Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0420181
Nº Convencional: JTRP00036181
Relator: CÂNDIDO LEMOS
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ALD
APREENSÃO
Nº do Documento: RP200402100420181
Data do Acordão: 02/10/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 8 V CIV PORTO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: A providência cautelar para devolução da viatura no caso de incumprimento de contrato de A.L.D. e resolução do mesmo não se justifica porquanto a lesão do direito à restituição está salvaguardada no contrato com a cláusula penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

Na -ª Vara Cível do....., -ª secção, R....., L.DA, com instalações na Avenida..... no....., requer providência cautelar não especificada contra Gonçalo....., residente na Rua....., em....., pedindo a imediata apreensão, sem audição do requerido, e a restituição ao requerente da respectiva posse, uso e fruição, da viatura ligeira, marca Mitsubishi, modelo ...., com a matrícula ..-..-NZ e seus documentos e suas chaves, uma vez que tendo sido resolvido o contrato de aluguer do veículo sem condutor celebrado entre requerente e requerido, este não procedeu à restituição do objecto do mesmo, apesar de para tal ter sido interpelado, o que impossibilita o requerente de vender ou realugar o veículo, constituindo lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, a depreciação do mesmo e o risco do seu desaparecimento definitivo.
Considerada justificada a não audição do requerido e produzida a prova apresentada, foi proferido despacho que indeferiu totalmente a providência requerida.
Inconformado o requerente apresenta este recurso de agravo e nas suas conclusões formula as seguintes conclusões:
1.ª- A perda de garantia não pode ser utilizada para aferir o preenchimento do requisito da lesão grave e dificilmente reparável, no âmbito de um procedimento cautelar em que é requerida a restituição da posse e fruição de um veículo, com o fundamento de que o direito à indemnização permanece intocado.
2.ª- Nesse caso esvaziar-se-ia o sentido útil do procedimento cautelar inominado, no caso de bens fungíveis, passando o meio processual adequado nestes casos a ser o Arresto.
3.ª- Ainda que a perda de garantia patrimonial seja considerada relevante, o que é certo é que o requerido deixou de pagar os alugueres, o que constitui prova perfunctória suficiente para que se possa aferir da diminuição de garantia patrimonial.
4.ª- A perda de garantia patrimonial é despicienda num procedimento cautelar em que é requerida a restituição da posse de um veículo, pois o que está aqui em causa é a restituição da coisa e não o arcaboiço financeiro do requerido para indemnizar a requerente.
5.ª- Pelo simples facto de se tratar de um bem fungível e susceptível de ser indemnizável, não se pode afirmar que a lesão produzida com o desapossamento seja efectivamente reparada.
6.ª- A perda do exercício do poder de dominus sobre a coisa, a perda do poder soberano sobre algo, não é ressarcível com qualquer entrega em dinheiro; isto poderá compensar a lesão, mas nunca repará-la.
7.ª- O ordenamento jurídico dá primazia à restauração natural sobre a indemnização em dinheiro, donde resulta que, também neste caso, a solução acertada será assegurar a efectiva restituição da coisa, prevalecendo esta opção sobre qualquer indemnização que subsista a final.
8.ª- Da decisão recorrida constam fundamentos suficientes que nos permitem afirmar que a lesão é grave e dificilmente reparável, ainda que não seja levada em consideração a lesão da propriedade como dano em si mesmo.
9.ª- O fundado receio de lesão foi consubstanciado na privação do uso de veículo, na sua eventual perda total e na desvalorização do mesmo com o simples decurso do tempo.
10.ª- Esta lesão, por si só, é grave e dificilmente reparável.
11.ª- Com efeito, pela simples privação do uso a Recorrente encontra-se impedida de rentabilizar o seu activo automóvel, designadamente, vendendo-o, ou até re-alugando-o.
12.ª- No caso de perda total, a Recorrente vê o seu activo diminuído, tendo apenas direito ao valor de mercado do veículo (isto no caso do seguro continuar a ser pago...). Ora, o valor de mercado é sempre substancialmente inferior ao que a Requerente conseguiria obter através da venda directa do veículo, ou até através do re-aluguer.
13.ª e 14.ª- Assim, também, o simples acidente, ainda que não signifique perda total, terá sempre um efeito depreciativo no valor do veículo já que, apesar da reparação, o valor venal do veículo decresce automaticamente pela mera verificação do evento.
15.ª- Da mesma forma, a desvalorização do veículo pelo simples decurso do tempo e pelo seu uso, constitui lesão grave e dificilmente reparável já que, como é sabido, não é possível retirar os Km percorridos, nem rejuvenescer um automóvel.
16.ª- Destarte, os efeitos da privação do uso, da possibilidade de perda total, ou de mero acidente e da desvalorização pelo simples uso, consubstanciam o pressuposto de lesão grave e dificilmente reparável, uma vez que são factores que ameaçam e colocam em causa o exercício do direito de propriedade e que, na eventualidade da produção de qualquer evento lesivo, o extinguem por completo.
17.ª- Para além do mais, a privação do uso e a desvalorização entretanto ocorrida são lesões dificilmente contabilizáveis e que, por via de regra, escapam ao ressarcimento em sede de indemnização.
18.ª- E, ainda que contem em sede de indemnização, jamais conseguirão reparar eficazmente a lesão produzida no exercício do direito de propriedade, pois a principal lesão é a perda do exercício do dominus, o que, naturalmente, constitui lesão de reparação difícil.
19.ª- No entanto, o que é certo, é que o requerido não tem título para circular com o veículo, pelo que deveria ser decretada a sua imediata apreensão.
20.ª- Ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, a resolução do contrato de aluguer de veículos sem condutor, não tem que ser obrigatoriamente decretada pelo tribunal.
21.ª- O regime do contrato de aluguer de veículo sem condutor, previsto no DL 354/86, prescreve no n.º 4 do art. 17.º "é igualmente lícito à empresa de aluguer retirar ao locatário o veículo alugado no termo do contrato, bem como rescindir o contrato, nos termos da lei, com fundamento em incumprimento das cláusulas contratuais”
22.ª- A remissão feita neste artigo só poderá ser entendida como feita para a resolução nos termos gerais pois, aplicando-se este diploma também aos alugueres de duração extremamente limitada, não faria sentido que o legislador impusesse o recurso a uma penosa via judicial.
23.ª- O regime a aplicar nunca poderá ser o da locação tout court, pois a aplicação deste regime em bloco, coloca de fora uma especificidade do ALD, que é a imputação dos alugueres para financiamento de uma aquisição a final.
24.ª- Por esta razão o ALD é um contrato atípico, cujo regime será aquele que resultar da convenção entre as partes.
25.ª- A cláusula 10.ª prevê que a recorrente poderá resolver o contrato por carta registada com A.R., no caso de falta de pagamento pontual dos alugueres.
26.ª- Por recurso à aplicação analógica do regime do contrato de leasing, mais concretamente do art. 17° (DL 149/95), chegaríamos à mesma solução.
27.ª- Não obstante não ser esse o entendimento, e recusar-se a resolução que não por via judicial, subsiste ainda o direito à requerida apreensão pois, face ao alegado, existe fundada expectativa de que a resolução venha a ser decretada na acção a propor.
Pugna pela revogação do despacho, sendo decretada a providência.
O despacho foi tabelarmente mantido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Da instância vêm dados como provados os seguintes factos:
1º- A Requerente dedica-se ao aluguer de veículos automóveis.
2º- No exercício da sua actividade, por contrato celebrado em 01/09/1999, a Requerente alugou e entregou ao Requerido o veículo de marca MITSUBISHI, modelo...., com a matricula ..-..-NZ, conforme a cláusula 1ª do contrato.
3º- Pelo prazo de um mês, automaticamente renovável por outros 60 periodos iguais.
4.º- Mediante o aluguer mensal de Esc. 57.876$00.
5º- Vencendo-se os alugueres no primeiro dia útil do mês a que disser respeito.
6º- A pagar por transferência bancária de uma conta do Requerido para a conta bancária da Requerente.
7º- O Requerido não pagou o aluguer vencido em FEVEREIRO/2003.
8º- Nem qualquer dos subsequentes.
9º- Pelo que a Requerente interpelou o Requerido em 27.06.2003 para efectuar o pagamento da quantia então em falta, restituir à Requerente o veiculo automóvel e que em caso de manter o incumprimento, o contrato era resolvido em 12.06.2003.
10º- O Requerido apesar de interpelado para restituir o veiculo, continua a frui-lo, a seu bel-prazer.
11º- Trata-se de um objecto que se desvaloriza com o tempo e se desgasta com o seu uso.
12º- O veículo pode ser conduzido por terceiros.
13º- Os anos de registo do veículo automóvel e o seu USO desvalorizam-no, gradual e comercialmente.
Cumpre agora conhecer do objecto do recurso, delimitado como está pelas conclusões das respectivas alegações (arts. 684.º n.º3 e 690.º n.º1 do CPC).
No despacho posto em crise foi entendido que não existiam factos provados integradores de um dos requisitos comuns a todas as providência cautelares: lesão grave e de difícil reparação do direito do requerente à restituição do veículo locado em consequência da conduta do requerido, uma vez que aquele continua a ter direito aos alugueres do veículo até efectiva entrega ou restituição e a normal depreciação do veículo pelo uso será compensada pelos montantes devidos a título de indemnização.
Entende, porém, o agravante que todos os requisitos da providência se encontram preenchidos, para além de que não será a garantia patrimonial que está em causa, mas o direito de propriedade, dificilmente reparável; a resolução do contrato é legal e eficaz, carecendo o requerido de título para circular com a viatura, que deverá ser apreendida.
Vejamos, então. Diga-se desde já que seguimos de perto o que deixámos escrito no Acórdão proferido no processo 4494/2003- 2.ª Secção, sendo apenas diferente o 2.º adjunto.
*
Salvo o devido respeito pela opinião em contrário, não vemos razão para criticar o decidido, o qual segue de perto os Acórdãos desta Relação de 3/2/2003 e de 27/2/2003 nos processos, respectivamente, n.º 3216/02 da 5.ª Secção e 777/03 da 3.ª Secção. Citar-se-à no mesmo sentido o Acórdão proferido em 10 de Julho de 2003 no processo n.º 3616/03 desta secção, com um voto de vencido que chama à colação o disposto no art. 17.º n.º 4 do DL n.º 354/86 de 23 de Outubro, que, salvo o devido respeito, só tem aplicação no caso de não entrega do veículo alugado após o termo do contrato, situação que não é aqui alegada nem discutida (situação que é realçada por Rui Pinto Duarte in Escritos Sobre Leasing e Factoring, Principia, 1.ª edição Janeiro de 2001, pág.169 - tutela privada confinada a contratos cujo prazo tenha expirado).
Coma firma Anselmo de Castro, in Processo Civil Declaratório, pág. 130, as providências cautelares têm a sua justificação no princípio geral do sistema processual civil segundo o qual a demora de um processo não deve prejudicar a parte que tem razão; o processo deve dar ao autor, quando vencedor, a tutela que ele receberia se não ocorresse o litígio. Por outras palavras, para que as sentenças não sirvam só para emoldurar e pendurar, mas resolvam os problemas concretos das pessoas que recorrem aos Tribunais.
Assim, quando se comprove o “periculum in mora” devem ser requeridas e decretadas as medidas provisórias que visem acautelar prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação.
No caso, pretende-se evitar que a permanência dos requeridos na recusa da devolução do veículo em consequência da resolução de um contrato de aluguer sem condutor cause lesão grave e de difícil reparação à requerente.
O contrato em causa, subscrito pelas partes, encontra-se a fls. 8 e 9 dos autos e pelas cláusulas 10.ª.6 e 11.ª está assegurada a indemnização por mora do locatário na devolução do bem objecto do contrato - igual a 50% das rendas em atraso, para além de o dobro do que seria devido se o contrato se mantivesse válido durante o período de desapossamento.
O que a recusa da entrega do veículo provoca é um agravamento da indemnização a título de cláusula penal, da responsabilidade do requerido.
O que estará em causa é não a insolvibilidade do requerido, mas sim a lesão do direito à restituição.
Esta foi salvaguardada pelas partes, com uma cláusula penal, sendo que a apreensão ora requerida a ia resolver de forma definitiva, sem necessidade de posterior acção para entrega.
Sempre se dirá que se acompanha o agravante na sua posição sobre a legalidade da resolução do contrato, sendo certo que a questão não interfere com a decisão de indeferimento da pretensão.
Com efeito o requerente procedeu à resolução do contrato de aluguer de longa duração nos termos acordados pelas partes, tal como lho permite o disposto no art. 432.º do CC. Não tem aqui aplicação o disposto no art. 1038.º invocado na decisão. De todos os modos, esta sempre lhe reconheceu o direito de propriedade sobre o veículo e o direito às indemnizações e rendas em falta.

DECISÃO:
Nestes termos se decide negar provimento ao agravo, mantendo-se a decisão dos autos.
Custas pelo agravante.

PORTO, 10 de Fevereiro de 2004
Cândido Pelágio castro de Lemos
Armindo Costa
Alberto de Jesus Sobrinho