Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0753626
Nº Convencional: JTRP00040553
Relator: PINTO FERREIRA
Descritores: CASO JULGADO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
Nº do Documento: RP200709170753626
Data do Acordão: 09/17/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 310 - FLS 204.
Área Temática: .
Sumário: A decisão da acção em que se exige indemnização da seguradora de veículo automóvel pela responsabilidade extracontratual do seu segurado não constitui caso julgado na acção em que essa seguradora pretende exercer o seu direito de regresso contra eventual responsável, por inexistir identidade de causa de pedir.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório

Companhia de Seguros B………., S.A., com sede na Rua ………., .., Porto, instaurou contra Companhia de Seguros C………., S.A., com sede na Rua ………., n.º .., Lisboa, acção em que pede que se condene a ré a pagar-lhe a quantia de 18.741,26€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alega que por sentença foi o segurado da ré considerado como tendo concorrido para a produção do sinistro em causa, na proporção de 50%, e que, em regime de solidariedade, a aqui demandante pagaria a totalidade da indemnização cabendo-lhe posteriormente direito de regresso contra a Ré, na proporção de metade.
Sucede que, apesar de instada, a demandada não reembolsou a autora das quantias pagas.
Deduziu-se contestação, na qual se impugnam os factos articulados na petição inicial e invoca a absolvição da ex-D………. na primeira acção contra si deduzida, daí retirando não lhe poder ser assacada qualquer culpa ou responsabilidade quanto à pretensão deduzida pelos AA. na acção deduzida por E………. e mulher, que obteve êxito por inteiro, mas apenas contra a ex-F………., ora A., com decisão transitada em julgado, donse a verificação do caso julgado material e inexistência de qualquer direito de regresso.
Replica a autora, invocando a não verificação de qualquer identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir entre as acções, pedindo, em consequência, a improcedência da excepção deduzida e, bem assim, a procedência do pedido, logo em sede de despacho saneador.

Considerando que o estado do processo o permitia, sem necessidade de mais diligências, foi proferida decisão na qual se considera verificada a excepção de caso julgado.
Inconformada, recorre a autora.
Recebido o recurso, juntam-se as alegações. Não há contra alegações
Colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento do direito.
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II - Fundamentos do recurso

Limitam e demarcam o âmbito dos recursos as conclusões que nele são apresentadas - artigos 684º n.º 3 e 690º n.º 1 do CPC -
Daí a justificação para a transcrição das mesmas que, no caso, foram:

I - Em 24 de Dezembro de 1993 ocorreu um acidente de viação, do qual resultaram danos avultados em todos os veículos envolvidos, tendo sido propostas diversas acções judiciais, no sentido do ressarcimento dos danos respectivos,
A SABER:
e) Acção sumária n° 86/95, que correu termos na 2º Secção do Tribunal de Esposende, em que eram AA. E………. e Mulher e R. a Companhia de seguros, D………., hoje C………. .
f) A Acção sumária n° …/95, que correu termos na .ª secção do Tribunal de Esposende e que foi proposta por G………. contra F……….., hoje B……….;
g) Acção sumária …/95, que igualmente correu termos neste Tribunal, e que foi proposta por H………. contra a Companhia de Seguros D………. .
h) Acção sumária ./97, que correu termos na .ª Secção deste Tribunal em que eram AA. E………. e Mulher e R. a Companhia de seguros F………., hoje B………. .
II -A acção sumária n° ../95, que teve como AA. o E………. e a I………. e R. apenas a D………., seguradora do G………., terminou com a absolvição desta R, tendo as restantes acções, em que se encontraram em juízo TODOS OS INTERVENIENTES, sido apensas, correndo termos sob o n° …/95, por ter sido esta a primeira a ter dado entrada no Tribunal. Esta foi julgada, tendo sofrido recurso para o Tribunal de Guimarães, que confirmou a sentença, pelo menos na parte com interesse para os presentes autos.
III - Nesta acção, as responsabilidades no sinistro foram repartidas, no sentido de que quer a conduta do A. J………. (segurado da apelada) quer a conduta do A. H………. (segurado da aqui Apelante) foram concorrentes em S0% para a produção do sinistro, tendo-se igualmente concluído que os AA. E………. e I………. em nada contribuíram para a ocorrência do acidente.
IV - Quanto aos AA. E………. e I………., foi a R. Companhia de seguros F………. condenada a pagar ao E………. a quantia de 4.161.589$00 e à I………. a quantia de 575.737$00, ambos acrescidos dos juros legais desde a citação até integral pagamento, correspondendo estas quantias à totalidade da indemnização devida a estes AA. pelas duas RR (F………. e D……….)., que, por força do regime da solidariedade, a R. F………. pagaria na totalidade, cabendo-lhe posteriormente direito de regresso contra a R. D………. na proporção de metade, de acordo com o disposto na douta sentença de Esposende.
V - A aqui apelante, prevendo a dificuldade na obtenção de tal reembolso, recorreu da sentença, tendo resultado do acórdão da Relação de Guimarães, quanto à condenação pela totalidade no pagamento da indemnização aos AA I………. e E………. que “Esta condenação tem por fundamento legal o disposto no art. 497 do C. Civil e não se divisa que esteja em risco a efectivação do direito de regresso da apelante contra a eventual co-obrigada”.
VI- Pagou assim a ali R. aos AA. aquilo em que foi condenada, ou seja a quantia supra referida acrescida dos juros de mora entretanto vencidos, tendo pago aos AA. a quantia de 35.697,24€ em 26 de Março de 2004, correspondentes à totalidade da quantia em divida e correspondentes juros de mora. Por sua vez, a D………., então já C………., pagou ao H………., por virtude da responsabilidade que no acidente em apreço teve o seu segurado, a sua quota parte indemnizatória, ou seja, 50% do quantum apurado, recusando no entanto e pese embora por diversas vezes interpelada o pagamento dos SO% pagos pela B………. referentes à quota parte do seu segurado, pagamento este efectuado por força do regime da solidariedade. Isto pese embora quer a sentença referente ao processo …/95 quer o acórdão …/03-1 da ia Secção do Tribunal de Guimarães serem unânimes na sua decisão de que a ora A. tem direito ao reembolso de metade do que pagou, direito esse o absolutamente liquido, nos termos do art. 497, n.ºs 1 e 2 do CC.
VII - Na douta sentença recorrida o Tribunal a quo dá razão à aqui apelada, considerando que, nos termos do art. 675, n° 1 do CPC, «havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumprir-se-á a que passou em julgado em primeiro lugar», decidindo que « tendo-se já decidido, face aos factos e considerações jurídicas mencionadas, absolver, por decisão previamente proferida e transitada em julgado, a aqui R. do pedido deduzido por E………. e esposa, cuja condenação agora, nestes autos, pretende o A. ser ressarcida, na proporção do que pagou, há que atender, aqui, ao ali decidido. Como tal, por aplicação dos referidos princípios aqui enunciados, não se pode, pois, reconhecer à A. o direito de ser reembolsada da respectiva quota parte que reclama». Concluindo, como é lógico, pela absolvição da R. do pedido.
VIII — Entende porém a apelante, como defendeu nos presentes autos, que não existe caso julgado relativamente à acção n° ../95 do Tribunal de Esposende. Pois, para que se verifique a existência de caso julgado, é necessária a repetição de uma causa, de tal forma que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior. Nos termos do art. 498 do CPC, para que se verifique a excepção de caso julgado é necessário que exista a «tríplice identidade», ou seja a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, o que não sucede no caso concreto, pelo que necessariamente tem que ser outra a decisão do Tribunal a quo.
IX — Tomando com o ponto de partida as premissas do art. 498º do CPC, não há IDENTIDADE DE SUJEITOS, pois as partes não são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica. No caso estamos perante direito de regresso, que é resultante de uma relação especial existente entre o seu titular e o devedor, não se operando, ao contrário da sub-rogação, uma transmissão dos direitos do credor para o autor da prestação. Dito de outro modo, o direito de regresso é um NOVO direito que nasce a partir do cumprimento, como aliás se retira do n° 2 do art. 498, que considera que só desde esse momento começa a correr a prescrição. Em conclusão, não existe identidade de sujeitos entre as duas acções em causa nos autos.
X - IDENTIDADE DE PEDIDO: Nos termos do n° 3 do art. 497 do CPC, há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. Ora, não há uma coincidência absoluta quantitativa e qualitativa entre os danos invocados para ressarcimento nas duas acções em confronto, sendo que o dano é pressuposto essencial para a efectivação de qualquer tipo de responsabilidade civil No caso em análise, na 1° Acção os AA. peticionavam a quantia de 6.447.896$0OI 32.162,29€, acrescida dos competentes juros de mora, enquanto que nos presentes autos o pedido se cifrou em 18.741,26€, correspondentes a metade da quantia paga na acção …/95 acrescida dos competentes juros moratórios. Não há, portanto, identidade de pedido entre as duas acções em causa nos autos.
XI — Noutra óptica, não se verificaria identidade de pedido e de causa de pedir nas duas acções em análise por serem alegadas e pedidas mais ou menos parcelas indemnizatórias numas e noutras, o que é jurisprudência pacífica, aqui se concluindo que é na realidade distinto o pedido efectuado num lado e noutro.
XII - IDENTIDADE DA CAUSA DE PEDIR: Para que exista caso julgado, exige-se ainda identidade da causa de pedir, sendo esta identidade existente quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, cfr. dispõe o n° 4 do art. 498. É inegável que na acção ../95 a causa de pedir foi a responsabilidade civil por factos ilicitos, sendo a sua fonte directa os arts. 483, n° 1 e segts. do CC. Por seu lado, na presente acção a causa de pedir não é o acidente de viação mas antes o direito de regresso do que a a. pagou em virtude do regime da solidariedade. A causa de pedir é, num dos casos, o ressarcimento dos danos directamente emergentes do acidente; no outro, a exercitação de um direito de regresso, maxime o reembolso das quantias pagas ao lesado.
XIII — No âmbito das acções para efectivação da responsabilidade civil por acidente de viação, uma vez que a vertente dos prejuízos - a par do evento e da culpa/risco - faz parte da causa de pedir (complexa) - «origo petitionis» - não ocorre identidade da causa de pedir ( e do pedido) entre duas acções sobre o mesmo acidente — ressarcimento dos danos directamente emergentes do acidente Versus a exercitação do direito de regresso se os montantes indemnizatórios parcelares alegados (e reclamados) não forem coincidentes, como sucede no caso concreto. Entende-se pois não haver identidade de causa de pedir num e noutro caso.
XIV - Bastaria a falência de um dos pressupostos do m 498 para que não se pudesse falar de repetição da causa, maxime litispendência ou caso julgado. A apelante, e não está sozinha, pensa ter demonstrado que no caso em análise, não há identidade de nenhum dos pressupostos exigidos. Daqui decorre, portanto, que não há caso julgado entre as duas acções em análise.
XV — Na presente acção o que se pede, portanto é que se decida se, face à condenação da aqui apelante na acção …/95 a pagar não só a quota parte de responsabilidade do seu segurado mas ainda a quota parte de responsabilidade que o tribunal entendeu caber ao segurado da apelada C………., - esta tem direito de regresso ou não do que pagou, na proporção de metade, como é referido quer na sentença de P instancia quer no acórdão da Relação de Guimarães, já que é manifesto que estes efectivamente não condenam a apelada ao pagamento da metade do que a apelante pagou, pese embora lhe reconheçam esse direito.
XVI — Nesse processo a B………. acabou por ser condenada não só ao pagamento do que era devido aos AA. em virtude da responsabilidade do seu segurado mas ainda ao pagamento de uma quantia referente a uma quota parte de responsabilidade do segurado da C………., Ora, tal pagamento não se pode enquadrar nos limites do contrato de seguro, já que ao abrigo de um contrato efectuado com um seu segurado a B………. pagou uma responsabilidade civil — a do segurado da C………. — que nunca lhe foi transmitida. Por tal, é manifesto que tem que ser reposta a normalidade, para não dizer a legalidade, fazendo regressar à esfera patrimonial da Apelante uma indemnização paga por conta de quem não é seu segurado nem com ela contratou.
XVII - Verifica-se que, decidindo como decidiu o Tribunal A quo não fez uma correcta subsunção dos factos aos normativos legais, violando, concretamente, os normativos legais dos arts. 497, 498 do CC e 675 do CPC, entre outros.

Termos em que se deve julgar provado e procedente o presente recurso e revogar-se a sentença em crise.
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III - Factos Provados

Para decidir no saneador, considerou o tribunal a quo a seguinte matéria factual:

No dia 24 de Dezembro de 1993, na E.N. .., em ………., ocorreu um acidente de viação, no qual intervieram os veículos Renault de matricula VJ-..-.., conduzido por G………. e seguro na Companhia de Seguros D………., o veiculo motorizado .-EPS-..-.., conduzido por H………. e seguro na ora A. e o Volkswagen ………. de matricula de Andorra nº ….., conduzido por E………. e onde seguia também I………. .
Do referido acidente resultaram danos avultados em todos os veículos envolvidos.
E uma vez que os diversos intervenientes não se entenderam relativamente às responsabilidades inerentes, foram propostas as seguintes acções, no sentido do ressarcimento dos danos respectivos:
- Acção sumária nº ../95, que correu termos na .ª Secção do Tribunal de Esposende, em que eram AA. E………. e Mulher e R. a Companhia de seguros, D………., hoje C………. .
- Acção sumária nº …/95, que correu termos na .ª secção do Tribunal de Esposende e que foi proposta por G………. contra F………., hoje B……….;
- Acção sumária …/95, que igualmente correu termos neste Tribunal, e que foi proposta por H………. contra a Companhia de Seguros D………. .
- Acção sumária ./97, que correu termos na .ª Secção deste Tribunal em que eram AA. E………. e Mulher e R. a Companhia de seguros F………., hoje B………. .
A acção sumária nº ../95, que teve como AA. o E………. e a I………. e R. a D………. terminou com a absolvição desta R.
Quanto às restantes acções, em que se encontraram em juízo todos os intervenientes, foram apensas, correndo termos sob o nº …/95, por ter sido esta a primeira a ter dado entrada no Tribunal.
Esta acção foi julgada, tendo sido proferida sentença em que se julgou a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, condenando-se, em consequência:
- a aí ré Companhia de Seguros F………., a pagar ao A. G………. a quantia de 800.000$00, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, vencidos desde a data de citação e vincendos até efectivo e integral pagamento,
- a aí ré D……….., a pagar ao A. H………. a quantia de 6.754.561$00, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, vencidos desde a data de citação e vincendos até efectivo e integral pagamento,
- a aí ré Companhia de Seguros C………., S.A., a pagar ao A. E………. a quantia de 4.161.589$00, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, vencidos desde a data de citação e vincendos até efectivo e integral pagamento,
- a aí ré Companhia de Seguros C………., S.A., a pagar à A. I………. a quantia de 575.737$00, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, vencidos desde a data de citação e vincendos até efectivo e integral pagamento,
No mais, absolveu-se as rés Companhia de Seguros F……….. e D………. do mais peticionado – doc. fls. 18/126, aqui dado por integralmente reproduzido.
Interposto recurso, foi elaborado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães em que se decidiu, a final, com data de 24.09.03, pela confirmação parcial da sentença apelada, alterando-a apenas na parte relativa aos juros moratórios devidos ao A. H………., considerando serem apenas devidos a partir da data da sentença da 1.ª instância e não da citação – doc. fls. 51, aqui dado por integralmente reproduzido.
A F………., já então B………., pagou aos AA. aquilo em que foi condenada, ou seja a quantia supra referida acrescida dos juros de mora entretanto vencidos.
Concretamente, em 26 de Março de 2004 pagou ao E………. a quantia de 31.359,24€, e à I………. a quantia de 4.338€, correspondentes à totalidade da quantia em divida e correspondentes juros de mora.
Tendo a D………., então já C………., pago ao H………. a sua quota-parte indemnizatória, ou seja, 50% do quantum apurado.
Em 29 de Setembro de 2004 a B………. solicitou à ora R., por carta registada, o reembolso das quantias pagas - docs. fls. 77 e segts, aqui dados por integralmente reproduzidos.
Por escritura pública de 2 de Dezembro de 1997, e de acordo com o Despacho Ministerial 12.683/97, publicado no Diário da República, II série, de 13 de Dezembro, a F………., depois K………. adoptou a denominação de B……….,
Sucedendo, com esta nova denominação, em todos os direitos e obrigações da antecessora.
Por sua vez, a D………. sucedeu à Companhia de Seguros C………., S.A
Na referida acção ../95, que os aí AA. E………. e esposa instauraram contra D………., a ré foi absolvida dos pedidos na sequência da improcedência da acção, por decisão final proferida em 28.03.97, transitada em julgado - doc. fls. 193 e segts, aqui dado por integralmente reproduzido.
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IV - O Direito

Face aos factos dados como assentes e que não foram postos em causa no presente recurso - artigos 712º e 690-A do CPC -, cumpre apenas apurar da procedência ou não do direito de regresso invocado nesta acção e que tem por base a decisão proferida na acção …/95, que considerou existir igual concorrência de culpas entre J………., segurado na aqui ré e H………., segurado da aqui autora, na ocorrência do acidente e se previamente e como impeditivo desse conhecimento ocorre ou não a situação de caso julgado
Isto é, a questão fulcral e única aqui a decidir consiste em se saber se ocorre ou não caso julgado entre a presente acção e aquela que correu termos sob o n.º ../95 em que os aí autores E………. e mulher instauraram contra D………., em que esta foi absolvida dos pedidos, por decisão transitada em julgado.
Vejamos
Para análise da questão suscitada haverá que atender aos ensinamentos doutrinais e jurisprudências sobre a matéria e aos preceitos legais adequados para o efeito dos quais e, desde logo, de enumera o artigo 498º n.º 1 do C.P.C. que explicita:
Repete-se uma causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir
Por seu turno, o seu n.º 2 dispõe.
Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
Ora, na confrontação das duas acções em discussão, diga-se, desde já, que os sujeitos daquela acção não são as mesmas deste, sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, donde não existir aqui identidade de sujeitos – art. 498º n.º 2 do C.P.C -.
Relativamente ao pedido, fixa-se no seu n.º 3:
Haverá identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, 3º, pág. 91 ensina que,
«… a excepção de caso julgado consiste na alegação de que a acção proposta é idêntica a outra - ou a repetição de outra - já decidida por sentença com trânsito em julgado».
No mesmo sentido escreve A. Varela, Manual de P. Civil, 2ª ed., pág. 307, afirmando que,
«…consiste na alegação de que a mesma causa foi já proferida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito que não admite recurso ordinário».
Manuel de Andrade, em Noções Fundamentais de Direito Civil, 1979, pág. 320, também se pronuncia sobre o caso julgado e afirma que
«O que a lei quer significar é que uma sentença pode servir como fundamento da excepção de caso julgado quando o objecto da nova acção, coincidindo no todo ou em parte com o da anterior, já está total ou parcialmente definido pela mesma sentença; quando o autor pretende valer-se na nova acção do mesmo direito.... que já lhe foi negado por sentença emitida noutro processo, identificando esse direito não só através da sua causa ou fonte».
Na posse destes ensinamentos, atentemos agora no caso concreto e se haverá, de facto e de direito, a situação de identidade de pedidos.
Naquela acção, isto é, na que se invoca para arguir o caso julgado, o pedido consistia no pagamento de 31.162,29 €, enquanto neste o pedido consiste no pagamento de 18.741,26€, correspondente a metade da quantia paga na acção …/95, acrescida de juros.

Por fim, vejamos se há identidade da causa de pedir.
O n.º 4 do art. 498 explica que existirá identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procedem do mesmo facto jurídico.
Naquela, ou seja, na acção n.º 86/95 a causa de pedir era a ocorrência de um acidente de viação, logo a responsabilidade civil por factos ilícitos do art. 483º do CC.
E aqui, a causa de pedir é constituída pelo facto ou factos jurídicos que, no caso concreto, geram a responsabilidade pela culpa ou pelo risco - Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. III, pág. 47 -.
Nesta, a causa de pedir assenta no direito de regresso do que a autora pagou por virtude do regime de solidariedade.
Naquele visava-se o ressarcimento dos danos directamente emergentes do acidente e neste visa-se o uso de um direito de regresso, consistente no reembolso de quantia paga por regime de solidariedade.
Por outro lado, naquela acção a ré foi absolvida do pedido pelo que o caso julgado formado e relativo, isto é, fica indissoluvelmente limitado pela causa de pedir invocada - Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. 2º, pág. 323 -.
Também com interesse para o entendimento desta problemática, apesar da sua extensão, transcrevemos o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, em “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ, 325-49 e segts.
«Das relações de inclusão entre objectos processuais nascem as situações de consumpção objectiva; a consumpção objectiva pode ser recíproca, se os objectos processuais possuem idêntica extensão e não recíproca, se os objectos processuais têm distinta extensão; a consumpção não recíproca pode ser inclusiva se o objecto subsequente abrange o objecto antecedente.
Assim, a consumpção recíproca e a consumpção não recíproca inclusiva firmam-se na repetição de um objecto antecedente num objecto subsequente e a consumpção não recíproca prejudicial apoia-se na condição de um objecto anterior para um objecto posterior.
Esta repartição nas formas de consumpção objectiva, acrescida da identidade das partes adjectivas, é determinante para a qualidade da relevância em processo subsequente da autoridade de caso julgado material ou da excepção de caso julgado: quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente; quando a apreciação do objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção de caso julgado no processo posterior. Ou seja, a diversidade entre objectos adjectivos torna prevalecente um efeito vinculativo, a autoridade de caso julgado material e a identidade entre objectos processuais torna preponderante um efeito impeditivo, a excepção de caso julgado»
«............... A excepção de caso julgado visa evitar que o orgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie em decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção de caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (Zweierlei), mas também a inviabilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (Zweimal)»
E mais adiante explicita ainda
«Quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção ou proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição da decisão antecedente».
Ora, os perigos apontados não ocorrem neste processo, pois não existe qualquer forma de consumpção objectiva, recíproca nem não recíproca. A invocada coincidência qualitativa e quantitativa não se verificam.
É que,
«O caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo posterior quando o objecto processual anterior (pedido e causa de pedir) é condição para apreciação do objecto processual posterior......» - Ac. STJ, de 19-2-98, BMJ, 474.405-.
A situação espelhada no presente processo é que a apreciação desta nova acção não pressupõe nem exige a apreciação da matéria já discutida na anterior acção e daí que nem o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, nem a apreciação do objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente.
Ainda sobre esta problemática e analisando também um quadro entre uma acção de responsabilidade por acidente de viação e um direito de regresso, embora com contornos diferentes, convirá reter o afirmado no AC. STJ, de 7-04-2005, em www.dgsi.pt, segundo o qual:
“A causa de pedir («origo petitionis») - ressarcimento dos danos directamente emergentes do acidente versus a exercitação do direito de regresso (reembolso de quantias pagas ao lesado) - e o pedido - montantes indemnizatórios parcelares não são pois em tudo coincidentes e idênticos. Vem aqui a propósito à colação o recente Ac deste Supremo Tribunal datado de 13-5-04, in Proc 948/04 - 2ª SEC, citado pela própria agravante - para cuja fundamentação se remete - , o qual a respeito da causa de pedir neste tipo de acções considerou: " uma vez que a vertente dos prejuízos - a par do acidente e da culpa/risco - faz parte integrante da causa de pedir (complexa) das acções indemnizatórias por acidente de viação, não há identidade da causa de pedir (e consequentemente do pedido) entre duas acções sobre o mesmo acidente, mas em que os prejuízos alegados (e pedidos) não coincidem"(sic).
Sendo aí sumariado que:
“No âmbito das acções para efectivação de responsabilidade civil por acidente de viação, uma vez que a vertente dos prejuízos - a par do evento e da culpa/risco - faz parte integrante da causa de pedir (complexa) - «origo petitionis» - , não ocorre identidade da causa de pedir (e do pedido) entre duas acções sobre o mesmo acidente - ressarcimento dos danos directamente emergentes do acidente versus a exercitação do direito de regresso (reembolso de quantias pagas ao lesado) - se os montantes indemnizatórios parcelares alegados (e reclamados) não forem coincidentes”

Portanto, a tríplice identidade exigida pelo art. 498º do CPC não se verifica, nem mesmo numa análise de casos limites, e daí que a decisão recorrida em que considerou ocorrer caso julgado não possa permanecer, havendo pois de a revogar.
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V - Decisão

Pelos fundamentos expostos, acorda-se em se julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, por considerar que se não verifica aqui caso julgado.
Custas pela apelada
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Porto, 17 de Setembro de 2007
Rui de Sousa Pinto Ferreira
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Manuel José Caimoto Jácome