Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0737328
Nº Convencional: JTRP00041197
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RP200803130737328
Data do Acordão: 03/13/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO, EM PARTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 752 - FLS 138.
Área Temática: .
Sumário: I - Para a determinação da competência material dos tribunais administrativos, o actual ETAF (aprovado pela Lei nº 13/02, de 19.02) eliminou o critério delimitador da natureza pública ou privada do acto de gestão que gera o pedido.
II – O critério material de distinção assenta hoje em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa – conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B………. e C………. instauraram acção declarativa com forma de processo ordinário contra CÂMARA MUNICIPAL D………., JUNTA DE FREGUESIA E………., F………. e INCERTOS.
Pediram que os réus fossem condenados a:
A) Reconhecerem judicialmente o direito de propriedade dos autores sobre o prédio que identificam no artº 1º da petição inicial;
B) Absterem-se de praticar actos que ofendam a propriedade dos autores;
C) Demolir os caminhos ilicitamente abertos no imóvel propriedade dos autores.
Como fundamento, alegaram factos tendentes a demonstrar que são proprietários do prédio identificado no artº 1º da petição inicial. Que naquele prédio foi aberto um caminho, que, posteriormente foi terraplanado e asfaltado pelas rés Câmara Municipal e Junta de Freguesia. Que a esse caminho foram sendo ligados outros acessos, designadamente pelo réu F………. e outros habitantes da localidade, que assim o passaram a utilizar.
As rés Câmara Municipal e Junta de Freguesia contestaram, excepcionando a incompetência material do tribunal e a falta de personalidade judiciária da Câmara Municipal e impugnando os factos alegados pelos autores.
G………. e mulher H………. contestaram, invocando a sua legitimidade passiva na qualidade de dono do F………. e respectivo cônjuge, excepcionando a falta de personalidade jurídica do F………. demandado e impugnando os factos alegados pelos autores.
Deduziram ainda reconvenção, formulando os seguintes pedidos:
A) Declarar-se que são donos e legítimos proprietários do prédio misto que identificam no artº 24º da contestação;
B) Condenar-se os autores a ver tal declarado, a respeitar e a não turbar tal direito de propriedade;
C) Declarar-se que o caminho que atravessa o prédio descrito no artº 1º da petição inicial é público até ao ………., da freguesia ………., condenando-se os autores a reconhecê-lo como tal.
Subsidiariamente:
D) Declarar-se que o prédio identificado no artº 24º da contestação goza de um direito de servidão de passagem sobre o prédio identificado no artº 1º da petição inicial, servidão essa que se exerce através de um caminho com a largura de 4 m e com uma extensão de 100 m, condenando-se os autores a tal ver declarado e a não perturbarem por qualquer modo o seu gozo ou exercício.
E) Condenar-se os autores a manter o referido caminho nas condições em que actualmente se encontra, livre e desimpedido e sem quaisquer obstáculos e a assim o colocar, caso o alterem.
Como fundamento dos pedidos reconvencionais, alegaram factos tendentes a demonstrar que são proprietários do prédio identificado no artº 24º da contestação e que o caminho aludido na petição inicial é público ou, se assim não se entender, existe um direito de servidão de passagem a favor daquele prédio e sobre o prédio de que os autores se arrogam proprietários.
Os autores responderam às excepções e à reconvenção e requereram a intervenção principal dos contestantes G………. e mulher H………. como associados dos restantes réus.
No despacho saneador, julgaram-se procedentes as excepções de incompetência material do tribunal em relação às rés Câmara Municipal e Junta de Freguesia e de falta de personalidade judiciária do réu F………. e conheceu-se oficiosamente da excepção de falta de interesse em agir dos réus Incertos; em consequência, absolveram-se todos os réus da instância.

Os autores recorreram, formulando, em síntese, as seguintes
Conclusões
1ª – O tribunal recorrido é materialmente competente para conhecer da presente acção.
2ª – Por força da alteração introduzida pela Lei 4-A/03, de 19.02, a entrada em vigor da Lei 13/02, de 19.02, que aprovou o ETAF e da Lei 15/02, de 22.02, que aprovou o CPTA, apenas teve lugar em 01.01.04.
3ª – A presente acção deu entrada em juízo em 08.08.03, pelo que os Diplomas acima citados não são aplicáveis ao caso dos autos.
4ª – No que concerne à falta de personalidade judiciária do réu F………., resulta da contestação apresentada por G………. e mulher H………., proprietários do dito F………., que o mesmo fará parte do património individual do referido G………., não sendo uma pessoa jurídica autónoma, alegando aqueles tratar-se de uma designação comercial da actividade exercida sob a modalidade em nome individual do seu dono, o contestante G………. .
5ª – Os autores desconheciam, como desconhecem e não têm obrigação de conhecer, tal materialidade, sendo certo que, para além dos factos alegados pelos proprietários do F………. carecerem de prova documental, que aqueles não juntaram aos autos, os autores desconhecem se, aquando da propositura da acção, como ainda actualmente, o F………. é uma sociedade por quotas, uma sociedade unipessoal, etc.
6ª – Mesmo na ausência de qualquer prova que permita ao Mº Juiz a quo concluir que não se trata de uma sociedade comercial e, portanto, com ou sem personalidade jurídica, aquele tribunal decidiu-se pela inexistência de qualquer pessoa colectiva ou sociedade comercial, socorrendo-se de sabe-se lá que prova.
7ª – De todo o modo, mesmo que se conclua que o F………. não existe como pessoa jurídica autónoma – o que não se aceita – sempre se dirá que essa falta de personalidade jurídica não acarreta a absolvição da instância.
8ª – Naquela hipótese, sempre seria de providenciar pela sanação da ilegitimidade do F………., nos termos do artº 24º do CPC, devendo os proprietários do mesmo serem citados para, querendo, ratificar o processado que anteriormente se produziu, o que, aliás, aquelas pessoas pretendem, tendo em conta que, no articulado que apresentam, se intitulam já contestantes, manifestando interesse em agir no presente processo.
9ª – Mesmo que assim não fosse entendido, nos termos pretendidos pelos proprietários do F………., de harmonia com o disposto nos artºs 269º e 325º do CPC, [os autores] requereram a intervenção provocada daqueles proprietários para intervirem nos presentes autos como associados dos demais réus.

Contra-alegou a ré Câmara Municipal, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
O recurso é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
No presente recurso, as questões que estão delimitadas pelas conclusões das alegações dos agravantes são as seguintes:
- Competência material do tribunal recorrido para conhecer dos pedidos formulados contra as rés Câmara Municipal D………. e Junta de Freguesia E……….;
- Personalidade jurídica e judiciária do réu F………. .

1. Competência material
A competência do tribunal deve ser apreciada em face dos termos em que a acção é proposta, ou seja, atendendo ao pedido formulado e à respectiva causa de pedir, não dependendo da legitimidade das partes nem da procedência da acção[1].
No caso, os autores pedem o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um bem imóvel, invocando a violação desse direito por parte dos réus, nos quais se incluem uma Câmara Municipal e uma Junta de Freguesia, às quais especificamente imputam - como actos violadores do direito que pretendem ver reconhecido - a terraplanagem e o asfaltamento de um caminho que anteriormente havia sido aberto por outrem no aludido prédio.
A presente acção configura-se assim como uma acção de reivindicação nos termos do artº 1311º do CC, em que alguns dos réus são autarquias locais[2], ou seja, pessoas colectivas de direito público (cfr. artº 235º, nº 2 da CRP).
No artº 211º, nº 1 da CRP consagra-se a competência residual dos tribunais comuns: os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Por seu turno, diz o artº 212º, nº 3 da CRP que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira[3] que estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: a) as acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente administração); b) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.
Segundo Vieira de Andrade[4], o referido preceito constitucional, introduzido na revisão de 1989, explica-se historicamente na sequência da intenção de consagrar a ordem judicial administrativa como uma jurisdição própria, ordinária, e não como uma jurisdição especial ou excepcional em face dos tribunais judiciais[5].
Como se diz no Ac. do STJ de 07.10.04[6], a verdadeira “pedra de toque” para efeitos de determinação da competência material dos tribunais administrativos reside assim no critério plasmado no citado artº 212º, nº 3 da CRP.
A regra geral da competência residual dos tribunais comuns é reafirmada nos artºs 66º do CPC e 18º, nº 1 da Lei 3/99 de 13.01 (LOFTJ): São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
A competência específica do foro administrativo está fixada, em particular, no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).
A Lei 13/02, de 19.02, que aprovou o ETAF actualmente vigente, determinou, no seu artº 1º, nº 2 que as disposições do mesmo não se aplicam aos processos que se encontrem pendentes à data da sua entrada em vigor.
A citada Lei fixou a entrada em vigor do actual ETAF decorrido que fosse um ano sobre a sua publicação (artº 9º).
Decorrido exactamente um ano, foi publicada a Lei 4-A/03, de 19.02, que, no seu artº 1º, alterou a redacção do artº 9º da Lei 13/02 e protelou para 01.01.04 a entrada em vigor do actual ETAF.
A presente acção deu entrada em juízo em 15.09.03, pelo que, por força das disposições legais acima citadas, se aplicam ao caso em apreço as normas do ETAF aprovado pelo DL 129/84, de 27.04, com as alterações introduzidas pelo DL 229/96, de 29.11.
De acordo com o artº 3º do ETAF de 84, incumbia aos tribunais administrativos, na administração da justiça, além do mais, dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas.
Estavam excluídos da jurisdição administrativas os recursos e acções que tivessem por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa de direito público (artº 4º, nº 1, al. f).
O critério de determinação da competência constante do ETAF de 84 residia, pois, na delimitação da natureza pública ou privada do acto de gestão gerador do pedido.
Segundo Antunes Varela[7], são actos de gestão pública os que, visando a satisfação de interesses colectivos, realizam fins específicos do Estado ou outro ente público e que muitas vezes assentam sobre o jus auctoritatis da entidade que os pratica; são actos de gestão privada, de modo geral, aqueles que, embora praticados pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, estão sujeitas às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares. São actos em que o Estado ou a pessoa colectiva pública intervém como um simples particular, despido do seu poder de soberania ou do seu jus auctoritatis.
Pode dizer-se que: a) são actos de gestão pública os que se compreendem o exercício de um poder público, integrando eles mesmos a realização de uma função pública da pessoa colectiva; b) são actos de gestão privada os que respeitam a actividade em que a pessoa colectiva, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder em particular, com submissão às normas de direito privado[8].
Em suma, a primeira é a actividade da Administração Pública desenvolvida sob a égide do direito administrativo e a segunda é a actividade desenvolvida sob a égide do direito privado[9].
Para qualificar um facto como próprio de uma actividade de gestão pública ou privada, defende Freitas do Amaral[10] que se devem distinguir duas hipóteses, conforme o facto danoso seja um acto jurídico ou um facto integrado numa actividade que em si mesma revista natureza jurídica ou, pelo contrário, seja uma operação material ou um facto integrado numa actividade não jurídica.
No primeiro caso, há que apurar se as normas reguladoras da actividade em causa são normas de direito público ou de direito privado, a fim de se determinar se a actividade é de gestão pública ou de gestão privada.
No segundo caso, a operação material ou a actividade não jurídica devem qualificar-se como gestão pública se na sua prática ou no seu exercício forem de algum modo influenciados pela prossecução do interesse colectivo – ou porque o agente esteja a exercer poderes de autoridade ou porque se encontra a cumprir deveres ou sujeito a restrições especificamente administrativos. E será de gestão privada no caso contrário.

Como já se disse, a presente acção configura-se como uma acção de reivindicação, em que os autores imputam aos réus a prática de actos violadores do invocado direito de propriedade, v.g., no que concerne às rés Câmara Municipal e Junta de Freguesia a terraplanagem e asfaltamento de um caminho através do prédio reivindicado.
Ora, aqueles actos materiais alegadamente violadores do direito de propriedade dos autores – pese embora possam ter sido levados a cabo no âmbito de atribuições próprias das rés - não se integram em qualquer relação jurídica administrativa.
A Câmara Municipal e a Junta de Freguesia actuaram aqui como qualquer particular que procede a obras, violando o direito de outrem, sem qualquer especial poder de autoridade e, muito menos, ao abrigo de normas de direito público.
Enquadrando-se a relação jurídica material – tal como é invocada pelos autores – no âmbito da defesa do seu direito de propriedade, a causa de causa de pedir e o pedido formulado assentam exclusivamente em regras de direito privado.
Como se diz no Ac. desta Relação de 01.07.04[11], a invocada ofensa do direito de propriedade não cabe nas atribuições do ente publico, extravasa o âmbito destas, não podendo ser considerado um acto administrativo, nem é regulada como tal pelo direito administrativo.
Ou, nas palavras do Ac. do STJ de 04.03.97[12], os autores invocaram um direito de propriedade que têm por violado por uma entidade material que imputam às rés, entidades de direito público. Mas não trouxeram como acto de onde derive o direito para o qual pretendem a tutela judiciária um acto de gestão pública, nem reclamaram uma responsabilidade civil administrativa.
Conclui-se, assim, que o tribunal comum é competente para conhecer da presente acção também em relação às rés Câmara Municipal e Junta de Freguesia.
Em situações idênticas à dos presentes autos, e no enquadramento do ETAF de 84, vários arestos decidiram no sentido acima indicado[13].

Aliás, mesmo no domínio de aplicação do actual ETAF, a solução da questão da competência material em situações como a dos autos está longe de ser pacífica.
Reproduzindo a norma do nº 3 do artº 212º da CRP, diz o artº 1º, nº 1 do ETAF de 02 que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Nesse quadro, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto as questões enunciadas nas diversas alíneas do nº 1 do artº 4º.
O actual ETAF eliminou o critério delimitador da natureza pública ou privada do acto de gestão que gera o pedido. O critério material de distinção assenta hoje em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa – conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público[14].
Apreciando o regime do actual ETAF, Freitas do Amaral e Aroso de Almeida[15] afirmam que compete à jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública (segundo o critério objectivo da natureza da entidade demandada), independentemente da questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada, deixando esta distinção de ser relevante.
O entendimento acima expresso encontrou acolhimento na jurisprudência, dizendo-se no Ac. do STJ de 12.02.07[16] que: a) o âmbito da jurisdição administrativa abrange todas as questões de responsabilidade civil envolventes de pessoas colectivas de direito público, independentemente de as mesmas serem regidas pelo direito público ou pelo direito privado; b) os conceitos de actividade de gestão pública e de gestão privada dos entes públicos já não relevam para determinação da competência jurisdicional para a apreciação de questões relativas à responsabilidade civil extracontratual desses entes por tribunais da ordem judicial ou da ordem administrativa[17].
Aquela solução não é, no entanto, inteiramente isenta de dúvidas, como nos dá conta Vieira de Andrade[18], que chama a atenção para o facto de não ser expressamente afirmado no artº 4º do ETAF que os tribunais administrativos passem a ser competentes para conhecer da responsabilidade das pessoas colectivas públicas por actos de gestão privada. E acrescenta que em abono do alargamento da competência da jurisdição administrativa apenas se pode esgrimir com o argumento histórico – que não é decisivo – e com a circunstância de o ETAF deixar de excluir expressamente o conhecimento das questões de direito privado – um argumento que provaria demais. Conclui que, em sentido contrário, se pode argumentar precisamente com a cláusula geral do artº 1º, interpretada em termos estritos, que constituiria a regra delimitadora do âmbito da jurisdição administrativa – na dúvida, valeria a regra geral de competência, carecendo as adições de serem expressamente determinadas.
Face àquelas dúvidas, no domínio da aplicação do actual ETAF, tem-se entendido nalguns arestos que, na prática, os conceitos de gestão pública e de gestão privada continuam a constituir a base da delimitação da jurisdição administrativa, maxime, em matéria de responsabilidade civil extracontratual do Estado[19].
E, sendo assim, mesmo à luz das normas do actual ETAF, se poderia concluir que, no caso dos autos, o tribunal comum seria competente para conhecer dos pedidos formulados contra a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia.

Procedem, assim, as conclusões dos autores, nesta parte, pelo que há que julgar o tribunal recorrido competente em razão da matéria para conhecer dos pedidos formulados contra as rés Câmara Municipal D………. e Junta de Freguesia E………. .

2. Personalidade jurídica e judiciária do réu F……….
Sustentam os autores que o réu F………. tem personalidade judiciária porque não está demonstrado nos autos que não seja uma sociedade unipesssoal ou uma sociedade por quotas, devendo ter sido feita prova nesse sentido e que, caso assim não se entenda, a falta de personalidade judiciária pode ser suprida nos termos do artº 24º do CPC ou com a intervenção principal dos proprietários do estabelecimento, já requerida.

De acordo com o artº 5º, nº 1 do CPC, a personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte, ou seja, na possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida, em próprio nome, qualquer das providências de tutela jurisdicional reconhecidas na lei[20].
A nossa lei processual civil equipara a personalidade judiciária à personalidade jurídica (nº 2 do normativo citado), pelo que dela gozam as pessoas singulares (cfr. artº 66º do CC) e as pessoas colectivas a quem a lei expressamente a reconheça.
Há, no entanto, excepções ao princípio da equiparação, que são as que constam dos artºs 6º e 7º do CPC, nos quais se estende a personalidade judiciária a quem não goza de personalidade jurídica.
O estabelecimento comercial é uma universalidade composta por diversos elementos, tais como mercadorias, máquinas, matérias-primas, instrumentos (elementos corpóreos ou materiais) e créditos, marcas, patentes, nome comercial, clientela, etc. (elementos incorpóreos ou imateriais)[21].
Um estabelecimento comercial pode ser gerido por um comerciante em nome individual, por um estabelecimento individual de responsabilidade limitada ou por uma sociedade comercial.
No primeiro caso, o estabelecimento comercial confunde-se com o seu titular, que responde ilimitadamente, com todo o seu património, pelas dívidas resultantes da actividade do estabelecimento[22].
O estabelecimento comercial gerido por um comerciante em nome individual não é, pois, um património autónomo[23], pelo que, além de não ter personalidade jurídica, não tem também personalidade judiciária, já que não se enquadra em nenhum dos casos previstos nos artºs 6º e 7º do CPC, maxime, na al. a) do artº 6º que estende a personalidade judiciária aos patrimónios autónomos cujo titular não esteja determinado. A personalidade jurídica e consequente personalidade judiciária é detida pelo comerciante em nome individual que seja titular do estabelecimento.
O estabelecimento individual de responsabilidade limitada (EIRL) constituído nos termos do DL 248/86 de 25.08 é um património autónomo (cfr. artº 1º, nº 2 daquele Diploma), pelo que não tem personalidade jurídica, mas tem personalidade judiciária, precisamente por força do disposto no citado artº 6º, al. a) do CPC[24].
As sociedades comerciais gozam de personalidade jurídica e, inerentemente, de personalidade judiciária (artº 5º do CSC).

No caso dos autos, tendo os autores identificado o réu como F………., não é possível concluir que o estabelecimento assim denominado esteja a ser gerido por um estabelecimento individual de responsabilidade limitada ou uma sociedade comercial.
A denominação indicada pelos autores não corresponde a uma firma composta de acordo com as disposições que regem a composição da firma, quer do estabelecimento individual, quer dos diversos tipos de sociedades comerciais, designadamente, de acordo com o disposto nos artºs 2º, nº 3 do DL 248/86 e 40º do DL 129/98 de 13.05 (Registo Nacional das Pessoas Colectivas) no que respeita ao primeiro, ou de acordo com os requisitos gerais exigidos pelo artº 10º do CSC e com os requisitos específicos para cada tipo de sociedade exigidos pelos artºs 177º, 200º, 275º ou 467º do mesmo Diploma, ex vi artº 37º do DL 129/98.
Se o estabelecimento comercial denominado F………. é um estabelecimento individual de responsabilidade limitada ou se faz parte do objecto de uma sociedade comercial, cabia aos autores dizê-lo.
Ao contrário do que sustentam os autores, não cabe nos poderes de indagação oficiosa do juiz, previstos, além do mais, no artº 265º do CPC, produzir prova sobre a natureza da parte indicada pelos autores como réu.
Permiti-lo seria significaria aplicar o princípio inquisitório para além dos limites consagrados na lei processual civil, violando as disposições dos artºs 264º e 265º e alterando a razoabilidade e adequação entre os dois princípios (dispositivo e inquisitório) que a reforma de 1996 visou introduzir, como expressamente se consignou no preâmbulo do DL 329-A/95 de 12.12.
Assim, não tendo os autores identificado expressamente o réu como um estabelecimento individual de responsabilidade limitada ou como uma sociedade comercial, ou seja, como uma entidade dotada de personalidade judiciária, tem de se concluir que o mesmo carece daquele pressuposto essencial para ser demandado.
A falta de personalidade judiciária é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, que acarreta a absolvição da instância (artºs 493º, nºs 1 e 2, 494º, al. c) e 495º, todos do CPC).
A falta de personalidade judiciária é insuprível[25], salvo no caso previsto no artº 7º do CPC (cfr. artº 8º), que aqui não interessa.
Não se lhe aplica assim o disposto no artº 24º do CPC, que apenas prevê o suprimento da incapacidade judiciária e da irregularidade de representação (cfr. artº 23º).
Também a intervenção principal de G………. e mulher H………. – que se apresentaram a contestar a acção, invocando o primeiro, além do mais, a sua qualidade de titular do estabelecimento F………. – não tem a virtualidade de suprir a falta de personalidade judiciária do estabelecimento.
Não só por esta ser insuprível, como já dissemos, como também por não ser essa a finalidade dos incidentes previstos nos artºs 320º e seguintes do CPC, que, como o nome indica, se destinam a fazer intervir um terceiro como associado de uma das partes.

No entanto, a propósito do incidente de intervenção principal requerido pelos autores, impõe-se dizer o seguinte:
O tribunal recorrido não se pronunciou sobre aquele incidente, por ter decidido que a falta de personalidade judiciária do estabelecimento comercial era insuprível.
E não poderia apreciá-lo na perspectiva da associação dos chamados aos demais réus porque os absolveu a todos da instância.
Porém, a atribuição de competência ao tribunal recorrido para julgar a presente acção também em relação às rés Câmara Municipal e Junta de Freguesia leva a que o incidente tenha de ser apreciado naquela segunda perspectiva.
Os aludidos G………. e mulher H………. apresentaram-se a contestar nos autos invocando a sua qualidade de proprietários do prédio onde se situa o F………. e utilizadores do caminho que dá acesso a esse F………. e que os autores alegam ter sido aberto através do prédio que reivindicam.
Sendo assim, podem aqueles ter, em relação ao objecto da causa, um interesse igual ou paralelo ao das rés Câmara Municipal e Junta de Freguesia e, se assim for, podem ser admitidos a intervir nos autos como seus associados, ao abrigo do disposto nos artºs 320º e seguintes do CPC.
O que terá de ser apreciado e decidido na 1ª instância.

Improcedem assim as conclusões dos autores, nesta parte, sem prejuízo da apreciação pelo tribunal recorrido do incidente de intervenção principal por eles requerido.

Face ao que, sem intuito meramente tabelar, acima dissemos acerca do âmbito dos recursos, a procedência da questão da competência impõe que seja apreciada a questão da falta de personalidade judiciária da ré Câmara Municipal D………., por ser de conhecimento oficioso e, ademais, ter sido por ela invocada na contestação.
A questão já foi debatida nos articulados, mostrando-se, por isso, cumprido o contraditório.

3. Falta de personalidade judiciária da ré Câmara Municipal D……….
Segundo o artº 236º, nº 1 da CRP, o município é uma autarquia local, ou seja, uma pessoa colectiva territorial de direito público, dotada de órgãos representativos, que visa a prossecução de interesses próprios das populações respectivas (artº 235º, nº 2 da CRP). Especificamente, o município pode ser definido como a autarquia local que visa a prossecução de interesses próprios da população residente na circunscrição concelhia, mediante órgãos representativos por ela eleitos[26].
Reproduzindo o artº 250º da CRP, diz o artº 2º, nº 2 da Lei 169/99 de 18.09 (Lei das Autarquias Locais) que os órgãos representativos do município são a assembleia municipal e a câmara municipal, sendo a primeira um órgão deliberativo, e a segunda um órgão executivo, como resulta do disposto nos nºs 1 e 3 do artº 239º da CRP e nos artºs 41º e 56º, nº 1 da LAL.
Também o presidente da câmara é um órgão do município, pese embora nem a CRP nem a lei ordinária o qualificarem como tal. Essa qualidade resulta dos poderes que a lei lhe atribui no quadro do estatuto jurídico do município. Actualmente, o vasto elenco de competências enunciadas no artº 68º da LAL confirmam que o presidente da câmara é um órgão de vasta competência executiva, pelo que é paradoxal pretender negar-lhe aquela qualidade[27].
Enquanto pessoa colectiva de direito público, o município goza de personalidade jurídica e judiciária.
A Lei das Autarquias Locais aprovada pelo DL 100/84 de 29.03 atribuía à câmara municipal competência para instaurar pleitos e neles se defender (artº 51º, nº 1, al. f)), pelo que, no âmbito de aplicação daquela lei, se entendia estar reconhecida a personalidade judiciária daquele órgão executivo[28].
O disposto naquela alínea foi eliminado pela Lei 18/91 de 12.06, que deslocou para o presidente da câmara a competência para instaurar pleitos e defender-se neles.
Solução que a actual LAL manteve, atribuindo ao presidente da câmara a competência para representar o município, em juízo e fora dele, em sede de competência própria, delegável em qualquer vereador ou no pessoal dirigente (artºs 68º, nº 1, al. a), 69º, nº 3 e 70º, nº 1, todos da LAL).
Face à deslocação da competência para representar o município em juízo da câmara municipal para o presidente da câmara, que, como já vimos, é também um órgão executivo do município, entendemos que não se pode continuar a defender que a câmara municipal tem personalidade judiciária.
Assim, quem pode demandar e ser demandado em juízo é o município, que agirá representado pelo presidente da câmara.
A jurisprudência tem defendido, no entanto, que, quando se instaura uma acção contra a câmara municipal se está perante um simples erro de identificação, que constitui uma incorrecção formal, devendo então entender-se que a acção foi instaurada contra o município.
Não se trata de suprir a falta de personalidade judiciária da câmara municipal, que, tal como na situação anterior, é insuprível, mas de interpretar correctamente a petição inicial, entendendo-se que o autor quis demandar o município[29].
Tal como, in casu, a interpretou a ré Câmara Municipal, que contestou em nome do Município de D………., representado pelo Vereador Substituto do Presidente da Câmara (cfr. a procuração de fls. 84).
Tem, assim, de se considerar rectificado o lapso de identificação cometido pelos autores, consignando-se que a presente acção foi instaurada contra o Município de D………. .
Em relação ao qual valem as razões que acima tecemos acerca da competência material do tribunal.
*
III.
Pelo exposto, acorda-se em conceder parcial provimento ao agravo, revogando-se em parte o despacho saneador recorrido e, em consequência:
- Rectifica-se o erro de identificação cometido pelos autores, consignando-se que é réu na presente acção o Município de D………., o qual tem personalidade jurídica e judiciária;
- Julga-se o .º Juízo do Tribunal Judicial de Marco de Canavezes competente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção em relação aos réus Município de D………. e Junta de Freguesia E………., que aí deve prosseguir os seus termos contra eles;
- Mantém-se o mais que foi decidido, sem prejuízo da apreciação pelo tribunal de 1ª instância do incidente de intervenção principal de G………. e mulher H………., suscitado pelos autores.
Custas do agravo pelos agravantes e pelos agravados, na proporção de ½.
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Porto, 13 de Março de 2008
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Evaristo José Freitas Vieira
Manuel Lopes Madeira Pinto

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[1] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 91.
[2] Como adiante veremos, a autarquia local é o município, sendo a câmara municipal um dos seus órgãos.
[3] CRP Anotada, 3ª ed., 815.
[4] A Justiça Administrativa, 9ª ed., 103.
[5] No mesmo sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra citada, 814; João Caupers, Direito Administrativo, 121; Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª ed., 25 e segs.
[6] www.dgsi.pt.
[7] Das Obrigações Em Geral, I, 10ª ed., 648 e 649.
[8] Ac. do Tribunal de Conflitos de 05.11.81 in Bol. 311º-195.
[9] Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, I, 3ª ed., 150.
[10] Direito Administrativo, III, 490 e seguintes.
[11] www.dgsi.pt.
[12] CJ/STJ-97-I-125.
[13] Citamos, a título exemplificativo, os Acs. do STJ de 12.01.94, 27.05.03m 11.12.03 e 13.05.04, todos em www.dgsi.pt.
[14] Neste sentido, Vieira de Andrade, obra e lugar citados e Margarida Cortez, Responsabilidade Extracontratual do Estado, Trabalhos Preparatórios da Reforma, 258.
[15] Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª ed., 34 e 36.
[16] www.dgsi.pt.
[17] No mesmo sentido, ver os Acs. desta Relação de 13.06.05, 23.01.06, 06.03.06 e 12.02.07, todos em www.dgsi.pt.
[18] Obra citada, 117.
[19] Cfr. os Acs. desta Relação de 15.03.05, 23.02.06, 12.10.06, 18.01.07 e 12.04.07, todos em www.dgsi.pt.
[20] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., 108.
[21] Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, I, 1973, 230 e seguintes.
[22] Ac. da RP de 19.10.00, www.dgsi.pt.
[23] Neste sentido, Pupo Correia, Direito Comercial, 2ª ed., 210.
[24] Ac. da RL de 13.02.92, www.dgsi.pt.
[25] Antunes Varela, obra citada, 115 e 116.
[26] Freitas do Amaral, obra citada, 526.
[27] Cfr. Freitas do Amaral, obra citada, 586 a 589. No mesmo sentido, Marcello Caetano, obra citada, 334 e 335, embora analisando a questão à luz do C. Administrativo do Estado Novo.
[28] Cfr., entre outros, os Acs. do STA de 26.09.01, do STJ de 27.03.90 e 12.12.96, desta Relação de 20.06.91, 21.02.94, 21.03.00 e 20.05.02 e da RL de 16.05.91.
[29] Neste sentido, ver os Acs. do STJ de 04.05.00 e 02.05.02, www.dgsi.pt.