Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0727279
Nº Convencional: JTRP00041025
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: FALÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
HIPOTECA LEGAL
CRÉDITO LABORAL
Nº do Documento: RP200801290727279
Data do Acordão: 01/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 263 - FLS 160.
Área Temática: .
Sumário: I - Vista a diferença entre as figuras do privilégio creditório e da hipoteca legal, não é crível que o legislador não tenha ponderado tal diferença, em diversos momentos temporais, enquanto menciona apenas no art. 152º do CPEREF os privilégios creditórios como devendo extinguir-se.
II - Se é verdade que as leis que conferem, alteram ou extinguem privilégios creditórios são de aplicação imediata, o concurso de credores abre-se com o trânsito em julgado da sentença que declara a falência, sendo essa data da falência aquela a que se deve atender para definir as situações jurídicas provenientes das relações jurídicas havidas entre os seus credores.
III - O privilégio imobiliário geral de que gozam os créditos provenientes de contrato de trabalho (Leis 17/86, de 14/6 e 96/01, de 20/8), deve ser graduado, face à hipoteca, nos termos dos arts. 749º e 668º nº 1 do CC, ou seja, com preferência da hipoteca sobre o privilégio geral.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo especial para Reclamação de Créditos nº..-C/2002, do .º Juízo do Tribunal de Comércio de Vª Nª de Gaia.

Nos autos principais de processo especial de falência, decretada à luz do CPEREF, em que é Requerente “B………., S.A.”, foi, por despacho de fls. 3391 ss., na sequência de um anterior processo especial de recuperação de empresas, declarada a falência da Requerente em 30/6/2003.
Foram apreendidos para a massa falida os bens móveis constantes de fls. 3 a 67 e os bens imóveis constantes de fls. 67 a 69 do apenso de liquidação de bens e apreensão do activo, entre eles os imóveis descritos na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, freguesia de ………., sob os nºs 4885 (verba nº 936) e 05380-C (verba nº 940).

O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social veio reclamar créditos provenientes de contribuições obrigatórias da falida, no montante global de € 1.091.577,75 (contribuições obrigatórias - € 731.245,90; juros - € 360.031,85) e ainda contribuições relativas ao período de Maio a Junho de 2002, no valor de € 65.692,44, acrescidos de juros, no montante de € 7 988,37, no total de € 73.680,81, constituído no decurso do processo de recuperação de empresas.
Invocou o Reclamante a existência, como garantia sobre tais montantes, de duas hipotecas legais, constituídas sobre os dois imóveis da falida supra descritos (nºs 936 e 940), registadas na CRP respectiva pelas apresentações nºs 81/310399 e 48/29042002 (sobre o imóvel com a descrição predial nº 4885 – nº 936) e 49/29042002 (sobre o imóvel com a descrição predial nº 5380 – nº 940).
Tais hipotecas garantem as dívidas por contribuições vencidas de Outubro de 1995 a Dezembro de 1996, Setembro de 1997 a Setembro de 2001, e respectivos juros de mora vencidos até Março de 2002, até ao valor total de € 926 978,11 (verba nº 940) e € 468 704 (verba nº 936).

Saneador-Sentença Recorrido
Na decisão proferida pela Mmº Juiz “a quo, foi considerada a subsistência da invocada hipoteca legal, por inaplicabilidade ao caso do disposto no artº 152º CPEREF, e, julgados verificados os créditos reclamados, foram graduados, pela seguinte forma:
Verba nº 936
1º - As custas da falência, as despesas da administração e as custas contadas saem precípuas;
2º - Do remanescente:
- os créditos dos trabalhadores com os n.ºs. 20-27-28-30-31-32-43-52-60-63-64-67-69 a 89-91 a 149-152-153-155 a 202-204 a 236-238-242-247-248-249-257-265-266-275-287-348, tendo em atenção a parte que já lhes foi paga pelo FGS.
- os créditos do FGS – n.ºs. 150-342-350, em pé de igualdade e rateadamente se for necessário;
3º - Do remanescente, se remanescente houver, dar-se-á pagamento ao crédito nº 267 do IGFSS, até ao montante da sua garantia, por constituído no decurso do processo de recuperação;
4º - Do remanescente, se remanescente houver, dar-se-à pagamento aos restantes créditos, em pé de igualdade e rateadamente, se for necessário.

Verba n.º 940:
1º - As custas da falência, as despesas da administração e as custas contadas saem precípuas;
2º - Do remanescente, dar-se-á pagamento:
- aos créditos dos trabalhadores com os n.ºs. 20-27-28-30-31-32-43-52-60-63-64-67-69 a 89-91 a 149-152-153-155 a 202-204 a 236-238-242-247-248-249-257-265-266-275-287-348, tendo em atenção a parte que já lhes foi paga pelo FGS.
- aos créditos do FGS – n.ºs. 150-342-350, em pé de igualdade e rateadamente se for necessário;
3º - Do remanescente, se remanescente houver, dar-se-á pagamento ao crédito nº 267 do IGFSS, até ao montante da sua garantia, por constituído no decurso do processo de recuperação;
4º - Do remanescente, se remanescente houver, dar-se-à pagamento aos restantes créditos, em pé de igualdade e rateadamente, se for necessário.

Conclusões do Recurso do Reclamante Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (resenha)
1º – O Tribunal “a quo” incluiu os créditos do Apelante, garantidos por hipoteca legal, na graduação geral, como se de créditos comuns se tratassem, fundamentando tal solução na corrente jurisprudencial que sustenta que o artº 152º CPEREF apenas determina a extinção dos privilégios creditórios, mas não a extinção das hipotecas legais (e demais causas legítimas de preferência de créditos no concurso de credores) de que gozam os entes públicos nele aludidos.
2º - Sendo esse também o entendimento defendido pelo ora Apelante, parece resultar que a sentença de verificação e graduação de créditos padece de manifesto lapso, concretizado na omissão da graduação dos créditos garantidos por hipoteca legal.
3º - Às hipotecas legais constituídas a favor do Apelante dever-se-á aplicar o regime legal e geral, comummente aplicável a tais garantias, respeitando-se, é certo, o princípio da prioridade do registo (artº 6º C.Reg.Pred.).
4º - Ao proceder à graduação dos créditos da Apelante como se as hipotecas legais não existissem, a douta sentença violou o disposto nos artºs 604º, 686º, 152º e 200º nº2 CPEREF.

Não foram produzidas contra-alegações.

Factos Apurados em 1ª Instância
Encontram-se provados os factos relativos ao montante e natureza dos créditos reclamados, às garantias que sobre os mesmos recaem (nomeadamente, quanto ao crédito do Apelante) e à tramitação processual, acima resumidamente expostos.

Fundamentos
O recurso do Apelante comporta a apreciação, por um lado, da existência de uma omissão na decisão recorrida, consistente na não graduação do crédito do Reclamante/Apelante, enquanto garantido por hipoteca legal; por outro lado, da efectiva graduação desse crédito, garantido por hipoteca legal, tal como reclamado.
Passaremos à apreciação de tais questões.
I
Tem razão o Apelante quanto à contradição que invoca e que rapidamente se descortina, na sentença recorrida.
O artº 152º CPEREF (na redacção do D.-L. nº315/98 de 20 de Outubro) dispõe que “com a declaração de falência se extinguem imediatamente, passando os respectivos créditos a ser exigidos como créditos comuns, os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social, excepto os que se constituírem no decurso do processo de recuperação de empresa ou de falência”.
Diz-se na sentença recorrida:
“É nosso entendimento que o artº 152º CPEREF apenas se aplica aos privilégios creditórios, pelo que é de concluir que o legislador quis afastar as hipotecas legais do seu regime.”
“Na verdade, não se poderá fazer uma interpretação extensiva de modo a abranger os dois, porque privilégios creditórios e hipoteca legal são garantias diferentes, cada uma delas com regulamentação própria e diferenciada.”
“A lei é bem clara – escreveu-se “privilégios creditórios”, consequentemente há que aplicar ás hipotecas legais constituídas a favor da Segurança Social, o regime legal geral, comummente aplicável a tais garantias – vd. Acs. S.T.J. 18/6/02 Col. II/114, 25/3/03 Col.I/138 e Ac.R.C. 7/10/03 pº nº 2322/00.”
Todavia, no dispositivo de graduação dos créditos, existe uma omissão de pronúncia relativamente ao crédito reclamado, enquanto garantido por hipoteca legal – na verdade, gradua-se em terceiro lugar o crédito da Segurança Social, “por constituída no decurso do processo de recuperação” e até ao montante constituído nesse decurso, ou seja, como se de um crédito garantido por mero privilégio creditório se tratasse, nos termos da parte final do artº 152º cit.
Isto é, pensamos que aquilo que se encontra em causa, na decisão recorrida, é, não tanto uma omissão de pronúncia (artº 668º nº1 al.d) 1ª parte C.P.Civ.), quanto uma contradição entre os fundamentos e a decisão – artº 668 nº1 al.c) C.P.Civ., fundamentos que apontam para a efectiva consideração da garantia proveniente de hipoteca legal e decisão que apenas admite o crédito tal como se de um privilégio creditório constituído no decurso do processo se tratasse – rectius, com exclusão da garantia proveniente da hipoteca legal e como se o artº 152º CPEREF fosse também aplicável às hipotecas legais do Estado ou da Segurança Social.
Trata-se assim, definitivamente, da nulidade da sentença a que alude o artº 668º nº1 al.c) C.P.Civ. – por todos, Acs.S.T.J. 22/1/98 e de 26/4/95, respectivamente in Bol.473/427 e Bol.446/296 e Ac.R.E. 14/7/05 Col. IV/262.
Todavia, no suprimento da invocada nulidade, haveremos igualmente de ponderar, não apenas a verificação, como também a graduação do crédito garantido pela hipoteca legal, já que a graduação efectuada se lhe não reportou por qualquer forma, directa ou indirecta.
II
Como primeira nota, salientaremos que nada se pode em verdade opor à bondade da fundamentação da decisão recorrida, enquanto distingue claramente hipoteca de privilégio creditório, não considerando aquela, constituída como hipoteca legal, abrangida na letra ou no espírito do artº 152º CPEREF.
As duas figuras são claramente diferentes e discerníveis por via de dois aspectos fulcrais:
- as hipotecas, ao contrário dos privilégios creditórios, incidem apenas sobre imóveis (artº 686º C.Civ.);
- as hipotecas, para produzirem efeitos, e mesmo que resultem directamente da lei, enquanto hipotecas legais, devem ser registadas (artº 687º C.Civ.).
Nesta conformidade, as hipotecas são garantias perfeitamente cognoscíveis “ex ante” por todos os demais credores de determinada pessoa jurídica, perfeitamente ao contrário dos privilégios creditórios, que se não encontram sujeitos a registo (artº 733º C.Civ.).
As primeiras implicam um esforço do credor público na cobrança do crédito; os segundos são meramente “oferecidos” ao credor público, em face do incumprimento da obrigação.
Tal é a diferença das figuras e respectivos regimes, que não é crível que o legislador a não tivesse ponderado, enquanto menciona apenas no artº 152º os privilégios creditórios como devendo extinguir-se. O legislador poderia, de resto, ter resolvido a questão, perante a polémica já conhecida, na revisão do CPEREF operada pelo D.-L. nº 215/98 de 20 de Outubro, e, apesar de ter restringido o alcance da extinção dos privilégios creditórios e alterado a redacção do citado artº 152º (à extinção passaram a fugir os privilégios constituídos no decurso do processo), nada disse em matéria de hipotecas legais, pelo que não se mostra defensável, em nome da intencionalidade ou do écran programático legal, continuadamente defender a existência de uma lacuna legislativa e do recurso à analogia – artº 10º nºs 1 e 2 C.Civ.
Note-se como o raciocínio por semelhança ou paridade de situações não se justifica também à face do disposto, v.g., no artº 751º C.Civ., que faz preferir à hipoteca a generalidade dos privilégios creditórios, concedendo a estes a supremacia na graduação.
De resto, algum voluntarismo argumentativo, ligado à possibilidade de recuperação da empresa e de manutenção do tecido produtivo, não conduziu aos resultados esperados pelo legislador do CPEREF, antes deixando nas mãos dos credores privados, detentores de garantia real sobre os bens das empresas, o futuro destas, sabendo-se como esses credores privados, por grosso a banca, preferiram por demasiadas vezes a cobrança dos respectivos créditos à cabeça, antes que a manutenção das empresas em laboração e, muito possivelmente, em permanente perda de património.
O entendimento perfilhado constitui-se, de resto, como doutrina hoje dominante – neste sentido, S.T.J. 3/3/98 Bol.475/548, S.T.J. 18/6/02 Col.II/114, S.T.J. 25/3/03 Col.I/138, S.T.J. 27/5/03 Col.II/86, Ac.R.C. 3/6/03 Col.III/24, Ac.R.C. 24/5/05 Col.III/19 e M. Lucas Pires, Dos Privilégios Creditórios, pg. 403 ss.; contra, invocando a ratio legis (a viabilização das providências de recuperação de empresas) e a paridade de situações, encontraram-se, entre outros, Carvalho Fernandes e J. Labareda, Código Anotado, artº 152º, nota 4, S.T.J. 27/5/03 Col.II/84, Ac.R.C. 23/1/01 Col.I/17 e Ac.R.P. 15/11/03 Col.V/187.
III
Como graduar pois a hipoteca legal?
Nos termos do artº 377º C.Trabalho, “1 – os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios: (…) b) privilégio imobiliário especial sobre imóveis do empregador, nos quais o trabalhador presta a sua actividade.” (…) “2 – A graduação de créditos faz-se pela ordem seguinte: (…) b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no artº 748º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social”.
Para a Mmª Juiz “a quo”, a lei aplicável ao caso, acarretando a supremacia do privilégio imobiliário geral dos créditos dos trabalhadores sobre os créditos da segurança social, garantidos por hipoteca legal, é o Código do Trabalho e a norma citada. Alinha, para o efeito, duas razões:
- o Código está em vigor desde 1/12/2003 (cf. artº 3º nº1 Lei nº 99/2003 de 27/8);
- as leis que conferem, alteram ou extinguem privilégios creditórios são de aplicação imediata (trata-se de preceito que, dispondo directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstrai dos factos que lhe deram origem, limitando-se a regular a garantia patrimonial de tais créditos, pelo que se encontra abrangido pela 2ª parte do nº2 do artº 12º C.Civ.).
Ora, não se contesta a bondade de tal conclusão, que constitui doutrina unânime (cf., v.g., Ac.R.C. 20/6/90 Bol.398/597 – “a lei que estabelece um privilégio creditório respeita aos chamados “efeitos indirectos da obrigação”, ou seja, à garantia patrimonial das obrigações e, por isso, é de aplicação imediata”).
Mas resta saber por reporte a que data se considera a aplicação imediata da Lei Nova.
Na verdade, resulta do disposto nos artºs 3º, 8º nº1 e 21º nº2 als. e) e t) da Lei 99/03, de 29 de Julho, que o referido artº 377º apenas entrou em vigor em 28/8/04, ou seja, 30 dias após a publicação da Lei 35/04 de 27 de Agosto, que regulamentou o Código do Trabalho.
No caso concreto, a falência foi decretada por sentença de 30/6/03, transitada em julgado.
Com a declaração da falência, são encerrados os livros, tornam-se imediatamente exigíveis todas as obrigações da falida e procede-se à imediata apreensão de todos os seus bens, que passam a integrar a massa falida, seguindo-se a reclamação de créditos – artºs 147º, 148º, 151º, 175º e 188º CPEREF.
Tal significa que o concurso de credores se abriu com o trânsito em julgado da sentença que declara a falência, sendo essa data da falência aquela a que se deve atender para definir as situações jurídicas provenientes das relações jurídicas havidas entre os seus credores.
Com a declaração da falência surgiu o direito ou situação jurídica dos credores verem graduados os seus créditos de acordo com as garantias constituídas.
Na verdade, a 2ª parte do nº1 do artº 12º autonomiza as situações jurídicas já constituídas aquando da entrada em vigor da lei nova, determinando que, mesmo que a esta seja atribuída eficácia retroactiva, presumem-se ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que se destina a regular (cf. Ac.R.P. 4/5/95 Col.III/198).
Para fins de direito transitório, o momento relevante a atender, quanto à produção de efeitos jurídicos, é aquele em que se produziram os factos que desencadearam o efeito de direito, à luz quer da 2ª parte do nº1, quer da 1ª parte do nº2 do artº 12º C.Civ., ou seja, o momento em que ocorreu a abertura do concurso de credores (veja-se, neste exacto sentido, Ac.S.T.J. 30/11/06 Col.III/140 – Custódio Montes, S.T.J. 11/9/07, in dgsi.pt pº nº 07A2194, relator – Azevedo Ramos, S.T.J. 11/10/07, in dgsi.pt, pº nº 07B3427, relator – Salvador da Costa ou S.T.J. 21/9/06, in dgsi.pt, pº nº 06B2871, relator – Salvador da Costa).
IV
Para o caso que nos ocupa, datando de 30/6/03 a sentença que decretou a falência e vigorando o artº 377º do Código do Trabalho somente desde 28/8/04, os trabalhadores gozam de privilégio imobiliário geral sobre o prédio apreendido, apenas nos termos do artº 12º nº1 al.b) Lei 17/86 de 14 de Junho e do artº 4º nº1 al.b) Lei 96/01 de 20 de Agosto, e não do privilégio imobiliário especial criado pelo artº 377º nº1 al.b) C.Trabalho.
A questão que dividiu a doutrina, foi a de saber se esse privilégio imobiliário geral deveria ser graduado nos termos do artº 749º C.Civ. (“o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”) ou nos termos do artº 751º C.Civ. (“os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores”).
Defendendo a primeira posição, surgiram M. Cordeiro, Salários em Atraso e Privilégios Creditórios, pg. 665, Nunes de Carvalho, Reflexos Laborais do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência, pg. 73, e R. Martinez, Direito do Trabalho, 2002, pgs 556 a 569; em sentido contrário, Soveral Martins, Legislação Anotada sobre Salários em Atraso, pg. 30, todos citados no Ac.S.T.J. 12/9/06 Col.III/47.
O Supremo Tribunal de Justiça optou, hoje por hoje, decididamente pela primeira das citadas posições (cf., S.T.J. 12/9/06 cit., S.T.J. 14/11/06 Col.III/107, S.T.J. 30/11/06 cit., S.T.J. 13/11/05 Col.I/41, S.T.J. 24/9/02 Col.III/55 e S.T.J. 5/2/02 Col.I/71), e com inteira razão.
Veremos em síntese qual a razão básica de tal doutrina.
No sistema do Código Civil, privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito (na verdade, certas dívidas encontram-se intimamente relacionadas com bens determinados do devedor), concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros – artº 732º C.Civ.
Ainda no sistema do Código, os privilégios creditórios podem ser mobiliários ou imobiliários, mas estes últimos serão sempre especiais (podendo os privilégios mobiliários, e apenas, ser ou gerais ou especiais – artº 735º nºs 1 e 2 C.Civ.).
Todavia, após a publicação do Código Civil, surgiram diversas leis que criaram privilégios imobiliários gerais, como foi o caso da citada norma da Lei dos Salários em Atraso.
Ora, se o Código Civil não previa a existência de quaisquer privilégios imobiliários gerais, tão pouco se pode aplicar a estes o sistema do artº 751º C.Civ.
E, para além da norma do artº 749º C.Civ., há que conclamar, em defesa da tese da prevalência da hipoteca sobre o privilégio imobiliário geral, o disposto no artº 668º nº1 C.Civ., que confere ao credor garantido por hipoteca registada o direito de ser pago “pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”.
Aos créditos dos trabalhadores que sigam o regime da Lei dos Salários em Atraso aplica-se pois, tão só, o disposto no artº 749º C.Civ., que não concede sequela ao privilégio geral.
Cumpre assim agora retirar as conclusões para o caso concreto, importando revogar a sentença recorrida no segmento impugnado.

Resumindo a fundamentação:
I – Vista a diferença entre as figuras do privilégio creditório e da hipoteca legal, seus fundamentos e regime, não é crível que o legislador não tivesse ponderado tal diferença, em diversos momentos temporais, enquanto menciona apenas no artº 152º CPEREF os privilégios creditórios como devendo extinguir-se.
II – Se é verdade que as leis que conferem, alteram ou extinguem privilégios creditórios são de aplicação imediata, o concurso de credores abre-se com o trânsito em julgado da sentença que declara a falência, sendo essa data da falência aquela a que se deve atender para definir as situações jurídicas provenientes das relações jurídicas havidas entre os seus credores.
III - Na verdade, a 2ª parte do nº1 do artº 12º C.Civ. autonomiza as situações jurídicas já constituídas aquando da entrada em vigor da Lei Nova, determinando que, mesmo que a esta seja atribuída eficácia retroactiva, presumem-se ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que se destina a regular.
IV – O privilégio imobiliário geral de que gozam os créditos provenientes de contrato de trabalho, previsto nos termos do artº 12º nº1 al.b) Lei 17/86 de 14 de Junho e do artº 4º nº1 al.b) Lei 96/01 de 20 de Agosto, deve ser graduado, face à hipoteca, nos termos dos artºs 749º e 668º nº1 C.Civ., ou seja, com preferência da hipoteca sobre o privilégio geral.

Decisão que toma neste Tribunal da Relação, ao abrigo dos poderes que lhe são conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 C.R.P.:
Na procedência do recurso, revoga-se a sentença recorrida, na parte impugnada, e graduam-se os créditos, nessa mesma parte, pela seguinte forma:

Quanto ao imóvel verba nº 936:
1º - As custas da falência, as despesas da administração e as custas contadas, que saem precípuas.
2º - Do remanescente:
- o crédito nº 267 do IGFSS, até ao montante da sua garantia reclamada nos autos, constituída por hipoteca legal.
3º - Do remanescente:
- os créditos dos trabalhadores com os n.ºs. 20-27-28-30-31-32-43-52-60-63-64-67-69 a 89-91 a 149-152-153-155 a 202-204 a 236-238-242-247-248-249-257-265-266-275-287-348, tendo em atenção a parte que já lhes foi paga pelo FGS.
- os créditos do FGS – n.ºs. 150-342-350, em pé de igualdade e rateadamente se for necessário;
4º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos restantes créditos, em pé de igualdade e rateadamente, se for necessário.

Verba n.º 940:
1º - As custas da falência, as despesas da administração e as custas contadas saem precípuas;
2º - Do remanescente:
- o crédito nº 267 do IGFSS, até ao montante da sua garantia reclamada nos autos, constituída por hipoteca legal.
3º - Do remanescente:
- os créditos dos trabalhadores com os n.ºs. 20-27-28-30-31-32-43-52-60-63-64-67-69 a 89-91 a 149-152-153-155 a 202-204 a 236-238-242-247-248-249-257-265-266-275-287-348, tendo em atenção a parte que já lhes foi paga pelo FGS.
- os créditos do FGS – n.ºs. 150-342-350, em pé de igualdade e rateadamente se for necessário;
4º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos restantes créditos, em pé de igualdade e rateadamente, se for necessário.

Sem custas.

Porto, 29/1/08
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa