Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0726136
Nº Convencional: JTRP00041113
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
CONFISSÃO TÁCITA
Nº do Documento: RP200802190726136
Data do Acordão: 02/19/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 264 - FLS. 183.
Área Temática: .
Sumário: Se o réu alega que nada deve ao autor e que nunca lhe solicitou os serviços que este alega ter prestado, tal alegação constitui confissão tácita de não cumprimento da obrigação, não podendo o réu devedor beneficiar da prescrição presuntiva.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 6136/07-2
Apelação

Decisão recorrida: proc. nº ……./07.8 TBPNF do ….º Juízo do Tribunal Judicial de Penafiel

Recorrente: “B……………….., SA”

Recorrido: C……………………….

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores Canelas Brás e Antas de Barros


Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

O requerente C……………., melhor identificado nos autos, deu entrada com um requerimento de injunção contra a requerida “B……………., SA”, também melhor identificada nos autos, pedindo o pagamento da quantia de €22.970,18.

Para tal, alega que no âmbito da sua actividade de técnico oficial de contas prestou serviços à requerida, desde 2.11.1999 até Outubro de 2005, altura em que teve conhecimento da sua substituição. Acontece que, apesar de diversas vezes interpelada para esse efeito, a requerida não procedeu até ao momento ao pagamento da quantia correspondente à factura que lhe enviou.

Notificada a requerida para pagar ou deduzir oposição, veio esta a fls. 14/6 deduzir oposição ao pedido de injunção, alegando que o crédito reclamado pelo requerente já se encontra prescrito e, mesmo que assim não se entenda, nada lhe deve, uma vez que nunca solicitou os seus serviços.

Conclui, pois, no sentido da improcedência do pedido de injunção.

Realizou-se audiência de julgamento com observância do legal formalismo.

Foi proferida sentença, que julgou improcedente a oposição deduzida e condenou a requerida “B……………., SA” a pagar ao requerente C…………….. a quantia de €21.780,00, concernente à factura nº 2006/108, datada de 25.9.2006, e ainda no pagamento de €998,18 a título de juros já vencidos, bem como nos que se vencerem até efectivo e integral pagamento.

Inconformada, a requerida “B……………, SA” interpôs recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:

a) O autor na PI alega que prestou serviços da função de técnico oficial de contas, alegadamente efectuado à ré no período de Novembro de 1999 a Outubro de 2005;

b) A ré responde, contestando, invocando a prescrição, alegando que o crédito mesmo que exista não pode ser invocado judicialmente por já se encontrar prescrito;

c) Subsidiariamente, refere que desconhece de todo os serviços da função de técnico oficial de contas, pois havia uma centralização desses serviços no Grupo D……………, na qual o autor era funcionário e a “B………….” era associada;

d) Considerou a douta decisão recorrida que a prescrição presuntiva alegada pela ora recorrente teria que ser julgada improcedente, pois não tendo a ré alegado de forma explícita o pagamento do crédito do autor, a falta de impugnação especificada dos factos invocados por este, teremos que considerar que a ré confessou tacitamente, ilidindo a referida presunção de prescrição;

e) Ora, para se considerar confessada a dívida assevera, por sua vez, o art. 314 do Código Civil, que só existem duas formas possíveis – ou o devedor tem que se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou o devedor tem que praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção do cumprimento;

f) Ora, no caso em apreço, a ora recorrente não praticou em juízo qualquer acto incompatível com a presunção de cumprimento que expressamente invoca, na medida em que, e atentos os exemplos apontados pela doutrina e pela jurisprudência, não alegou a compensação ou pagamento em prestações, e nem tão pouco negou a originária existência do débito ou discutiu o seu montante;

g) Nessa medida, e salvo o devido respeito, o facto de a ora recorrente não ter alegado expressamente o pagamento dos créditos invocados pelo autor, ora recorrido, na petição inicial, não constitui uma confissão tácita, nem permite, por si só, ilidir a presunção de pagamento e afastar a aplicação da prescrição presuntiva;

h) Na jurisprudência supra enunciada considera-se que a simples invocação da prescrição presuntiva tem já implícita a alegação do cumprimento, pelo que a alegação daquele instituto não implica a confissão tácita do incumprimento alegado pelo autor;

i) O devedor que pretenda beneficiar dessa presunção de cumprimento deverá, na contestação, limitar-se a deduzir essa excepção;

j) O Mmº Juiz “a quo” violou o disposto no art. 317 al. c) do Cód. Civil;

k) Nestes termos e sempre salvo o devido respeito por opinião diversa, se requer a V. Ex.ªs se dignem revogar a douta sentença do Tribunal “a quo”, substituindo-a por acórdão que absolva a ré, como é de elementar Justiça.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 684 nº 3 e 690 nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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QUESTÃO A DECIDIR

Apurar se no presente caso ocorreu – ou não – a prescrição presuntiva de dois anos a que se refere o art. 317 do Cód. Civil.


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OS FACTOS

A matéria fáctica dada como assente pela 1ª instância é a seguinte:

1. O requerente dedica-se à actividade de técnico oficial de contas.

2. No exercício dessa actividade, o requerente prestou serviços à requerida desde 2.11.1999 até Outubro de 2005.

3. A requerida, até 13.10.2005, tinha como denominação social “D1………………., SA”.

4. A partir de 13.9.2005, a requerida alterou a sua denominação social para “B……………….., SA”.

5. O requerente era funcionário da empresa “D2………………, Lda”, empresa esta distinta juridicamente da requerida.

6. Em 2.11.1999, requerente e requerida celebraram um acordo escrito, através do qual o requerente se obrigou a proporcionar à requerida certo resultado do seu trabalho intelectual, mediante retribuição, no montante de 600.000$00 anuais, sendo pago anualmente no último mês da anuidade.

7. No Serviço de Finanças de Ponta Delgada consta como responsável pela contabilidade da requerida, durante os anos de 1999 a 2005, o requerente.

8. Após a sua substituição, em Outubro de 2005, o requerente emitiu e enviou à requerida a factura nº 2006/108, datada de 25.9.2006, e com vencimento nessa mesma data, no montante de €21.780,00.


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O DIREITO

A requerida “B……………., SA” veio, de acordo com o preceituado no art. 317 nº 1 al. c) do Cód. Civil, invocar a excepção peremptória de prescrição, alegando que a factura junta aos autos se reporta a valores referentes à prestação de serviços de técnico oficial de contas por parte do requerente no período compreendido entre Novembro de 1999 e Outubro de 2005.

Os arts. 312 a 317 do Cód. Civil referem-se às chamadas prescrições presuntivas, para as quais se estabelecem prazos muito curtos: de seis meses para os créditos que vêm indicados no art. 316 e de dois anos para os créditos enumerados no art. 317.

Fundam-se as prescrições presuntivas na presunção do cumprimento – cfr. art. 312 do Cód. Civil -, encontrando a sua razão de ser no facto de as obrigações a que respeitam costumarem ser pagas em prazo bastante curto e não se exigir por via de regra quitação, ou pelo menos não se conservar por muito tempo essa quitação. Assim, decorrido o prazo legal, presume a lei que o pagamento foi efectuado, dispensando o devedor da prova do mesmo, dado que, em virtude das razões expostas, isso lhe poderia ser difícil.[1]

Com efeito, a prescrição presuntiva, ao contrário do que sucede com a prescrição ordinária, não confere ao devedor a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de oposição, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito. Apenas faz presumir o cumprimento pelo decurso do prazo, destinando-se a proteger o devedor contra o risco de ser obrigado a satisfazer duas vezes dívidas de que não é usual exigir recibo ou guardá-lo durante certo tempo.[2]

A prescrição presuntiva é assim uma modalidade muito peculiar do fenómeno prescricional, diferenciando-se tanto pelo seu fundamento, como pelos seus efeitos, da prescrição extintiva em sentido próprio.

Por conseguinte, ao invés do que se passa nas verdadeiras prescrições, a lei admite em certa medida, aliás limitada, que as prescrições presuntivas sejam afastadas mediante prova da dívida. Diz-se então no art. 313 nº 1 do Cód. Civil que «a presunção do cumprimento pelo decurso do prazo só pode ser ilidida por confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão», acrescentando-se depois no nº 2 que sendo a confissão extrajudicial, terá de ser realizada por escrito. Porém, o art. 314 do Cód. Civil alarga o âmbito da confissão e permite a confissão tácita ao estabelecer que se considera confessada a dívida «se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento.»

Ora, assentando a prescrição de curto prazo na presunção do cumprimento, não poderá a mesma aproveitar a quem tenha em juízo uma actuação completamente oposta ao cumprimento.

Como neste sentido escreve Sousa Ribeiro[3] “constituindo uma mera presunção de pagamento, ela não poderá aproveitar a quem tenha uma actuação em juízo que logicamente o exclua. Quando alega a prescrição e, simultaneamente, pratica um acto inconciliável com o seu pressuposto fundante, o devedor está a contradizer-se a si próprio, pois ao mesmo tempo que pretende ver reconhecida a extinção do vínculo, com base num presumível cumprimento, não deixa de admitir que ele ainda não se efectuou.”

É o caso, por exemplo, entre outros, da negação da existência da dívida ou da discussão do seu montante.

Prosseguindo, dir-se-à que as prescrições presuntivas, funcionando como presunções de cumprimento, produzem a inversão do ónus da prova, de tal forma que o devedor fica liberto desse encargo, tendo, porém, o credor a possibilidade de elidir tal presunção, provando o não cumprimento.

Contudo, o credor só poderá elidir essa presunção, através de um acto confessório do próprio devedor, conforme resulta dos já citados arts. 313 e 314 do Cód. Civil, sucedendo que essa confissão tanto pode ocorrer por via judicial, como extrajudicial.

Confissão judicial que será tácita quando o devedor pratica em juízo actos incompatíveis com a presunção do cumprimento.[4]

Compreende-se, deste modo, que o devedor para poder beneficiar da prescrição presuntiva de dois anos que invoca não deve negar os factos constitutivos do direito do credor já que, ao fazê-lo, irá alegar em contradição com a sua pretensão de beneficiar da presunção de pagamento.

Sobre o devedor recai, assim, o ónus de alegar expressamente que já pagou a dívida aqui em questão, ao contrário do que acontece na prescrição ordinária em que aí, sim, pode confessar que não pagou e concomitantemente opor a prescrição.

Sintetizando:

Para beneficiar da prescrição presuntiva, o devedor não deve negar os factos constitutivos do direito do credor, pois se o fizer está a confessar tacitamente o não cumprimento da obrigação; deve antes alegar, de forma expressa, que já pagou a dívida, uma vez que, no âmbito das prescrições presuntivas, o decurso do prazo legal não extingue a obrigação, somente faz presumir o seu pagamento.[5]

Regressando agora ao caso concreto o que se verifica é que a devedora, aqui requerida, na sua oposição, invoca de forma muito sintéctica a prescrição do crédito do requerente nos termos do art. 317 al. c) do Cód. Civil, alegando que a factura junta aos autos se reporta a valores referentes à prestação de serviços de técnico oficial de contas por parte deste no período compreendido entre Novembro de 1999 e Outubro de 2005.

Porém, logo a seguir em sede de impugnação a devedora/requerida, para além de não ter alegado o pagamento da dívida, veio antes alegar que nada deve ao requerente, que desconhece de todo os serviços de técnico oficial de contas peticionados, pois nunca os solicitou ao requerente, que a prestação de serviços de contabilidade, no período a que se refere a factura, estava incluída no âmbito da contabilidade do grupo D……………., da qual a requerida fazia parte e que o pagamento desse serviço estava a cargo exclusivamente da D………….. .

Sucede que o comportamento processual da requerida expresso na sua oposição, em que, ao cabo e ao resto, acaba por negar ter qualquer dívida para com o requerente, se mostra incompatível com a presunção de cumprimento, razão pela qual, configurando confissão judicial tácita nos termos do art. 314 do Cód. Civil, terá esta que se considerar como elidida, como bem se afirmou na douta sentença recorrida.

Com efeito, como já atrás se assinalou, para poder socorrer-se da prescrição presuntiva invocada impunha-se que a requerida não negasse os factos constitutivos do direito invocado pelo requerente e que simultaneamente alegasse, de forma expressa, o pagamento da dívida peticionada.

Ora, como a requerida nada disto fez na sua oposição, lógico é concluir que a douta decisão recorrida se mostrou acertada ao considerar não verificados os pressupostos de que dependia o funcionamento da excepção de prescrição presuntiva invocada.

Deve, por isso, ser confirmada.


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DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela requerida “B………………, SA”, confirmando-se a douta sentença recorrida.

Custas a cargo da apelante.

Porto, 19.2.2008

Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
Mário João Canelas Brás
António Luís Caldas Antas de Barros
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[1] Cfr. Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 3ª edição, pág. 820.

[2] Cfr. Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 103, pág. 254.

[3] “Prescrições presuntivas: sua compatibilidade com a não impugnação dos factos articulados pelo autor” in Revista de Direito e Economia, Ano V, nº 2, pág. 393.

[4] Neste ponto cabe referir que a falta de impugnação especificada dos factos alegados pelo credor, designadamente o não pagamento, corresponde a confissão judicial tácita da dívida, na medida em que tal traduz a prática em juízo de acto incompatível com a presunção de cumprimento, daí resultando a elisão desta presunção – cfr. neste sentido Ac. STJ de 24.6.2003, proc. 03A1840 in www.dgsi.pt; Ac. Rel. Lisboa de 16.6.1992, CJ, Ano XVII, Tomo III, pág. 206.

[5] Cfr. neste sentido, entre outros, Ac. Rel. Coimbra de 17.11.1998 in CJ, Ano XXIII, Tomo V, págs. 16/18; Ac. Rel. Porto de 28.11.1994 in CJ, Ano XIX, Tomo V, págs. 215/6; Ac. Rel. Porto de 3.2.2004, JTRP00036364 in www.dgsi.pt; Ac. Rel. Porto de 8.11.2007, JTRP00040788 in www.dgsi.pt.