Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0326245
Nº Convencional: JTRP00036087
Relator: ALZIRO CARDOSO
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
LEGITIMIDADE
TÍTULO EXECUTIVO
CONTRATO-PROMESSA
Nº do Documento: RP200403310326245
Data do Acordão: 03/31/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: Incidindo a garantia real de crédito (direito de retenção) sobre bens de terceiro, este terá legitimidade passiva na acção executiva apenas quando o seu direito é posterior à constituição da garantia real ou, se anterior, no caso de contra ele ter sido proposta a acção de condenação em que foi proferida a sentença que servia de base à execução e que nesta tenha sido declarada a existência da garantia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I - Relatório
B..... e C..... deduziram embargos de executado, por apenso á execução ordinária para pagamento de quantia certa que lhes move D....., pedindo “o indeferimento do requerimento executivo”.
Fundamentaram os embargos alegando, em resumo, que:
Não foram parte na acção declarativa na qual foi proferida a sentença exequenda, sendo que já à data da propositura dessa acção eram proprietários da fracção autónoma então discutida e agora penhorada, facto que levaram a registo na competente Conservatória do Registo Predial, muito antes de ser intentada a acção declarativa cuja sentença aqui se executa.
Concluem pela "inexigibilidade e até inexistência de título" e que houve falta de citação para a acção declarativa em que foi proferida a sentença exequenda.
Recebidos os embargos, notificou-se o embargado, tendo este apresentado contestação, invocando o direito de retenção sobre a aludida fracção dos embargantes, reconhecido na sentença exequenda podendo, com base naquele direito, executar nos mesmos termos do credor hipotecário, o imóvel penhorado.
Citando o art.º 56º, nº 2 do Código do Processo Civil, sustentou que a execução provida de garantia real sobre bens de terceiro segue directamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia.
Concluiu pela improcedência dos deduzidos embargos e, alegando que os embargantes deduziram pretensão cuja falta de fundamento não ignoram, pediu a condenação destes como litigantes de má fé.
No saneador conheceu-se do mérito da causa, tendo os deduzidos embargos sido julgados procedentes.
Inconformado o embargado interpôs o presente recurso de apelação, tendo na sua alegação formulado as seguintes conclusões:
1- o exequente goza do direito de retenção sobre a fracção dos embargantes para garantia do pagamento da divida do antecessor destes;
2- Tal direito de retenção encontra-se reconhecido e declarado em duas sentenças, uma das quais proferida em acção em que os embargantes não foram parte, nem podiam ser, e a outra em acção de reivindicação intentada pelos próprios embargantes contra o exequente;
3- Os embargantes são parte legitima na execução pois são os actuais proprietários do prédio onerado com o direito de retenção e só com a sua intervenção é possível executar aquele direito real de garantia;
4- Se os embargantes não pudessem ser executados criar-se-ia um circulo vicioso pois os titulares do direito de propriedade nunca teriam a posse do bem e o titular do direito de retenção teria a posse “eterna” do bem mas nunca poderia receber o seu crédito garantido por aquele.
5- Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 56º do CPC e 754º e segs. do C. Civil.

Os embargantes contra-alegaram defendendo a improcedência do recurso.

Corridos os vistos cumpre decidir.

II – Questões a decidir
Em face das alegações do apelante que, como é sabido, delimitam o objecto do recurso, a única questão a decidir é a de saber se os embargantes têm legitimidade passiva na acção executiva a que foram deduzidos os presentes embargos de executado, na qual o exequente, invocando um direito de retenção sobre uma fracção dos embargantes, reconhecido por sentença proferida em acção na qual estes não foram intervenientes, pretende fazer valer aquela garantia.

III – Fundamentos
1. De facto
Estão assentes os seguintes factos:
1. Em 05/02/2001, o aqui embargado intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra E..... e mulher, F....., que recebeu o nº de processo 168/2001 e correu termos no -º Juízo do Tribunal Judicial de......
2. Nessa acção, o então autor, aqui embargado, pedia, além do mais: se declarasse a resolução do contrato de promessa de compra e venda entre eles celebrado e relativo a uma garagem a que corresponde a fracção "G" do prédio sito na Rua......, ....., por incumprimento definitivo e culposo dos réus; se condenasse os réus a pagar ao autor a quantia de Esc: 4.000.000$00, a título de restituição em dobro do sinal passado; se declarasse o direito de retenção do então autor sobre a fracção em causa, para garantia daquela importância.
3. Por sentença de 07/03/2002, foi declarado resolvido o contrato promessa de compra e venda celebrado entre aquele autor e réus, condenando-se estes, E..... e F....., a pagar àquele a quantia de Esc. 4.000.000$00, a título de restituição em dobro do sinal passado, declarando-se ainda que "o autor tem o direito de retenção sob tal fracção até que tal quantia lhe seja paga".
4. Por apenso aos autos dessa acção declarativa, em 05/12/2002, o aqui embargado intentou acção executiva, com processo sumário, contra aqueles E..... e mulher, F....., e contra os ora embargantes, nomeando à penhora a referida fracção autónoma designada pela letra "G" do prédio sito na Rua....., freguesia de......
5. Foi ordenada a penhora do imóvel nomeado, a qual, pela Ap.26/2003..., foi levada ao competente registo, na Conservatória do Registo Predial de......
6. Em acção que os embargantes moveram contra o embargado e que correu termos sob o nº de processo 692/00, no -º juízo do Tribunal Judicial de....., por sentença de 15/07/2002, foi, além, do mais, reconhecido o direito de propriedade dos ora embargantes sobre a fracção autónoma designada pela letra "G", garagem, condenando-se o ora embargado a restituir essa fracção "livre e devoluta de pessoas e bens aos autores, assim que se encontre ressarcido do pagamento do crédito que tem sobre o promitente vendedor (…)".
7. Em 04/01/2000, pela Ap. 46, os aqui embargantes registaram, a seu favor, a propriedade da referida fracção autónoma designada pela letra "G".

2. De direito
A sentença recorrida julgou improcedentes os deduzidos embargos por se ter entendido que não tendo os ora embargantes sido demandados ou chamados a intervir na acção declarativa em que se baseia a execução, na qual foi reconhecido o direito de retenção sobre a fracção da qual estes eram já proprietários (desde data anterior, inclusive, à da propositura da dita acção declarativa), a sentença nela proferida não tem força de caso julgado face aos embargantes.
Beneficiando embora o crédito do embargado de garantia real (direito de retenção) incidente sobre um imóvel propriedade dos ora embargantes e estes não foram parte na acção de condenação, intentada um ano após o registo de aquisição da propriedade da fracção em causa a favor dos embargantes.
Donde se conclui que, não figurando os embargantes como devedores no titulo que serve de base à presente execução, nem podendo contra eles seguir a execução, com base no n.º 2, do artigo 56º, por não ter sido proposta também contra eles a acção declarativa em que a sentença exequenda foi proferida, carecem de legitimidade passiva.
Ou seja, entendeu-se que incidindo a garantia real de crédito sobre bens de terceiro, este terá legitimidade passiva na acção executiva apenas quando o seu direito é posterior à constituição da garantia real ou, se anterior, no caso de contra ele ter sido proposta a acção de condenação em que foi proferida a sentença que serve de base à execução e que nesta tenha sido declarada a existência da garantia.
Opõe-se o recorrente a este entendimento, defendendo, no essencial, que o direito de retenção de que beneficia, embora tenha sido reconhecido por sentença proferida em acção na qual os ora embargantes não tiveram intervenção, onera o próprio bem independentemente do seu proprietário e é oponível erga omnes, independentemente de registo.
A questão em discussão é, pois, a de saber se os embargantes têm legitimidade passiva na acção executiva a que foram deduzidos os presentes embargos de executado, na qual o exequente, invocando um direito de retenção sobre fracção pertencente aos embargantes, pretende fazer valer aquela garantia.
Vejamos:
Em regra a execução tem de ser promovida contra “a pessoa que no titulo tenha a posição de devedor” (art.º 55º n.º 1, do CPC).
Mas a execução por divida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue directamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor (art.º 56º, n.º 2, do CPC).
No caso dos autos o exequente pretende fazer valer o direito de retenção sobre uma fracção pertencente e registada a favor dos embargantes, defendendo que sendo o direito de retenção oponível erga omnes a execução pode seguir directamente contra estes, na qualidade de proprietários da fracção sobre a qual incide a garantia real que pretende fazer valer.
De facto, a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro seguirá directamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia.
E como refere o apelante o direito de retenção é oponível erga omnes (v. nesse sentido, o Estudo do Cons. Eliseu Figueira, publicado na CJ-STJ, ano V, tomo II, p. 5 a 10).
Mas põe-se a questão de saber se os embargante, tinham ou não de ser convencidos da existência daquele direito, na acção declarativa em que foi pedido o reconhecimento do invocado direito de retenção.
Acção essa que foi instaurada em data posterior à da aquisição e registo da fracção em causa a favor dos embargantes e na qual foi demandada apenas a promitente-vendedora que à data já não era proprietária da fracção em virtude de a ter transmitido aos embargantes.
Entendemos que a resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Não basta invocar o direito de retenção para que este seja oponível a um terceiro estranho à relação que lhe dá origem e que não foi convencido na competente acção declarativa da existência daquele direito.
É oponível erga omnes, mas é necessário que a sua existência seja reconhecida por decisão que se imponha ao terceiro contra quem é invocado.
Com efeito, a lei processual consagra o chamado principio da eficácia relativa do caso julgado, isto é, a sentença só tem força de caso julgado entre as partes (art.º 498º, n.º 2, do CPC).
Tem-se todavia entendido que em relação aos não intervenientes na acção, a sentença transitada se impõe aos chamados terceiros juridicamente indiferentes (todos aqueles a quem a sentença não causa qualquer prejuízo jurídico, porque deixa intacta a consistência jurídica do seu direito, embora lhes possa causar prejuízo económico, por sair afectada a solvabilidade do devedor). Mas já se não impõe aos chamados terceiros juridicamente interessados (todos aqueles a quem a sentença causa um prejuízo jurídico, invalidando a existência ou reduzindo o conteúdo do seu direito, e não apenas destruindo ou abalando a sua consistência prática ou económica (V. Manuel de Andrade, Noções Elementares do Processo Civil, ed. 1963, p. 288 e segs.; Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., p. 726 e segs.).
No caso dos autos os embargantes não podem ser considerados terceiros juridicamente indiferentes. Com efeito, o reconhecimento do direito de retenção a favor do exequente, ora embargado, afecta o direito de propriedade dos embargantes, com um ónus que o limita, o que se traduz num prejuízo jurídico e não apenas num prejuízo económico.
Assim, a sentença proferida na dita acção declarativa, em que foi reconhecido o direito de retenção do ora exequente, na qual os embargantes não tiveram intervenção, não é oponível a estes, não podendo, consequentemente a execução prosseguir contra eles, enquanto titulares inscrito da fracção em causa, sem serem convencidos, por decisão que contra eles tenha força de caso julgado da existência do direito de retenção invocado pelo exequente.
Não se impondo aos embargantes a decisão que reconheceu o invocado direito de retenção, não pode quanto a eles, considerar-se existente o invocado direito de retenção sobre a fracção de que são proprietários, para efeito de contra eles poder prosseguir a execução.
Também não está demonstrado que tenham sido convencidos da existência do invocado direito de retenção na referida acção n.º 962/00, por não resultar dos presentes autos que a decisão ali proferida tenha transitado em julgado.
Assim, ainda que com fundamento não totalmente coincidentes, entende-se ser de manter a decisão recorrida, improcedendo as conclusões do apelante.

IV – Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
Custa pelo apelante.
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Porto, 31 de Março de 2004
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge
Rui Fernando da Silva Pelayo Gonçalves