi.pt), um verdadeiro pressuposto para a prolação do despacho de pronúncia.
Conforme referido, a suficiência dos indícios está intimamente ligada com um juízo de prognose sobre a aplicação, em sede de julgamento, de uma pena ou de uma medida de segurança ao arguido, sendo que na esteira do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 439/2002 (acessível em www.tribunalconctitucional.pt/acórdãos) temos por certo que o princípio da presunção de inocência não pode ser visto como uma «presunção meramente teórica da inocência, que na prática não redunda em qualquer posição processual vantajosa para o arguido, mas o coloca ilimitadamente à disposição da acusação, a qual pouco terá de demonstrar para que o julgamento se realize».
Não é plausível que, num Estado de Direito fundado sobre o princípio da presunção de inocência, havendo dúvidas sobre a culpabilidade de uma pessoa se opte por submeter a mesma a um julgamento e, assim, quer se queira quer não, à censura pública. Por isso, entendemos que, mesmo nesta fase da instrução, há que aplicar o princípio in dubio pro reo.
Em suma, há que fazer um juízo de prognose, apreciando criticamente as provas existentes nos autos, sempre com pleno respeito pelo princípio da presunção de inocência.
Contudo, além de avaliar da existência de indícios suficientes, o Juiz de Instrução deve também aferir da verificação dos pressupostos de punibilidade no caso concreto.
Enquadramento factual e jurídico:
De acordo com o prescrito no nº 1 do artigo 283º do Código do Processo Penal, o Ministério Público deduz acusação quando, em fase de inquérito, hajam sido recolhidos indícios suficientes da verificação da prática de um crime e de quem foram os seus agentes.
No presente caso, o Ministério Público deduziu acusação pública contra os arguidos imputando-lhes a prática de um crime de peculato de uso, pº e pº, pelo artigo 376º nº 1 do Código Penal.
A factualidade imputada é a seguinte:
“Os arguidos prestavam serviço, em 25 de Março de 2009, no posto da GNR (Guarda Nacional Republicana) em Amarante.
No dia 25 de Março de 2009, entre as 14h00m e as 15h00m, o arguido Sargento Chefe B…, encontrando-se em exercício de funções de Comandante daquele Posto Territorial da GNR de Amarante, pretendia deslocar-se ao vizinho concelho de Felgueiras, alegando que se faria acompanhar pelo arguido Sargento-Chefe C…, para na comarca de Felgueiras cumprir um mandado de detenção que pendia sobre um arguido condenado a três anos de prisão, sendo certo que pretendiam ambos os arguidos dirigir-se à freguesia de …, em Felgueiras, onde na D…, iriam adquirir calçado para ambos e para outros militares do Posto de Amarante.
Para tanto, o arguido C… nomeou o arguido B… para conduzir um veículo militar da GNR na viagem a Felgueiras.
Quando, em período de serviço, pelas 15 horas do dia 25 de Março de 2009, os arguidos se preparavam para abandonar o Posto da GNR de Amarante, compareceu o Capitão E…, Comandante do Destacamento da GNR de Amarante, a quem o arguido B… informou sobre o que pretendiam fazer e quais os motivos da saída para Felgueiras.
O referido oficial ordenou ao arguidos que não cumprissem o aludido mandado de detenção, por dever ser remetido ao Comando da GNR de Felgueiras, para cumprimento, bem como lhe ordenou que não podiam ir a Felgueiras comprar sapatos, pois estavam de serviço e nunca poderiam utilizar uma viatura militar da GNR, para tal fim.
Apesar da ordem que tinham recebido do oficial Comandante da GNR de Amarante e aproveitando a circunstância de este último se haver ausentado do Posto Territorial de Amarante, os arguidos saíram, devidamente uniformizados, daquele Posto, utilizando a viatura militar da GNR, da marca SKODA, modelo …, de matrícula L-…, conduzida pelo arguido B…, o que fizeram dirigindo-se à referida loja de calçado, em Felgueiras, guardando o condutor do veículo, em seu poder, o aludido mandado de detenção.
O capitão E…, nessa mesma tarde, procurou o arguido C…, tendo sido informado de ambos os arguidos se haviam ausentado para fora do Quartel da GNR de Amarante.
Através de contato telefónico estabelecido entre o capitão E… e o arguido B…, tomou o primeiro conhecimento de que os arguidos se haviam, efetivamente, deslocado a Felgueiras, ordenando-lhes aquele oficial que regressassem ao Posto Territorial de Amarante, no que foi obedecido, sendo entregue àquele oficial pelo arguido B…, o mandado de detenção que o arguido guardara em seu poder.
Os arguidos ficaram cientes da ordem que lhes fora dirigida pelo seu superior hierárquico direto, Capitão E…, Comandante do Destacamento Territorial, no sentido de não irem a Felgueiras comprar calçado e de que não o poderiam fazer numa viatura militar.
No entanto, deslocaram-se os arguidos a Felgueiras, com o propósito conseguido de, devidamente uniformizados e no exercício das suas funções, utilizarem em benefício próprio uma viatura militar, a que tinham acesso na qualidade de Sargentos-Chefes da GNR, bem sabendo que tal conduta lhes estava vedada.
Agiram ambos os arguidos, em comunhão de esforços e vontades, de modo livre e consciente, bem sabendo da censurabilidade e ounibilidade das respetivas condutas.
Praticaram os arguidos, em co-autoria material:
- um crime de peculato de uso, pº e pº pelo artigo 376º nº 1 do Código Penal…”
Analisada a prova constante do inquérito, nomeadamente os depoimentos das testemunhas arroladas na acusação pública, fls. 719 – E…, F…, G…, H…, I…, J… e K…, todos militares da GNR, constata-se que os arguidos, com o pretexto de cumprirem uns mandados de detenção em Felgueiras, tinham a intenção de adquirir sapatos numa sapataria em …, Felgueiras.
Para o efeito, os arguidos, juntamente com G…, dirigiram-se todos fardados e na viatura militar a Felgueiras.
Resulta também dos autos que os arguidos, nomeadamente B…, em exercício de funções como comandante do posto territorial da GNR de Amarante, apesar de ordenado pelo Capitão E… para não dar cumprimento ao mandado de detenção, nem se deslocarem a Felgueiras, não obedeceu e acabou por deslocar com o arguido C… àquela cidade.
Já em Felgueiras, em virtude de contactos telefónicos entre o capitão E… e o arguido B…, onde o primeiro ordenou ao segundo que regressassem ao posto da GNR de Amarante, estes dirigiram-se para o Posto territorial de Amarante.
No referido posto foi entregue os mandados de detenção por cumprir, não tendo sido encontrado sapatos ou outros bens adquiridos na citada sapataria.
Em sede instrução inquiriu-se L…, proprietário da sapataria referenciada nos autos.
Do seu depoimento, porque se apresentou muito limitado, não foi possível apurar se os arguidos, na data dos factos, se deslocaram à referida sapataria e aí adquiriram sapatos ou outros bens.
Em suma, face à prova recolhida, apesar de resultar dos autos que os arguidos tinham intenção de na deslocação que efetuaram a Felgueiras passarem por uma sapataria para adquirirem sapatos, constata-se que não há prova de que estes efetivamente se deslocaram à referida sapataria e aí adquiriram bens.
Nestes termos, impõe-se saber se a referida conduta preenche o ilícito criminal que lhes é imputado.
Dispõe o nº 1 do artigo 376º do CP.
O funcionário que fizer uso ou permitir que outra pessoa faça uso, para fins alheios àqueles a que se destinam, de veículo ou de outras coisas, móveis de valor apreciável, públicos ou particulares, que lhe forem entregues, estiverem na sua posse ou lhe forem acessíveis em razão das suas funções, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
A conduta ilícita consagrada consiste em fazer uso ou permitir que outra pessoa faça uso, neste caso da viatura militar, para fim alheio a que se destina.
Da análise dos autos, resulta claro que o fim alheio imputado aos arguidos prende-se com a deslocação a uma sapataria para aí adquirirem sapatos, mas que acabou por não se concretizar, ou pelo menos não há prova de que se tenha concretizado.
Nesta medida, a conduta dos arguidos é subsumível à tentativa de uso da viatura para fim alheio, nos termos do artigo 22º do CP.
A tentativa, por seu lado, salvo disposição em contrário, só é punível se ao crime consumado respetivo corresponder pena superior a três anos de prisão – nº 1 do artigo 23º do CP.
No presente caso, como crime imputado aos arguidos é apenas punível com pena de prisão até um ano, constata-se que a conduta, enquadrável a título de tentativa, não é punível.
Impõe-se, portanto, a não pronúncia dos arguidos.
Em face do supra exposto, e atento ao estatuído no artigo 308º do CPP, decide-se pela não pronúncia dos arguidos B… e C… pelo crime de peculato de uso, pº e pº pelo artigo 376º nº 1 do Código Penal.»
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso em apreço, resulta das conclusões do recurso que o recorrente delimita o respetivo objeto à questão de saber se da prova produzida em sede de inquérito e de instrução resultam indícios suficientes da prática pelos arguidos do crime de peculato de uso p. e p. no artº 376º nº 1 do Cód. Penal, que lhes era imputado na acusação pública.
Antes de verificarmos se se verifica a invocada suficiência de indícios, iremos equacionar a questão no quadro legal atinente.
As finalidades da instrução estão expressas no nº 1 do art. 286º do C.P.P.: a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou o controlo judicial da decisão do MºPº de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento[3].
Nessa tarefa, e devido à estrutura acusatória do processo, “o juiz de instrução está vinculado (…) aos termos da própria acusação ou do requerimento instrutório do assistente”[4], quer uma, quer o outro, já deduzidos nos autos.
A prolação de despacho de pronúncia depende – para além da “existência dos necessários pressupostos processuais e demais condições de validade para que o tribunal possa conhecer em julgamento do mérito da acusação”[5], – da recolha, até ao encerramento da instrução de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
Para efeitos de pronúncia, o conceito de indícios suficientes é o que vem enunciado no nº 2 do art. 283º, aplicável por determinação expressa do nº 2 do art. 308º: são aqueles dos quais resulta uma possibilidade razoável[6],[7] de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança[8].
Como assim, teremos que a tarefa ora reclamada se cingirá a aquilatarmos se, em contrário do decidido no despacho recorrido, se impõe a submissão dos arguidos a julgamento uma vez decorrerem dos autos indícios suficientes de factos por si cometidos e consubstanciadores da sua eventual responsabilização criminal.
Previamente à apreciação casuística do caso sub judice, e atentando-se nos contornos que os autos assumem, impõem-se-nos breves considerandos genéricos.
Como se disse, a instrução visa a comprovação judicial de acusar ou não acusar, isto é, pretende-se que se afira da existência ou não de indícios dos quais resulte a possibilidade razoável de em julgamento vir a ser aplicada ao arguido uma pena, pelos factos e ilícito que lhe são imputados, in casu, pela acusação pública deduzida pelo Mº Público.
O despacho de não pronúncia deverá ser proferido sempre que, perante o material probatório constante dos autos, não se indicie que o arguido, se vier a ser julgado, venha provavelmente a ser condenado, sendo tal probabilidade um pressuposto indispensável da submissão do feito a julgamento.
Por indiciação suficiente, entende-se “a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já admitidos no processo, uma pena ou medida de segurança”. Trata-se da “…probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal…”[9].
Como ensina Figueiredo Dias[10] “…os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”, acrescentando que “tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação.”
Isto é, como no julgamento, também na pronúncia vale o princípio da livre apreciação da prova (art.º 127.º do CPP) e as regras da experiência, e é permitido ao juiz formar a sua convicção com base em todos os elementos de prova que não sejam proibidos por lei, com a particularidade de não se pretender alcançar a certeza dos factos, mas apenas uma probabilidade séria de que ocorreram.
Não se impondo ainda a certeza processual (para além de toda a dúvida razoável) que deve preceder um juízo condenatório, é mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.
Enquanto fase jurisdicional[11], «a atividade processual desenvolvida na instrução é, por isso, materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”. Por isso, é comum afirmar-se que a instrução não é um complemento da investigação feita em inquérito, antes contempla a prática dos atos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.
Em boa verdade, o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, sempre tendo em conta a indicação constante do requerimento da abertura de instrução a que se refere o n.º 2 do artigo 287.º, do C.P.P. (ver artigo 288.º, n.º 4, do mesmo código).
O artigo 286.º, n.º1, do C.P.P., indica expressamente como objetivo da instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Feitas estas considerações, conclui-se que só da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito, bem como na instrução, há-de resultar uma verdadeira convicção de probabilidade de uma futura condenação ou não, não bastando um mero juízo de carácter subjetivo, antes se exigindo um juízo objetivo fundamentado nas provas recolhidas.
Na certeza, porém, que não se impõe uma verdade requerida pelo julgamento, mas apenas uma possibilidade razoável de aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, embora objetivamente analisada, com o sentido geral de que o arguido deverá ser pronunciado quando os elementos probatórios, de acordo com a livre apreciação da prova a que se reporta o art. 127.º do CPP, se apresentam tendencialmente mais propensos a uma condenação que a uma absolvição.
De todo o modo, não significa que essa possibilidade deva ser apenas mínima, mas sim que se afigure como particularmente sustentada e forte, levando à séria convicção de que a futura condenação será, em julgamento, o resultado que já se adivinha. Sem perder de vista a necessária objetividade, da apreciação dos indícios há-de resultar, pois, essa persuasão de possibilidade qualificada de futura condenação.
Disto isto, vejamos se a reconstituição processual dos elementos dos autos permitem ou não alcançar o nível de probabilidade necessário para a pronúncia dos arguidos B… e C… pela prática do crime de peculato de uso p. e p. no artº 376º nº 1 do Cód. Penal, imputado na acusação pública.
De acordo com o disposto no referido preceito, pratica o crime de peculato de uso “o funcionário que fizer uso ou permitir que outra pessoa faça uso, para fins alheios àqueles a que se destinem, de veículos ou de outras coisas móveis de valor apreciável, públicos ou particulares, que lhe forem entregues, estiverem na sua posse ou lhe forem acessíveis em razão das suas funções”.
Os bens jurídicos protegidos com a incriminação são a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário e, acessoriamente, o património alheio (público ou privado). Trata-se de um crime específico próprio, face à qualidade do agente, que tem necessariamente de ser um funcionário e se encontrar investido nas respetivas funções quando pratica os atos típicos objetivos.
Leal Henriques /Simas Santos oferecem uma expressiva definição de peculato de uso - «… a utilização momentânea e precária, sem animus domini, de coisa fungível que, posteriormente, é reposta, intacta, no seu lugar».
No caso em apreço não se discute a qualidade dos arguidos como funcionários, dado se tratar de dois Sargentos da GNR, nem que os mesmos se encontravam no exercício das respetivas funções aquando da prática dos factos descritos na acusação.
Entendeu o Sr. Juiz de Instrução que, “apesar de resultar da prova recolhida que os arguidos tinham a intenção de, na deslocação que efetuaram a Felgueiras, passarem por uma sapataria para aí adquirirem sapatos, não há prova de que estes efetivamente se deslocaram à referida sapataria e aí adquiriram bens”, concluindo que o “fim alheio” imputado aos arguidos acabou por não se concretizar, pelo que a conduta é apenas subsumível à tentativa de uso da viatura para fim alheio.
Contudo, o que resulta dos autos é apenas que os arguidos viram gorada a sua intenção de aquisição de sapatos em Felgueiras. Assim, a tentativa restringe-se à aquisição de calçado, mas não se estende à utilização de veículo público (da GNR) para fim alheio àquele a que se destina e que se encontrava na posse dos arguidos ou lhe era acessível em virtude das respetivas funções.
Quanto ao crime de peculato de uso que lhes é imputado, o mesmo consumou-se logo que os arguidos iniciaram o uso do veículo em Amarante com o objetivo de praticarem atos alheios às funções para que estava destinado, usando-o em exclusivo proveito próprio.
Relativamente ao ilícito em causa não praticaram os arguidos meros atos de execução da tentativa. A partir do momento em que se ausentam do seu local de trabalho para a realização de atos da sua esfera privada, para tanto utilizando uma viatura que lhes havia sido entregue para o exercício das suas funções ou lhes estava acessível por virtude delas, os arguidos praticam atos de consumação do crime de peculato de uso.
Na verdade, o crime de peculato de uso previsto no artº 376º nº 1 do Cód. Penal consuma-se com a utilização, pelo funcionário, de veículo ou outra coisa móvel de valor apreciável, para fins alheios àqueles a que se destinam, independentemente de o fim visado pelo agente se ter ou não concretizado.
E não se diga, como pretende o Sr. Juiz de Instrução no despacho de sustentação proferido a fls. 834, que “para que o crime de tivesse consumado, era necessário demonstrar que a utilização da viatura tinha como único objetivo fins alheios (…); não se conseguindo demonstrar indiciariamente tal factualidade, não é possível considerar-se que o crime se consumou, pois não fica excluída a hipótese de os arguidos quando saíram de viatura até terem a intenção inicial de cumprirem os mandados”.
Tal asserção, para além de não ter sido inserida no seu local próprio – a decisão instrutória[12] - não tem o mínimo apoio na prova produzida.
Com efeito, nenhuma das testemunhas arroladas pela acusação declarou, em fase de inquérito[13] que os arguidos se deslocaram a Felgueiras para cumprir os mandados de detenção e, simultaneamente, para comprar sapatos.
A única testemunha que se refere ao cumprimento dos mandados é a testemunha G… que a fls. 257 declarou: “Que o Capitão disse claramente que o mandado não era para ser cumprido pelos arguidos, e que o mandassem para a área de Felgueiras, tendo o arguido B… levado na mesma o mandado e que iam na mesma para Felgueiras para comprar os sapatos, na esperança de encontrar o indivíduo procurado”.
Contudo, é o próprio arguido B…, que a fls. 77 e 442 dos autos[14] admite que se “ia deslocar à freguesia de … do Concelho de Felgueiras a fim de adquirir o tal fardamento (sapatos)” afastando a possibilidade de se deslocar à referida comarca para cumprir os mandados de detenção.
Refere ainda o arguido que “No dia 25 de Março de 2009, por volta das 15 horas … preparava-me para sair do Posto Territorial de Amarante … com o intuito de adquirir algum fardamento (sapatos) no concelho limítrofe de Felgueiras por ali existir um sapateiro, conhecido pelo “D…” … ao mesmo tempo que aproveitava para dar cumprimento a um mandado de captura
“Como já estava de saída e levava outros documentos, informei o Senhor Comandante que iria enviar o Mandado de Captura para o Posto desta Guarda em Felgueiras e para a PSP do Porto e que me ía deslocar à freguesia de … do Concelho de Felgueiras a fim de adquirir o tal fardamento (sapatos). Como não queria desrespeitar a ordem do senhor Comandante do Destacamento, de ir em busca do indivíduo a deter, dirigi-me para o concelho de Felgueiras, sem que passasse pelo interior da cidade e segui o trajecto de …/…”.
Por outro lado, o arguido C… refere a fls. 157 vº: “Esclarece que iam comprar sapatos a Felgueiras, o depoente, o SCH B… e o Cabo G…. Acrescenta que o Cabo G… levaria uma lista com nomes de outros Guardas para adquirir calçado”(…) “refere que receberam a 1ª chamada telefónica quando estavam a chegar à localidade onde iam comprar os sapatos. (…) Esclarece que não se apercebeu que o SCH B… levava o mandado de detenção numa pasta. (…) Perguntado refere que efetivamente iam a Felgueiras para comprar os sapatos”.
Ou seja, contrariamente ao afirmado pelo Sr. Juiz de Instrução no despacho de sustentação proferido a fls. 834, não existem nos autos quaisquer elementos probatórios que permitam afirmar que ao saírem do Posto de Amarante na viatura de serviço, os arguidos tinham a intenção inicial de cumprirem os mandados de detenção ou que a deslocação dos mesmos a Felgueiras tivesse esse objetivo, para além da aquisição de sapatos.
E ainda que tal tivesse ocorrido, não deixaria de verificar-se o uso da viatura para fins alheios para aquele a que se destinava, pelo menos no desvio que os arguidos teriam necessariamente de efetuar entre o local onde pretendiam concretizar o cumprimento dos mandados de detenção e o local onde pretendiam adquirir os sapatos.
Conclui-se assim que dos autos resultam indícios suficientes de que os arguidos utilizaram a viatura que lhes era acessível em razão das suas funções, para fins alheios àqueles a que a mesma se destinava. Encontrando-se ainda suficientemente indiciados os elementos subjetivos do tipo, devem os arguidos ser pronunciados pela prática do crime de peculato de uso p. e p. no artº 376º nº 1 do Cód. Penal.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogam a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que pronuncie os arguidos B… e C… pelo crime de peculato de uso p. e p. no artº 376º nº 1 do Cód. Penal, que lhes foi imputado na acusação pública deduzida.
Sem tributação.
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Porto, 20 de Junho de 2012
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
António José Alves Duarte
_________________
[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] “A instrução – importa acentuar – não é um novo inquérito, mas tão-só um momento processual de comprovação; não visa um juízo sobre o mérito, mas apenas um juízo sobre acusação, em ordem a verificar da admissibilidade da submissão do arguido a julgamento com base na acusação que lhe é formulada.” Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado e comentado, 12ª ed., p. 572.
[4] cfr. Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 170.
[5] cfr. Idem, ibidem, pág. 166.
[6] “ao exigir-se a possibilidade razoável de condenação e não uma possibilidade remota, visa-se, por um lado, não sujeitar o arguido a vexames e incómodos inúteis e, por outro lado, não sobrecarregar a máquina judiciária com tramitações inúteis” cfr. Tolda Pinto, “A Tramitação Processual Penal”, 2ª. ed., pág. 701.
[7] “a simples dedução de acusação representa um ataque ao bom nome e reputação do acusado, o que leva a defender que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição” Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal” 1º vol., 1981, pág. 133.
[8] “Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.
Essa possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando dos elementos de prova recolhidos nos autos forma a convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido.” Prof. Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 179
[9] V. Germano Marques da Silva, II, 4ª edª., 2008, págs. 117/118.
[10] In Direito Processual Penal, 1ª Vol., 1974, pág. 133
[11] Como refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 3ª edª., 2009, p. 136, citando Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal/ O Novo Código de Processo Penal, p. 16.
[12] Na qual nenhuma hipótese se suscita quanto à utilização da viatura por parte dos arguidos para o cumprimento de mandados, pelo que o despacho de sustentação extravasa manifestamente a sua função específica.
[13] Já que não foram reinquiridas em sede de instrução.
[14] Em pedido de transferência dirigido ao Comando Territorial do Porto da GNR.