Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0716040
Nº Convencional: JTRP00041102
Relator: MACHADO DA SILVA
Descritores: ACÇÃO DE RECUPERAÇÃO
CRÉDITOS DOS TRABALHADORES
Nº do Documento: RP200802250716040
Data do Acordão: 02/25/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: PROVIDA.
Indicações Eventuais: LIVRO 99 - FLS. 137.
Área Temática: .
Sumário: Os créditos dos trabalhadores anteriores à entrada em juízo da petição inicial da acção de recuperação de empresa, dada a sua natureza de créditos privilegiados, não ficam abrangidos pelas medidas de recuperação financeira acordadas no respectivo processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

1. Na presente acção executiva proposta pelo exequente B…………… contra a executada C…………….., CRL, veio esta deduzir oposição à execução, pedindo a extinção da acção executiva.

Para tanto, alegando, em suma, que o crédito exequendo não é exigível nos termos constantes da sentença homologatória do acordo alcançado no processo declarativo principal e que serviu de título executivo, porquanto, entretanto, foi aplicada à empresa executada a medida de gestão controlada, nos termos da qual ficou decidido o pagamento dos créditos dos trabalhadores estabelecido da forma seguinte: "Pagamento integral do capital em dívida, a todos os trabalhadores e cooperadores, no final do mês de aprovação da medida de recuperação, sem juros, em cinco prestações, anuais, sucessivas e iguais, vencendo-se a primeira um ano após aquela data, sem prejuízo, atenta a especificidade destes créditos, do estipulado no art. 114 do CPEREF".


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O exequente opôs-se, argumentando que aquela medida aprovada no processo especial de recuperação de empresa constitui uma redução do valor do seu crédito e, como tal, a providência aí aprovada não lhe é aplicável.

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Foi proferida decisão, julgando procedente a oposição deduzida e, consequentemente, declarando extinta a instância executiva.

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Inconformado com esta decisão, dela recorreu o exequente, formulando as seguintes conclusões:

a) O título dado a execução declara o crédito do exequente como trabalhador da executada, crédito esse emergente da relação de trabalho, sua violação ou cessação, pelo que nos termos do art. 377º do Código do Trabalho, tal crédito goza de privilégio creditório e garantia real;

b) Os credores com garantia real, no âmbito de providências de recuperação que envolvam a extinção ou modificação de créditos, só vêem o seu crédito afectado se a tal derem o seu acordo – nº 1 do art. 62º do CPEREF;

c) Uma medida de recuperação que preveja o não pagamento de juros e o pagamento definido por cinco anos, modifica e reduz os créditos sujeitos a essa medida.

d) O exequente (credor/trabalhador) não deu acordo a alteração do seu crédito, pelo que, sendo credor com garantia real, a homologação de medida que implique modificação de créditos não abrange o seu crédito; assim,

e) A medida de recuperação é ineficaz no que toca ao crédito do exequente, reconhecido no título dado a execução; e,

f) O título dado a execução não foi objecto de qualquer restrição ou limitação ou mesmo novação; pelo que,

g) Deve ser revogada a sentença recorrida, ordenando-se o prosseguimento da execução,


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Contra-alegou a executada, pedindo a confirmação do decidido.

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Nesta Relação, o Ex.mo Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer no sentido do provimento do recurso, ao qual respondeu a executada.

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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2. Factos provados (atento o teor dos documentos juntos aos autos):

1. O exequente foi trabalhador da executada e, tendo, em 04.08.2004, intentado contra esta uma acção, com processo comum, no ….º Juízo do TT Porto, sob o nº ……/04, a mesma terminou por transacção, celebrada em audiência de julgamento, em 03.11.05, logo homologada judicialmente, aí se obrigando a executada a pagar ao exequente € 63.500,00, a título de compensação global pela cessação do contrato (título dado a execução);

2. A executada obrigou-se ao pagamento da quantia de € 63.500,00, da seguinte forma:

- € 7.500,00, no dia 15/11/2005;

- € 56.000,00, em 19 prestações mensais, iguais e sucessivas, com vencimento ao dia 1 de cada mês, vencendo-se a primeira em 01.12.2005 (título dado a execução);

3. A executada somente pagou as duas primeiras prestações, estando em dívida prestações no montante de € 50.105,28 (título dado a execução).

4. No âmbito de processo especial de recuperação de empresa da Executada, que corre termos com o nº ……/04.9TYVNG, do ….º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, foi aprovada a medida de gestão controlada, com reestruturação financeira homologada judicialmente, em 14.12.2005, que estabeleceu relativamente aos créditos de trabalhadores "pagamento integral do capital em dívida, sem juros, em cinco prestações, anuais, sucessivas, iguais, vencendo-se as primeiras um ano após o trânsito em julgado da sentença homologatória da medida" (certidão de fls. 123-135).

5. O trânsito em julgado de tal medida verificou-se em 22.03.2007 (certidão de fls. 123-135).

5. Na lista de créditos aprovados, à data de 30/09/2006, e sob o título "Trabalhadores" consta o exequente como credor do montante de € 66.269,90 (certidão de fls. 123-135).

6. Em assembleia-geral de credores, realizada em 31.10.2006, foi aprovada revisão do Plano de Gestão Controlada, ficando o pagamento dos créditos dos trabalhadores estabelecido da forma seguinte: "Pagamento integral do capital em dívida, a todos os trabalhadores e cooperadores, no final do mês de aprovação da medida de recuperação, sem juros, em cinco prestações, anuais, sucessivas e iguais, vencendo-se a primeira um ano após aquela data, sem prejuízo, atenta a especificidade destes créditos, do estipulado no art. 114 do CPEREF" (doc. 5 junto com requerimento da executada).

7. O exequente não votou favoravelmente a proposta de gestão controlada, nem sua alteração (doc. 5 junto com requerimento da executada).

8. O processo de recuperação de empresa da recorrida deu entrada em tribunal no dia 06.09.2004 (certidão de fls. 123-135).


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3. Do mérito.

No presente recurso apenas é suscitada a questão do carácter não vinculativo para o recorrente da deliberação de assembleia de credores da recorrida, tomada no âmbito do identificado processo especial de recuperação, que culminou na aplicação da medida de gestão controlada com reestruturação financeira da mesma com reestruturação financeira, a qual foi devidamente homologada por sentença.

Vejamos.

Uma nota prévia, apenas para salientar que, sendo o processo de recuperação da empresa, ora recorrida, instaurado em 06/09/04, é aplicável ao caso em apreço o regime jurídico do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e Falência (abreviadamente designado por CPEREF e de que serão todos os artigos doravante citandos, se outra origem legal não for indicada), aprovado pelo DL nº 132/93, de 23 de Abril – cf. art. 12º, nº 1, do DL nº 53/2004, de 18.03 (que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

Como mostram os factos apurados, os direitos de crédito da titularidade do recorrente, concretamente os emergentes da cessação do contrato de trabalho, embora constituídos, aquando da cessação do contrato de trabalho, o que ocorreu anteriormente a 06.09.04, no entanto, e por serem direitos cujo valor, no momento de tal facto gerador, não podia estar determinado, dependiam de fixação do seu montante por decisão judicial ou acordo na respectiva acção, tal como, aliás, sucedeu, no caso em apreço.

Tal fixação concreta do montante indemnizatório apenas ocorreu em 03.11.05, ou seja, muito posteriormente a 06.09.04, data da propositura da acção de recuperação de empresa.

Isto significa, assim o entendemos, que o crédito em apreço é anterior à entrada da petição inicial da acção de recuperação, por relevar para tal efeito o momento da constituição do crédito, e não o seu posterior reconhecimento judicial.

Sendo anterior à entrada da petição inicial, estava o recorrente abrangido pela medida homologada, tal como dispõe a parte final do nº 1 do art. 70º, ex vi do nº 1 do art. 92º?

Tal como defendem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e Falência Anotado, 2ª edição, em anotação ao art. 70º, “os credores abrangidos pela concordata são todos os credores comuns por créditos anteriores à data da entrada da petição em juízo, ainda que tais créditos só se tenham vencido posteriormente a ela ou mesmo só se vençam a pós a homologação da concordata”.

Justamente o recorrente era credor privilegiado, pelo que não ficava abrangido por tal medida, a menos que a ela tivesse dado o seu acordo, o que não sucedeu.

Na verdade:

No momento da constituição de tal crédito, vigorava, em sede de privilégios creditórios, o art. 377º, nº 1, do CT, que estabelece:

“1- Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:

a) Privilégio mobiliário geral;

b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade”.

É, por isso, aplicável, na sua globalidade, o regime de privilégios creditórios, previsto nos arts. 737º, nº 1, alínea d), do CC, e 377º, nº 1, do CT.

Assim sendo, o recorrente, na data da instauração do processo de recuperação de empresa, em 06.09.2004, era credor privilegiado, pois o seu crédito gozava, nos termos dos citados regimes legais, pelo menos, de privilégio mobiliário geral e imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.

Posteriormente, é certo, por deliberação tomada em assembleia de credores, foi aprovada, por maioria, uma medida recuperatória da recorrida, na modalidade de gestão controlada com reestruturação financeira.

Esta medida de recuperação financeira determinou o pagamento integral do capital em dívida, sem juros, em cinco prestações, anuais, sucessivas, iguais, vencendo-se as primeiras um ano após o trânsito em julgado da sentença homologatória da medida", e, em assembleia-geral de credores, realizada em 31.10.2006, foi aprovada revisão do Plano de Gestão Controlada, ficando o pagamento dos créditos dos trabalhadores estabelecido da forma seguinte: "Pagamento integral do capital em dívida, a todos os trabalhadores e cooperadores, no final do mês de aprovação da medida de recuperação, sem juros, em cinco prestações, anuais, sucessivas e iguais, vencendo-se a primeira um ano após aquela data, sem prejuízo, atenta a especificidade destes créditos, do estipulado no art. 114 do CPEREF".

Tal medida envolveu, assim, não só uma extinção dos juros de mora do crédito do recorrente como uma alteração das condições da sua amortização.

Também ficou apurado que, no âmbito desse mesmo processo de recuperação de empresa, constava como credor comum (trabalhadores), entre outros, o aqui exequente/recorrente.

No entanto, entendemos – seguindo de perto, aliás, a orientação desta Relação, sobre questão idêntica, expressa no recente acórdão, de 12.11.2007, nele coincidindo os mesmos relator e adjuntos deste – que o recorrente não estava sujeito aos termos de tal medida.

Na verdade, dispõe o art. 62º:

“1- As providências que envolvam a extinção ou modificação dos créditos sobre a empresa são apenas aplicáveis aos créditos comuns e aos créditos com garantia prestado por terceiro, devendo incidir proporcionalmente sobre todos eles, salvo acordo expresso dos credores afectados, e podem estender-se ainda, nos mesmos termos, aos créditos com garantia real sobre bens da empresa devedora, se o credor tiver renunciado à garantia.

(…)

3- Qualquer redução do valor dos créditos dos trabalhadores deverá ter como limite a medida da sua penhorabilidade e depender do acordo expresso deles".

Ora, nesta parte, não ficou provado que o trabalhador/recorrente estivesse presente na assembleia de credores e, muito menos, que tivesse dado o seu acordo à medida aprovada, pelo que o mesmo não podia ser afectado pela medida em questão.

Neste sentido, o acórdão do STJ, de 13.04.2005, in www.dgsi.pt.

A tal conclusão não obsta o facto de a decisão que homologou a medida de recuperação em causa ter transitado em julgado.

Na verdade, como se disse no acórdão citado, «a inadmissibilidade da medida torna a sua homologação ineficaz em relação aos trabalhadores que não deram o seu acordo, nos termos do já citado art. 62.º, uma vez que o trânsito em julgado da decisão homologatória só abrange as questões a homologar e não aquilo que a própria lei diz que não é abrangido. Assim o impõem a determinação dos limites objectivos do caso julgado definidos no art. 673.º do CPC, nos termos do qual a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga. A sentença homologatória (…) não pode homologar aquilo que a lei veda e proíbe».

Deste modo, importa concluir que a referida medida é ineficaz em relação ao recorrente e, sendo ineficaz, a executada/recorrida está obrigada a a compensação que lhe era devida, nos termos com ele acordados.

Procedem, pois, nesta parte, as conclusões do recurso.


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Suscitou, no entanto, a recorrida, aquando da sua oposição à execução, subsidiariamente, a questão da suspensão da execução, nos termos do art. 103º.

Tal questão não foi apreciada pelo tribunal recorrido, por prejudicado o seu conhecimento, face à decisão de julgar extinta a execução.

O caso está expressamente previsto no nº 2 do art. 715º do CPC, assim estabelecendo:

«Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhecerá no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários».

Por conseguinte, face a este normativo e uma vez que se decidiu pela procedência da apelação, este acórdão teria que conhecer logo da questão da suspensão da execução, se para tal dispusesse dos elementos necessários.

Vejamos.

Decorre do art. 103º, nº 2, que “durante o período de gestão controlada, manter-se-á o regime de suspensão previsto no art. 29º”.

Trata-se de, pois, de um regime que é excepção à regra geral do art. 29º, daqui resultando a suspensão da execução de créditos, ainda que da titularidade de credores privilegiados, em razão da aprovação da medida de gestão controlada, a qual não pode ter duração superior a dois anos ou, no máximo, de três anos no caso da prorrogação prevista no referido nº 1 do art. 103º.

No caso dos autos, a sentença, proferida em 14.12.2005, homologou a medida de gestão controlada, aprovada pela assembleia de credores, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 54º, nº 1, 56º, nº 2.

Assim, tendo a sentença homologatória sido proferida em 14.12.2005, e, admitindo-se que pode ser requerida a prorrogação, nos termos legais, do prazo daquela medida de recuperação, teríamos que esse prazo termina em 13 de Dezembro de 2008.

Os autos, a tal respeito, não fornecem os elementos necessários para a decisão da pedida suspensão, desconhecendo-se, concretamente, se foi pedida a prorrogação da medida.

Em consequência, inexistindo tais elementos, o conhecimento de tal questão incumbe à 1ª instância.


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4. Atento o exposto, e decidindo:

Acorda-se em conceder provimento ao recurso, assim revogando a decisão recorrida, ordenando o prosseguimento da acção executiva, nomeadamente para o conhecimento da mencionada questão da suspensão.

Custas pela recorrida.


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Porto, 25 de Fevereiro de 2008

José Carlos Dinis Machado da Silva
Maria Fernanda Pereira Soares
Manuel Joaquim Ferreira da Costa