Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0350455
Nº Convencional: JTRP00036752
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
ALTERAÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
POSSE DE ESTADO
REQUISITOS
Nº do Documento: RP200402190350455
Data do Acordão: 02/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J AROUCA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - O Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto, em que assenta a decisão recorrida, caso seja evidente a má apreciação e valoração feitas na 1ª instância, já que a reapreciação da prova (gravada) está limitada pela ausência de imediação e oralidade (directa), princípios da maior relevância na formulação do processo de convicção probatória.
II - A posse de estado depende da verificação, cumulativa, dos requisitos: - reputação como filho pelo pretenso pai; tratamento como filho pelo indigitado pai e reputação como filho pelo público ("nomen", "tractatus" e "fama").
III - Na investigação de paternidade, com base na posse de estado, incumbe ao réu, alegar e provar a caducidade da acção e ilidir as presunções do artigo 1871 n.1 do Código Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Armandino ................, intentou em, 15.7.2002, pelo Tribunal Judicial da Comarca de ..........., acção declarativa de condenação com processo ordinário contra:

Maria .............

Alegando, fundamentalmente, o seguinte:

- no dia 18.2.2002 faleceu Alfredo ................., casado com a Ré, desde 6.8.1974, sem deixar descendentes desse casamento, sendo a demandada, para já, a única e universal herdeira;

- porém, no dia 11.2.1957, nasceu o Autor, então registado apenas como filho de Inês ............., mas também filho do falecido, em razão das relações sexuais e exclusivas de cópula que aquela manteve com este, nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do Autor;

- o Alfredo ............ nunca deixou de admitir às pessoas da sua intimidade a paternidade do Autor e passou a contactar directamente com este, ou a perguntar por ele, quando o Autor emigrou para o Brasil, escrevendo-lhe também para este país.

- muitas vezes trataram-se por “pai” e por “filho”;

- o falecido chegou a dar dinheiro ao Autor apesar de saber que não era pessoa necessitada, interessando-se também pela sua saúde e sucesso na vida;

- designadamente, em finais de 2001, conviveram um com o outro, nomeadamente num almoço em ............., onde se trataram por “pai” e por “filho”, na presença de outras pessoas;

- toda a gente, ou as pessoas da freguesia do e das redondezas, atribuem a paternidade do Autor ao falecido.

Concluiu, pedindo pela procedência da acção e o consequente reconhecimento judicial da filiação do Autor relativamente ao Alfredo ............

Citada a Ré contestou a acção nos termos que constam de fls. 16 a 21, por impugnação e por excepção (caducidade do direito).

Alegou, nomeadamente:

- nunca o marido da Ré se declarou pai de alguém, tratou ou reconheceu alguém como filho, designadamente o Autor;

- o último encontro que o falecido teve com o Autor foi, em Maio de 2001, e a carta junta com a petição inicial, atribuída ao Alfredo ............. não é verdadeira ou genuína, do seu punho, tendo sido imitada a sua letra e assinatura;

- a acção é extemporânea, nos termos do art. 1817° do Código Civil, aplicável por força do art. 1873°, do mesmo código.

Concluiu pela improcedência da acção.

A Ré replicou, reafirmando e desenvolvendo o alegado na petição inicial e defendendo a tempestividade (não caducidade) da acção, assim se opondo à excepção invocada na contestação.

Foi elaborado despacho saneador tabelar, seguido de factos assentes e de base instrutória, sem reclamação.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal, em Tribunal Singular, com registo de prova.
***

A final foi proferida sentença que julgou a acção procedente, por provada e em consequência, declarou que o Autor, Armandino ................, é filho do falecido Alfredo .................., devendo proceder-se ao averbamento registral da paternidade e avoenga paterna no seu assento de nascimento.
***

Inconformada recorreu a Ré que, alegando, formulou as seguintes conclusões:

Primeira: As respostas dadas aos quesitos 1°, 2°, 4°, 5° a 17° devem ser alteradas em conformidade com uma apreciação crítica dos depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento, e tomando em consideração toda a prova, merecendo uma resposta negativa os quesitos 1°, 2°, 4°, 5°, 7°, 8°, 9°, 10°, 11°, 13°, 14°, 15° e 17°.

Segunda: Tendo o Tribunal da Relação gravação da audiência, cópia integral dactilografada de toda a audiência, e tendo todos os documentos juntos ao processo, tem toda a prova disponível para poder modificar aquelas respostas ao abrigo do disposto nos artigos 690°-A, n°1, b) e 2 e 712° do Código de Processo Civil.
Devem especialmente ser atendidos os depoimentos das testemunhas arroladas pela Ré, Eng. Salvador, Prof. Albino ............. e Eng. Manuel ..........., as quais afirmaram ter estreita relação de amizade com o falecido Professor e que o extinto Professor, directamente questionado sobre se tinha filhos, lhes respondeu redondamente que não tinha, em contrário do que vem respondido ao quesito 17°.

Terceira: As respostas dadas, constantes do processo, na parte referente aos quesitos 5° a 17° não tiveram uma fundamentação especificada e mostram-se baseadas em depoimentos profundamente falíveis, desatendendo, sem fundamentação crítica os depoimentos as testemunhas arroladas pela Ré.

Quarta: Não podem servir de fundamentação de convicção ao julgador num processo de investigação de paternidade impressões recolhidas de depoimentos assentes em parecenças físicas, de apelidos ou de vozes de familiares do investigante.

Quinta: Competia ao Autor requerer e promover exame científico com vista a demonstrar que era filho biológico do investigando, já falecido.

Sexta: Não pode ser havido como tratamento de filho, a existência dum testamento em que o testador legava um prédio, tomando em conta que no mesmo testamento a outra pessoa legava oito prédios e, sobretudo, que tal testamento foi revogado.

Sétima: A paternidade fundada em tratamento dispensado pelo investigado ao investigante deve ser inequívoca, sabida e conhecida da generalidade das pessoas, especialmente daquelas que com o investigado tinham maior contacto, amizade e convivência.

Oitava: Não traduz tratamento de pai para filho, um contacto esporádico de frequência inferior a uma vez por ano, havida em restaurante, sem que haja entre os dois uma demonstrada relação de conhecimento, de proximidade, conhecida da generalidade das pessoas e que não permita que o investigado negue a paternidade às pessoas que directamente o perguntem.

Nona: A decisão da matéria de facto está errada.

Décima: O Autor não é filho do investigado, não fez prova de tal facto, nem por ele foi tratado como filho.

Décima primeira: A decisão recorrida viola de modo flagrante o disposto nos arts. 653°, 2 e 659°, n°3, do Código de Processo Civil, do que resulta a aplicação de disposições que não deveriam ser aplicadas.

Termos em que deve o Tribunal da Relação do Distrito alterar as respostas dadas à matéria de facto, e revogar a decisão recorrida, proferindo outra que faça improceder a pretensão do Apelado.

Assim pede e espera por ser de Justiça.

O Autor contra-alegou pugnando pela confirmação da sentença.
***

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir tendo em conta a seguinte matéria de facto:

1) - No dia 18.02.2002, no Hospital de ............, em .............., faleceu Alfredo ..............., que foi casado no regime imperativo da separação de bens com a Ré; casamento ocorrido em 06.08.1974 – A) dos Factos Assentes.

2) - Do dissolvido casamento não existem quaisquer descendentes e qualquer liberalidade ou doação, pelo que a Ré é a universal herdeira da herança deixada pelo falecido – B).

3) - No dia 11.02.1957, na freguesia do ..........., Comarca de ............., nasceu o Autor, que foi registado na Conservatória do Registo Civil como filho apenas de Inês ............., então residente no lugar da ............, da freguesia ........... – C).

4) - O nascimento do Autor ocorreu após o termo normal da gravidez que resultou à sua mãe Inês .............., em consequência de relações sexuais havidas entre ela e o falecido Alfredo – resposta ao quesito 1º da Base Instrutória.

5) - Relações sexuais ou de cópula mantidas em exclusivo com o dito Alfredo, nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o nascimento do Autor – resposta ao quesito 2º da Base Instrutória.

6) - Antes de atingir os dezoito anos de idade o Autor ia à feira a ............ e encontrando-se com o falecido, este dava-lhe pequenas quantias em dinheiro – resposta ao quesito 4º da Base Instrutória.

7) - Logo que o Autor emigrou para o Brasil em 1975, o falecido Alfredo ............... procurou saber onde o Autor se encontrava, para com ele comunicar quer por via postal quer através de amigos – resposta ao quesito 5º da Base Instrutória.

8) - Enquanto o Alfredo ............... foi vivo, trocou, sucessivamente, diversa correspondência postal com o Autor, encontrando-se este no Brasil – resposta ao quesito 6º da Base Instrutória.

9) - Sempre que regressava a Portugal, o falecido procurava o Autor na sua residência, com assiduidade, no lugar ............., freguesia ............, convidando-o com frequência para almoçar e merendar, tudo sempre pagando e mostrando grande afecto e admiração e pedindo a convivência assídua – resposta ao quesito 7º da Base Instrutória.

10)- Algumas recentemente, há menos de três anos – resposta ao quesito 8º da Base Instrutória.

11) - Muitas vezes o falecido, considerando e chamando o Autor como filho, mostrou-lhe as propriedades que possuía em ............., lugar de ............., freguesia ........... e as casas em ............. – resposta ao quesito 9º da Base Instrutória.

12)- Perante as pessoas mais confidentes o falecido afirmava quando o Autor estava para chegar do Brasil “vem aí o meu Armandinho” – resposta ao quesito 10º da Base Instrutória.

13) - Em carta datada de 24.02.1983, escrita pelo punho do falecido ao Autor, aquele aconselhava este a regressar para Portugal dizendo: “assentares uma nova vida aqui com a própria administração tua de tudo o que nos pertence e que muito custou a adquirir” e mesmo na parte final escreve “do teu pai muito amigo” – resposta ao quesito 11º da Base Instrutória.

14) - O falecido Alfredo deu-lhe dinheiro em 1996, através de cheque bancário sacado sobre a conta n°............, do ex-Banco .......... (hoje Banco 1..........), agência de ............... – resposta ao quesito 12º da Base Instrutória.

15)- Essa quantia era para comprar uma lembrança para levar para o Brasil, tendo o falecido de outras vezes dado outras prendas, inclusive, medalhas em ouro – resposta ao quesito 13º da Base Instrutória.

16) - O falecido Alfredo sempre se interessou pelo estado de saúde e pelo sucesso de vida do Autor – resposta ao quesito 14º da Base Instrutória.

17) - O Autor, tendo-se deslocado a Portugal, em finais de 2001 e a pedido do falecido, tendo-se encontrado em ..............., onde almoçaram, pagando o falecido o almoço e estando presente outras pessoas, tratando-lhe e chamando-lhe filho, informou-o que tinha revogado ou desfeito um testamento que o beneficiava mas que ia fazer outro em que o beneficiava com outros bens – resposta ao quesito 15º da Base Instrutória.

18) - A generalidade das pessoas da freguesia ........... e das redondezas, atribuem a paternidade do A. ao falecido – resposta ao quesito 16º da Base Instrutória.

19) - O falecido Alfredo nunca deixou de admitir, pelo menos à maior parte das pessoas da sua intimidade, a paternidade do Autor – resposta ao quesito 17º da Base Instrutória.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões do recorrente que se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se em função dos depoimentos das testemunhas indicadas devem ser alteradas as respostas aos quesitos 1º, 2º, 4º, 5º, 7º a 11º, 13º a 15º e 17º, considerando-se “não provados”, com base nos depoimentos das testemunhas arroladas pela Ré – Eng. Salvador ............., Professor António ............., Albino ........... e Eng. Manuel ..........;

- se as respostas aos quesitos 5º a 17º não tiveram fundamentação;

- se os factos provados revelam ter havido, por parte do pretenso pai, relativamente ao Autor, um tratamento inequívoco como filho.

Vejamos:

Os quesitos em causa foram considerados provados, respeitando o 1º e 2º à existência de relações sexuais exclusivas, entre a mãe do Autor e o pretenso pai, durante o período legal de concepção, respeitando os demais a factos donde se pudesse concluir acerca do tratamento que o falecido Alfredo ............. votava ao Autor, que pretende que se considere ser filho dele, nascido de relacionamento sexual mantido exclusivamente, com sua mãe Inês .............

O Autor nasceu em 1.2.1957.

Os depoimentos foram transcritos pelo que importa apreciar aqueles que, concretamente, o apelante indica como sendo hábeis e idóneos para alterar os concretos pontos da matéria de facto, em cumprimento do ónus imposto pelo art. 690º-A do Código de Processo Civil.

Antes de entrarmos na respectiva abordagem importa frisar que a apreciação da matéria de facto na 2ª instância, não se destina a refazer o processo de convicção, mas antes a sindicar a matéria em questão e alterá-la se os elementos de prova, pela sua evidente má apreciação, impuserem diferente resposta.

O assegurar de um duplo grau de jurisdição quanto à apreciação da matéria de facto foi tema de larga controvérsia no direito processual havendo, até, quem nessa omissão, visse uma violação do direito a um julgamento justo, sabidas que eram as limitações legais existentes quanto à possibilidade da alteração pela Relação da matéria de facto – primitiva redacção do art. 712º do Código de Processo Civil.

O DL. 39/95, de 15.2 inovou, estabelecendo a possibilidade de as audiências finais e os depoimentos, informações e esclarecimentos nelas prestados serem gravados, [documentação da prova], “pondo termo ao peso excessivo que a lei processual vigente confere ao princípio da oralidade e concretizando uma aspiração de sucessivas gerações de magistrados e advogados” – citámos do preâmbulo do citado DL.

Esse diploma aditou ao Código de Processo Civil, então vigente, os arts. 522º-A, 522º-B, 522º-C, 684º-A e 690º-A, atinentes ao registo dos depoimentos, à forma de gravação e ao modo como se deveria proceder para impugnar a matéria de facto, em sede de recurso.

Após a Revisão de 1995/96 do Código de Processo Civil o fulcral art. 690º-A passou a ter a seguinte redacção:

[“Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto”]

1- Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda.
3 - Na hipótese prevista no número anterior, incumbe à parte contrária, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder, na contra-alegação que apresente, à transcrição dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente.
4- O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso nos termos do nº2 do art. 684º-A”.

A apreciação da prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais “elevado” que os que se correm em 1ª Instância, onde são observados os princípios da imediação, da concentração e da oralidade, já que, no caso em apreço, a gravação/transcrição não permite colher, por intuição, tudo aquilo que o Julgador pode apreender, quando tem a testemunha ou o depoente diante de si.

Quando o Juiz tem diante de si a testemunha ou o depoente de parte, pode apreciar as suas reacções, apercebe-se da sua convicção e da espontaneidade, ou não, do depoimento, do perfil psicológico de quem depõe; em suma, daqueles factores que são decisivos para a convicção de quem julga que, afinal, é fundada no juízo que faz acerca da credibilidade dos depoimentos.

Socorremo-nos das doutas palavras que, acerca da imediação, escreve Antunes Varela, no “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 657:

“Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar”.

No domínio da prova testemunhal vigora o princípio da livre apreciação das provas – art. 396º do Código Civil - segundo a convicção que o julgador tenha formado acerca de cada facto – art. 655º, nº1, do Código de Processo Civil - sem embargo do dever de as analisar criticamente e especificar os fundamentos decisivos para a convicção adquirida – art. 653º, nº2, do citado diploma.

A Relação só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, reapreciada a matéria de facto, for evidente a grosseira apreciação e valoração que foi feita na instância recorrida, isto pelo facto de o Julgador da 1ª Instância dispor de um universo de elementos não apreensíveis na gravação que são decisivos para o processo íntimo de formulação da convicção que não se satisfaz com a, diríamos, crua audição dos depoimentos não tendo a 2ª Instância possibilidade de intuir ou de apreciar para lá daquilo que fica registado, o que é deveras redutor no processo de formulação da convicção.

Ora, cumpre saber se a prova produzida, apreciada com as “limitações” referidas, foi correctamente valorada.

“Por maior que possa ser o escrúpulo colocado na procura da verdade e copioso e relevante o material probatório disponível, o resultado ao qual o juiz poderá chegar conservará, sempre, um valor essencialmente relativo: estamos no terreno da convicção subjectiva, da certeza meramente psicológica, não da certeza lógica, daí tratar-se sempre de um juízo de probabilidade, ainda que muito alta, de verosimilhança (como é próprio de todos os juízos históricos”- Liebman, ‘Manual de Direito Processual Civil, 1973, Milano”.

É, pois, neste contexto que ajuizaremos da pretensão da apelante.

Os factos reportam-se, muitos deles, a datas de há dezenas de anos, pelo que a falibilidade dos testemunhos e a análise da sua credibilidade mais intuição e perspicácia exigem do julgador. Com efeito, as lacunas de memória, a hesitação quanto a datas e factos emergem com maior nitidez.

Daí que a imediação e a oralidade sendo impossíveis de observar na reapreciação da matéria de facto na 2ª Instância desfavorecem a apreciação, circunstância que não ocorreu na instância recorrida.

A apelante, apesar de ter indicado na conclusão 2ª, os depoimentos das testemunhas que em seu entender devem fundamentar resposta diversa aos quesitos que indicou, alude, genericamente, a outros depoimentos como devendo “ser especialmente atendidos”, muito embora nas alegações, se refira a outros depoimentos.
Por cautela a todos apreciaremos.

Assim, aos quesitos 1º e 2º depuseram Celeste ............, irmã e afilhada da mãe do Autor, e Albina ..............

A Celeste, no essencial, afirmou que, tendo cerca de 19 anos, via o falecido Alfredo abeirar-se da casa onde vivia a sua irmã Inês e manter com ela um relacionamento carinhoso e afectivo, tendo-os visto a beijarem-se, “a coisar um com o outro”, e que no período legal da concepção, a sua irmã apenas tinha relacionamento afectivo com o pretenso pai do Autor, que perdurou cerca de um ano, e que o Alfredo, após a gravidez, se afastou do convívio dela.

A Albina ............e conheceu o falecido Alfredo, o “Professor”, quando ele dava aulas na escola primária de ............, próximo da casa da mãe do Autor, e se pouco sabia de factos antes do nascimento do Autor, revelou que sempre constou que ele era filho do Alfredo, chamando-lhe as pessoas “Rosinha” alcunha pela qual o Alfredo era conhecido.

A testemunha Laurentino .........., que depôs ao quesito 4º, conheceu o Autor, desde os cinco anos de idade até ele ir para o Brasil, em 1975. Foram colegas de escola, amigos muito chegados, tendo relatado que acompanhava o Autor à feira de ............ para este aí se encontrar com o Alfredo; revelou que já nesse tempo o Alfredo se referia ao o Autor como “meu filho, meu rapaz”.

Quanto aos demais quesitos – 5º, 7º, a 10, 13º a 15º e 17º - analisando os depoimentos das testemunhas Salvador .............., António ............., Albino ........... e Manuel ..........., temos de concluir que, de modo algum, infirmaram a prova também testemunhal produzida pelas testemunhas do Autor.

Todos vieram afirmar que apenas tinham ouvido da boca do falecido Alfredo a afirmação que não tinha filhos pouco esclarecendo acerca da vida passada dele, apesar da testemunha António .............. ter sido colega do Alfredo e ter convivido com ela dezenas de anos; a testemunha Albino ............. prestou um depoimento vago e impreciso começando por negar conhecer o Autor para depois afirmar o contrário, merecendo pouca credibilidade o seu depoimento; a testemunha Salvador ............, segundo primo do falecido Alfredo conheceu-o durante os últimos 12 a 15 anos de vida revelando conhecimento acerca da personalidade do seu parente mas conhecendo pouco da vida passada; revelou com pertinência, que o “Professor” se ausentara para leccionar em Trás-os-Montes porque “andava aí uma rapariga jeitosa e tal e eu fui para lá...”.

A testemunha Salvador, de 48 anos de idade, depôs de maneira a não merecer o seu testemunho credibilidade, já que não foi espontânea chegando a referir que tinha consultado o registo biográfico do “Professor” para poder responder a perguntas que lhe pudessem ser colocadas no julgamento.

Concluímos que, não tendo sido apenas com base em prova testemunhal mas também em prova documental, mormente em cartas escritas pelo Alfredo ao Autor e num cheque por ele emitido a favor do demandante – a cuja junção a apelada se recusou terminantemente – que as respostas aos quesitos em causa não devem ser alteradas.

Quanto a saber se as respostas aos quesitos 5º a 17º se acham fundamentadas.

A apelante parece entender que as respostas aos quesitos carecem de fundamentação individual.

Não lhe assiste razão.

O art. 653, nº2, do Código de Processo Civil estatui: “A matéria de facto é decidida por meio de acórdão ou despacho, se o julgamento incumbir a juiz singular; a decisão declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador”.

Analisando o despacho de fls. 151 a 153 verso, evidencia-se que o Julgador cumpriu com proficiência tal comando, do ponto em que fez análise crítica dos meios de prova, indicando-os e valorando-os, sendo perfeitamente apreensível o que foi determinante para a formação da sua convicção em termos probatórios.

Sendo tais quesitos atinentes à reputação e tratamento como filho por parte do Autor – posse de estado – de modo algum estava obrigado a analisá-los um a um.

“A imposição da fundamentação não impede necessariamente que o tribunal motive em conjunto as respostas a mais do que um facto da base instrutória, quando os factos objecto da motivação se apresentem entre si ligados e sobre eles tenham incidido fundamentalmente os mesmos meios de prova.
Essa motivação conjunta pode até ser concretamente aconselhável” - cfr. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, pág. 629.

Finalmente, sustenta a apelante que ao factos provados não permitem concluir que o falecido Alfredo tratou o Autor como filho, chegando mesmo a aludir a caducidade do direito.

Vejamos:

O artigo 1871º do Código Civil estabelece:

1. A paternidade presume-se:
a) Quando o filho houver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho também pelo público;
b) Quando exista carta ou outro escrito no qual o pretenso pai declare inequivocamente a sua paternidade;
c) Quando, durante o período legal da concepção, tenha existido comunhão duradoura de vida em condições análogas às dos cônjuges ou concubinato duradouro entre a mãe e o pretenso pai;
d) Quando o pretenso pai tenha seduzido a mãe, no período legal da concepção, se esta era virgem e menor no momento em que foi seduzida, ou se o consentimento dela foi obtido por meio de promessa de casamento, abuso de confiança ou abuso de autoridade.
e) Quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de concepção.
2. A presunção considera-se ilidida quando existam dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado. (a al. e) foi introduzida pelo artigo 1º da Lei nº21/98, de 12 de Maio).

A acção tem como fundamento a reputação e tratamento como filho pelo pretenso pai, a existência de cartas nas quais o pretenso pai reconhece a paternidade do Autor e ainda a existência de relações sexuais com a mãe no período legal de concepção.

Dos factos provados tem que se concluir que houve reputação como filho, pelo pretenso pai, já que existiu uma íntima relação afectiva e moral entre ambos apesar de o Autor ter emigrado para o Brasil quando tinha 18 anos.

O falecido Alfredo sempre se interessou, como o faria um pai, pela sua vida e bem estar ao ponto de nas cartas solicitar, repetidamente, que retornasse a Portugal para administrar os bens dele Alfredo, chamando-lhe em público e na correspondência “meu filho”.

Também assim foi considerado pelo público, no meio social do Alfredo ao ponto de o Autor, como as testemunhas relataram, ser conhecido pela alcunha por que o Alfredo era conhecido - “Rosinha”.

“A posse de estado é integrada conjunta e cumulativamente, por três elementos: a) a reputação como filho; b) tratamento como filho pelo pretenso pai; c) a reputação como filho pelo público [...]”- Ac. do STJ, de 10.1.1995, in BMJ, 443-388.

São três os requisitos da posse de estado: o nomen, o tractatus e a fama.

O “tractatus” e a “fama” são os elementos necessários da posse de estado e devem constituir indícios sérios da existência da filiação.
O “tractatus” exprime-se em comportamentos exteriores de natureza económica e afectiva, de assistência material e moral, tipicamente paternos, que resultam da convicção íntima e firme (reputação) do pretenso pai quanto à filiação. – cfr. Ac. do STJ, de 12.11.2002, de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Afonso de Melo, consultável, em www.dgsi.pt.

“...Nas acções de investigação de paternidade baseadas em alguma das presunções taxativamente enunciadas no art. 1871º do Código Civil, a lei dispensa o autor da prova da filiação biológica, onerando-o apenas com a prova dos factos base da presunção invocada.
Cabe ao réu, por seu turno, ilidir a presunção, provando factos capazes de suscitar “dúvidas sérias” sobre a paternidade presumida (artigo 1871º, nº2).
O tratamento do filho havido fora do casamento revela-se, em regra, “por actos menos ostensivos ou transparentes e de carácter menos continuado do que os demonstrativos do tratamento como filho nascido dentro do casamento”, devendo “a reputação e tratamento como filho por parte do pretenso pai para efeitos de posse de estado” “ser apreciados no seu conjunto, numa perspectiva global e não separadamente”. - Ac. do STJ, de 6.5.1997, in BMJ, 467-588.

Da conjugação dos arts. 1873º e nº4 do art. 1817º do Código Civil (este na redacção da Lei 21/98) resulta que, se o investigante for tratado como filho pelo pretenso pai, sem que tenha cessado voluntariamente esse tratamento, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte do pai, se tal tratamento cessar voluntariamente a acção pode ser proposta dentro de um ano a contar da data em que o tratamento tiver cessado.

O nº6 do art. 1817º impõe ao Réu na acção o ónus de prova da cessação voluntária do tratamento no ano anterior à data da propositura da acção – cfr. Acs. STJ de 14.10.97, CJ III, pág. 65 e de 25.11.99, CJ III, pág. 109.

Ora dos factos provados é inquestionável que o falecido Alfredo tratou o Autor como filho, quer no convívio pessoal e directo, quer por cartas onde se lhe refere aludindo a “filho”, tratamento esse que não se demonstrou ter cessado antes da data da sua morte, em 18.2.2002.

Como se provou – “O Autor, tendo-se deslocado a Portugal, em finais de 2001 e a pedido do falecido, tendo-se encontrado em .............., onde almoçaram, pagando o falecido o almoço e estando presente outras pessoas, tratando-lhe e chamando-lhe filho, informou-o que tinha revogado ou desfeito um testamento que o beneficiava mas que ia fazer outro em que o beneficiava com outros bens – resposta ao quesito 15º da Base Instrutória.

A acção foi intentada em 15.7.2002 pelo que, entre a data da morte e a da propositura da acção mediou menos de um ano pelo que o direito do Autor não caducou.

Concluímos, assim, que por não terem sido ilididas as presunções de paternidade invocadas como causa de pedir, e porque a Ré não provou ter caducado o direito do Autor, a sentença não merece censura.

Decisão:

Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Porto, 19 de Fevereiro de 2004
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale