Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
70/05.5IDAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: FRAUDE FISCAL
CRIME QUALIFICADO
VALOR
CONDIÇÕES DE PUNIBILIDADE
Nº do Documento: RP2011032370/05.5IDAVR.P1
Data do Acordão: 03/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Por razões literais, sistemáticas e teleológicas, o limite de € 15.000 do nº 2 do artigo 103º do RGIT é aplicável à fraude fiscal qualificada prevista no artigo 104º do mesmo RGIT.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 70/05.5IDAVR.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
O Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Castelo de Paiva, inconformado com o despacho proferido na acta de audiência de julgamento de 29/09/2010, que (conhecendo de “questão prévia”) declarou extinto o procedimento criminal contra todos os arguidos nestes autos, recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

1. Vem o presente recurso interposto da decisão judicial, lavrada em acta, a qual e como questão prévia e que antecedeu o julgamento, ordenou o arquivamento dos autos quanto a todos os arguidos, por si e em representação das sociedades que legalmente representavam e pelo cometimento do crime de fraude fiscal qualificada da previsão do art. 104°, n.º1 als. a) e e) e n.º 2, do RGIT, por cuja prática estavam acusados, por se entender que as condutas destes arguidos foram descriminalizadas, com a consequente declaração de extinção do procedimento criminal;

2. Em virtude de entender que o art. 103°, n.º 2 do RGIT, face à redacção dada pela Lei n.º 60-A/2005 de 30 de Dezembro, que atribuiu a não punição dos factos desde que a vantagem patrimonial ilegítima seja inferior a 15.000,00 euros e sendo a vantagem patrimonial um elemento típico deste crime fiscal, não deverá ser punível, mesmo na forma mais gravosa de fraude fiscal qualificada em face do disposto no art. 103°, n.º 3, do citado diploma;
3. A razão da nossa discordância prende-se com o facto de se tratar de crime agravado em relação àquele outro simples, porque ocorreu com uma conduta especialmente censurável, com recurso a facturação falsa, pelo que o disposto no art. 104° do RGIT não se submete a uma qualificação meramente de valor, como o entretanto previsto na lei da aprovação do OE, para o transacto ano de 2009;

4. Interpretação esta que se nos afigura ter sido a intenção do legislador, tanto mais que do ponto de vista literal e sistemático, não o referiu, bastando ter acrescentado uma alínea ou um novo número ao art. 103º do RGIT;

5. Tanto mais que e ainda que se possa considerar a vantagem patrimonial um elemento típico deste crime de fraude fiscal, a fixação de um determinado limite para a sua penalização terá de ser sempre entendida como uma condição objectiva de punibilidade;

6. Aliás, os crimes de fraude fiscal simples e qualificada, das previsões dos artigos 103° e 104° do RGIT comportam duas diferentes realidades, como se vem constatando em várias decisões dos tribunais superiores;

7. Por outro lado também se poderá constatar e como argumento de autoridade, o decidido superiormente em data recente, no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, a sublinhar a diferença entre: a conduta de comunicar a existência de negócio simulado; daqueloutra, de maior gravidade, de fabricar documentos para convencer que o negócio existiu;

8. Referindo-se também o último acórdão de fixação de jurisprudência com o nº. 8/2010, de 23 de Setembro, que uniformizou e quanto a este último tipo de ilicitude, ainda que baseando-se noutros valores de natureza penal, entendeu-se não relevar o critério do valor patrimonial;

9. Como fez este douto Tribunal recorrido, que violou, assim, o disposto nos arts. 104º, nº.1, als. a) e e) do RGIT e 103° deste mesmo diploma;

10. Decisão esta que deverá ser revogada, substituindo-se por uma outra que determine o prosseguimento dos autos, nesta parte e quanto a este tipo legal de crime, relativamente a todos os arguidos (singulares e colectivos), com a realização de audiência de julgamento.

O arguido B… respondeu à motivação do recurso interposto pelo MP, concluindo (transcrição):
O Douto Despacho recorrido, proferido pelo Tribunal recorrido, não merece qualquer censura, porquanto:
A) Se verifica a falta de um dos requisitos exigidos no ilícito criminal pelo qual os Arguidos estão acusados;
B) Que implica a descriminalização das suas condutas;
C) Considerando o teor da Acusação Pública, ressalta que as alegadas vantagens patrimoniais ilegítimas no caso dos Autos se cifram em montantes sempre inferiores a €15.000,00 (quinze mil euros).
D) É patente que as prestações em causa, respectivamente de €5.635,00 (IRC: 2002/2003), €3.339,89 (IVA: 4.º trimestre 2002) e de €14.373,00 (IVA: 3.º trimestre 2003), por reporte a cada uma das respectivas referidas declarações a apresentar à administração tributária, são de montante inferior a €15.000,00;
E) Pelo que dúvidas não há que não está verificado, no caso dos Autos, o requisito da vantagem patrimonial ilegítima ser de valor pelo menos igual a €. 15.000,00, que pressupõe o crime de fraude qualificada;
F) Claro que se pode colocar a questão de saber se a punição da fraude qualificada depende, como a fraude simples, de a vantagem patrimonial ilegítima ser de valor pelo menos igual a €. 15.000,00;
G) O artigo 104º do RGIT nada refere a este respeito;
H) Sendo certo que, modestamente, entendemos que o legislador quis manter a exigência do valor mínimo de vantagem patrimonial ilegítima para a fraude qualificada;
I) Pois que, se não o quisesse, em vez da expressão "factos previstos no artigo anterior", o Legislador teria escrito no n.º 1 do Art.º 104.º do RGIT "factos previstos no número um do artigo anterior";
J) Perfilha o Recorrido, humildemente, a melhor orientação doutrinária existente a propósito de tal matéria; K) Nomeadamente a orientação explanada por Isabel Marques da Silva (in Regime das Infracções Tributárias", Cadernos IDEFF, n.º 5, Almedina, Ed. 2006, p. 156);
L) Considerando que a exigência do valor mínimo de vantagem patrimonial ilegítima decorre da própria definição do crime como de "fraude qualificada", isto é, como mera qualificação do crime fiscal base de fraude, exigindo pois a verificação de todos os elementos essenciais deste e ainda de circunstâncias especiais (cfr. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral II, Teoria do Crime, p. 227 e 228), que têm por efeito a agravação da penalidade aplicável;
M) Portanto, para existir crime de "fraude qualificada" devem estar, primeiramente, preenchidos todos os elementos do crime de "fraude simples", incluindo a exigência da vantagem patrimonial ilegítima ser de valor pelo menos igual a €. 15.000,00;
N) A verificação do crime de fraude fiscal qualificada depende, primeiramente, do preenchimento de todos os elementos do crime de fraude fiscal simples, incluindo o da obtenção de vantagem patrimonial ilegítima de valor superior a €15.000,00;
O) O que não sucede no presente caso, dado que as alegadas vantagens patrimoniais ilegítimas foram de montante inferior a €15.000,00, por reporte às respectivas declarações a apresentar à administração tributária.
P) Reiterando-se que não está previsto o requisito da vantagem patrimonial ilegítima ser de valor pelo menos igual a eis. 000, 00, que pressupõe o crime de fraude qualificada.
Q) Assim, atenta a falta de um dos requisitos exigidos no ilícito criminal pelo qual os Arguidos estão acusados, que implica a descriminalização das suas condutas, impunha-se declarar extinto o procedimento criminal contra o aqui Recorrido e contra os demais Arguidos;
R) Como muito bem fez o Tribunal recorrido;
S) Por todo o exposto, não há que censurar o Douto Despacho proferido pelo Tribunal recorrido, não se mostrando violados os normativos legais invocados no Recurso em apreço;
T) Devendo improceder o presente Recurso, mantendo-se a Decisão recorrida.

Nesta Relação, o Ex.º Procurador-geral-adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP, não houve resposta.

Colhidos os vistos, foi processo submetido à conferência, para julgamento.

2. Fundamentação
2.1 Matéria de facto
Com interesse para o julgamento do presente recurso, consideramos relevantes os seguintes factos e ocorrências processuais:

a) Em 15/12/2009 o MP deduziu acusação contra os arguidos neste processo, imputando-lhes:
“1. B…, C… e E…, na qualidade de legais representantes da firma “F…, Lda.” e enquanto utilizadores, em co-autoria material e na forma consumada, a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, da previsão dos art. 104º, n.º1 als. a) e e) e n.º 2 da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, atento o Acórdão n.º 3/2003, de 7 de Maio, in DR nº.157, I-A Série, de 10 de Julho, com referência ao art. 26º do C. Penal;
2. G…, na qualidade de legal representante da empresa arguida “H…, Unipessoal Lda.” e enquanto emitente, em autoria material e na forma consumada, a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, da previsão dos art. 104º, n.º1 als. a) e e) e n.º 2 da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, atento o Acórdão n.º 3/2003, de 7 de Maio, in DR nº.157, I-A Série, de 10 de Julho;
Por sua vez, as firmas aqui arguidas “F…, Lda.”e “H…, Lda.” são também responsáveis pelos crimes fiscais praticados pelos seus mencionados legais representantes, de acordo com o art. 8º do RGIT ” (fls. 679/691)

b) Em 19/04/2010 foi recebida a acusação e designado o dia 29/09/2010, pelas 10.00 horas, para julgamento dos arguidos, “pelos factos constantes da acusação deduzida pelo MP a fls. 680 e ss, com referência às disposições legais indicadas, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 313º, n.º1 al. a) do CPP (…)” (fls. 748)

c) Em 21/05/2010 o arguido B… apresentou contestação escrita, onde, além do mais, suscitou a questão prévia “da falta de um dos requisitos exigidos no ilícito criminal pelo qual os arguidos estão acusados, que implica a descriminalização das suas condutas”

d) No dia designado para a audiência de julgamento, 29/09/2010, o MP ditou para a acta o seguinte requerimento:
“Quanto à questão prévia suscitada pelo arguido B… entendendo, com os fundamentos que aduz, que a conduta imputada a si e aos restantes arguidos se mostra descriminalizada cumpre dizer que não lhe assistirá razão. Desde logo, em primeiro lugar, e independentemente das posições doutrinárias divergentes, os arguidos encontram-se acusados não pelo crime simples do art. 103° do RGIT, mas antes como autores de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelo art. 104°, nºs 1 e 2 do RGIT que não remete em qualquer dos seus números ou alíneas para o n.º 2 do art. 103° do RGIT. Além disso, também na jurisprudência dos Tribunais Superiores a questão ainda não se encontra pacificada, citando-se e subscrevendo a título de exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18-05-2009 que entendeu não ser aplicável o limite de 15.000€ do art. 103°, nº 2, à fraude fiscal qualificada prevista no art. 104° do mesmo RGIT, nomeadamente quando o agente utiliza facturas ou documentos equivalentes na execução do crime, como é o caso dos presentes autos."

e) A Sr.ª Juiz proferiu então o despacho recorrido, do seguinte teor:
"Na contestação que apresentou o arguido (cfr. fls. 791 e seguintes) deduziu questão prévia nos termos ali expostos, entendendo, com os fundamentos que aduz que a conduta imputada a si e aos restantes arguidos se mostra descriminalizada.
Ora, considerando o disposto no artigo 338° do Código de Processo Penal, e porque se trata de uma questão incidental que obstará, procedendo, ao conhecimento do mérito da causa, cumpre, neste momento decidi-la.
Na douta acusação dos autos aos arguidos B…, C… e E…, F…, é imputada a prática, em co-autoria, e em concurso real, de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 104°, n.º 1, alíneas a) e e) e nº 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pelo D.L. nº. 15/2001, de 15 de Junho; por seu turno, ao arguido G…, enquanto emitente e na qualidade de representante legal da arguida H…, Lda. é imputada a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 104°, nº 1 alíneas a) e e) e n.º 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pelo DL nº 15/2001 de 5 de Junho.
Dispõe o artigo 103° do R.G.I.T, o qual contém a previsão simples da fraude fiscal, que: «1. Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por: a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável; b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária; c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
Prescreve, por seu turno, o n.º 2 do mesmo preceito que os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 15.000 (redacção dada pela Lei nº. 60-A/2005 de 30 de Dezembro, sendo anteriormente a esta de €7.500); considerando-se nos termos do nº 3 que, para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.»
Do exposto nos citados normativos legais, lidos sistematicamente, conclui-se que presentemente não é criminalmente punível como fraude fiscal a factualidade conducente à obtenção de vantagem ilegítima inferior a €15.000 referida a cada uma das declarações a apresentar, sendo a vantagem patrimonial indevida de que fala o enunciado n. °2, o montante do imposto que o sujeito passivo deixou de pagar por causa da fraude, ou nas palavras de Susana Aires de Sousa, in Os crimes fiscais, Análise Dogmática e Reflexão sobre a legitimidade do Discurso Criminalizador, pago 88 «a vantagem patrimonial há-de reconduzir-se à prestação tributária em falta». A vantagem patrimonial é, assim, elemento típico para a verificação do crime.
Aos arguidos é, todavia, imputada a prática da forma qualificada da fraude fiscal cuja previsão se encontra elencada no art. 104°, nº. 1, als. a) e e) que dispõem que 1- os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias: al. a) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária; al. e) O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro.
Aqui chegados a questão que se coloca é a de saber se o já enunciado nº 2 do art. 103° do RGIT que estabelece a não punibilidade das condutas fraudulentas quando a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a €15.000 vale nos casos em que a fraude é qualificada (entendimento que parece ser o perfilhado pelos arguidos).
A este propósito a doutrina tem-se pronunciado no sentido da validade, no âmbito do art. 104°, daquele limite (assim Cfr. Susana Aires de Sousa, in Ob. Cit., pag. 118 e Isabel Marques da Silva in Regime das Infracções Tributárias, Cadernos IDEFF, n.º 5, Almedina, pag. 156), entendendo que a exigência de valor mínimo de vantagem patrimonial ilegítima decorre da própria definição do crime como «fraude qualificada», isto é, como mera qualificação do crime fiscal base de fraude. A fraude qualificada só assume dignidade penal quando a vantagem patrimonial ilegítima conseguida pelo agente em detrimento do património do Estado for igualou superior àquele montante.
Já em sentido contrário pronunciou-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/05/2009, proferido no processo nº. 352/02.8IDBRG. Ali, como argumento avança-se que a realidade prevista na punição da fraude qualificada por ser mais gravosa do que a que vem enunciada no tipo fundamental da fraude simples é dela dissociável e concluindo, deste modo, por excluída a exigência da obtenção com a fraude um valor mínimo de beneficio patrimonial ilegítimo.
Pensada a questão e sopesados os argumentos avançados pela doutrina e pela Jurisprudência conhecida (mormente o citado Acórdão), considera o Tribunal que foi efectivamente intenção do legislador manter na punição da fraude qualificada a exigência do valor mínimo de vantagem patrimonial ilegítima, conclusão que decorre da própria qualificação do crime fiscal base de fraude e que, assim, exige a verificação de todos os elementos essenciais deste e ainda circunstâncias especiais que têm por efeito a agravação da penalidade aplicável. Deste modo, para que exista crime de fraude qualificada devem mostrar-se preenchidos, primeiramente, todos os elementos do crime de "fraude simples" tipificado no art. 103° do RGIT, incluindo a obtenção de vantagem patrimonial ilegítima de valor pelo menos igual a € 15.000.
Ora, analisada a factualidade descrita na acusação, concretamente no que contende com a que integra a vantagem patrimonial indevida, vemos que aí se imputa aos arguidos (utilizadores) em sede de IRC/€5636,00 no ano de 2002 e em sede de IVA relativo ao 4º trimestre de 2002, €3.339,89 e relativo ao 3° trimestre de 2003, €14.373,02.
Refere, expressamente, o n.º 3 do art. 103° do RGIT que «os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
No caso, o valor da vantagem patrimonial obtida que vem descrita na acusação para cada uma das declarações de IRC e IVA individualmente considerada em cada declaração apresentada é sempre inferior a 15.000 € e por isso actualmente não punível face ao que se expendeu, beneficiando, os arguidos, pelo menos quanto às declarações de IRC do ano de 200212003 e as declarações de IVA do 4° Trimestre de 2002 e 3° da aplicação da Lei Nova mais favorável (art. 2°, n.º 2 e 4 do Cód. Penal) com a entrada em vigor da alteração introduzida ao nº 3 do art. 105 do RGIT pela mencionada Lei n.º 60-A/2005 de 30 de Dezembro e que alargou o âmbito da não punição da fraude fiscal àquelas cujo valor da vantagem patrimonial é superior a 15.000 €, quedando-se anteriormente na quantia de 7.500€.
Face ao exposto, a ausência de preenchimento dos factos descritos na acusação e que se reportam à prática por todos os arguidos dos crimes de fraude qualificada que lhes vêm imputados, implica que se tenham como não criminalizadas as condutas de que vêm acusados e impõem que, nesta parte se declara extinto o procedimento criminal contra todos eles.
Em conclusão e face a tudo quanto supra se expendeu, decide este Tribunal Colectivo em virtude da não verificação de um dos elementos do ilícito criminal:
- declarar extinto o procedimento criminal contra os arguidos G…, B…, E… e C…, no que diz respeito à prática, em co-autoria material e em concurso real de um crime de fraude fiscal qualificada p. e p. pelo artigo 104°, n.º 1, alíneas a) e e) e n.º 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pelo D.L. nº. 15/2001 de 5 de Junho; - declarar extinto o procedimento criminal contra os arguidos G… e B…, pela prática em co-autoria enquanto emitentes e na qualidade de representantes legais das arguidas H…, Lda. e F…, Lda. de um crime de fraude fiscal qualificada p. e p. pelo artigo 104°, nº 1, alíneas a) e e) e n.º 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pelo D.L nº 15/2001 de 5 de Junho;
Sem custas até ao momento por não serem devidas
Notifique.”

2.2 Matéria de direito
(i) Correcção de lapso material
Antes da análise do mérito do recurso, deve ser apreciada uma questão prévia suscitada pelo arguido B…. Com efeito, a fls. 880 e seguintes, o arguido B… pediu a correcção de um lapso material, contido no despacho que julgou extinto o procedimento criminal. Alega que, nos termos da acusação, não lhe foram imputados factos “enquanto emitente”, mas sim “enquanto utilizador” e, no despacho que julgou extinto o procedimento criminal contra si, foi feita referência à prática do crime de fraude fiscal, enquanto “emitente”.

Apesar de o requerimento ter sido dirigido ao M. Juiz do tribunal “a quo”, este nada disse.
Nos termos do art. 380º, 2, do CPP, a correcção pode ser efectuada nesta Relação, pelo que se impõe apreciar a questão.
Como decorre da leitura da acusação, o arguido tem razão.
O despacho recorrido, na parte final, julgou extinto o procedimento criminal dos arguidos, referindo-se aos arguidos G… e B… “enquanto emitentes …”, quando a acusação apenas imputava ao arguido G… a prática de tal crime “enquanto emitente”. O arguido B…, na qualidade de legal representante da firma “F… …” e os demais legais representantes desta firma, eram acusados da prática do crime de fraude fiscal, mas na qualidade de “utilizadores” (“enquanto utilizadores” - fls. 690).
O art. 380º, 1, b) do CPP permite a correcção de erros ou lapsos materiais cuja eliminação não importe uma modificação essencial. O n.º 2 permite ainda que o lapso possa ser corrigido no tribunal “ad quem”. Impõe-se, assim, corrigir o lapso e adequar os termos do despacho que julgou extinto o procedimento ao criminal, aos factos que na acusação eram imputados a cada um dos arguidos.
Nestes termos, tal despacho passa a ter a redacção seguinte:
“1. Declarar extinto o procedimento criminal contra os arguidos B…, C… e E…, na qualidade de legais representantes da firma “F…, Lda.” e enquanto utilizadores, em co-autoria material e na forma consumada, no que diz respeito à prática de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto dos art. 104º, n.º1 als. a) e e) e n.º 2 da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho;
2. Declarar extinto o procedimento criminal contra o arguido G…, na qualidade de legal representante da empresa arguida “H…, Lda.” e enquanto emitente, em autoria material e na forma consumada, da prática de um criem de fraude fiscal qualificada, da previsão dos art. 104º, n.º1 als. a) e e) e n.º 2 da Lei n.º 15/2001;
3. Declarar extinto o procedimento criminal contra as firmas aqui arguidas “F…, Lda.”e “H…, Lda.”, pelos crimes fiscais praticados pelos seus mencionados legais representantes, de acordo com o art. 8º do RGIT.”
Sem custas até ao momento por não serem devidas
Notifique”.

(ii) Mérito do recurso
A questão a decidir no presente recurso é a de saber se a norma do art. 104º, n.º 2 do RGIT, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, (considerando que os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 15.000,00) é aplicável ao crime de fraude fiscal qualificada, prevista no art. 104º, n.º 1, als. a) e e) e n.º 2 do mesmo RGIT.

Os termos da questão estão claramente colocados na decisão recorrida:

“(…) Aqui chegados, a questão que se coloca é a de saber se o já enunciado nº 2 do art. 103° do RGIT que estabelece a não punibilidade das condutas fraudulentas quando a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a €15.000 vale nos casos em que a fraude é qualificada (entendimento que parece ser o perfilhado pelos arguidos).”

Na análise da questão, a decisão recorrida ponderou o seguinte:

“A este propósito, a doutrina tem-se pronunciado no sentido da validade, no âmbito do art. 104°, daquele limite (assim Cfr. Susana Aires de Sousa, in Ob. Cit., pag. 118 e Isabel Marques da Silva in Regime das Infracções Tributárias, Cadernos IDEFF, n.º 5, Almedina, pag. 156), entendendo que a exigência de valor mínimo de vantagem patrimonial ilegítima decorre da própria definição do crime como «fraude qualificada», isto é, como mera qualificação do crime fiscal base de fraude. A fraude qualificada só assume dignidade penal quando a vantagem patrimonial ilegítima conseguida pelo agente em detrimento do património do Estado for igualou superior àquele montante.

Já em sentido contrário pronunciou-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/05/2009, proferido no processo nº. 352/02.8IDBRG. Ali, como argumento avança-se que a realidade prevista na punição da fraude qualificada por ser mais gravosa do que a que vem enunciada no tipo fundamental da fraude simples é dela dissociável e concluindo, deste modo, por excluída a exigência da obtenção com a fraude um valor mínimo de beneficio patrimonial ilegítimo.

Pensada a questão e sopesados os argumentos avançados pela doutrina e pela Jurisprudência conhecida (mormente o citado Acórdão), considera o Tribunal que foi efectivamente intenção do legislador manter na punição da fraude qualificada a exigência do valor mínimo de vantagem patrimonial ilegítima, conclusão que decorre da própria qualificação do crime fiscal base de fraude e que, assim, exige a verificação de todos os elementos essenciais deste e ainda circunstâncias especiais que têm por efeito a agravação da penalidade aplicável. Deste modo, para que exista crime de fraude qualificada devem mostrar-se preenchidos, primeiramente, todos os elementos do crime de "fraude simples" tipificado no art. 103° do RGIT, incluindo a obtenção de vantagem patrimonial ilegítima de valor pelo menos igual a € 15.000.”

Que dizer?

Quando os factos foram cometidos, o art. 103º do RGIT (texto inicial da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho) tinha seguinte redacção:

“Artigo 103.º (Fraude)
1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 7500.
3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.

A Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, procedeu a várias alterações do RGIT, nomeadamente ao citado art. 103º, cuja redacção passou a ser a seguinte:

“Artigo 103.º (Fraude)
1 - (…)
2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15000.
3 - (…)”

O artigo 104º manteve-se inalterado, com a seguinte redacção:

“Artigo 104.º (Fraude qualificada)
1 - Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:
a) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária;
b) O agente for funcionário público e tiver abusado gravemente das suas funções;
c) O agente se tiver socorrido do auxílio do funcionário público com grave abuso das suas funções;
d) O agente falsificar ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária;
e) O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro;
f) Tiver sido utilizada a interposição de pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável;
g) O agente se tiver conluiado com terceiros com os quais esteja em situação de relações especiais.
2 - A mesma pena é aplicável quando a fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente.
3 - Os factos previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do presente preceito com o fim definido no n.º 1 do artigo 103.º não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber.”

Como se refere na sentença recorrida, a questão controvertida é a de saber se a alteração do art. 103º, n.º 2 do RGIT, descriminalizando as condutas cuja vantagem patrimonial ilegítima seja inferior a 15.000 €, se aplica (também) aos crimes de fraude qualificada ou apenas aos crimes de fraude simples.

O acórdão citado pelo Ministério Público neste recurso, proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 18-05-2009, no processo n.º 352/02.8IDBRG.G1, entendeu que “o limite de € 15.000,00 do art. 103 nº 3 do RGIT, abaixo do qual os factos que integram o crime de fraude fiscal não são puníveis, não é aplicável à fraude fiscal qualificada, prevista no art. 104 do mesmo RGIT, nomeadamente quando o agente utiliza facturas ou documentos equivalentes na execução do crime”

Trata-se, contudo, de uma posição isolada, quer na doutrina, quer na jurisprudência.

ISABEL MARQUES DA SILVA, reconhecendo que a questão é controversa, considera que “embora o art. 104º seja “estranhamente mudo” sobre este aspecto”, o regime previsto no n.º 2 do art. 103º do RGIT (fraude fiscal simples) “deve valer também para a fraude qualificada a exigência do valor mínimo de vantagem patrimonial ilegítima, sendo essa exigência decorrente da própria definição do crime fiscal base da fraude, exigindo para a verificação de todos os elementos deste e ainda de circunstâncias especiais, que têm por efeito a agravação da penalidade” – RGIT, Cadernos IDEF, 5, 2ª Edição, pág. 164.

SUSANA AIRES DE SOUSA, em Os crimes Fiscais, Coimbra Editora, 2009, pág.118, citando em seu apoio (ainda) GERMANO MARQUES DA SILVA, em Notas sobre o Regime Geral das Infracções Tributárias, Direito e Justiça, Vol. XV, Tomo II, 2001, pág. 64, é da mesma opinião: «Uma outra questão importante é a de saber se o n.º 2 do artigo 103.º que estabelece a não punibilidade das condutas fraudulentas quando a vantagem ilegítima for inferior a € 7500 vale nos casos em que a fraude é qualificada. A nosso ver a resposta só pode ser no sentido da validade, no âmbito do artigo 104.º daquele limite. A fraude qualificada só assume dignidade penal quando a vantagem patrimonial ilegítima, conseguida pelo agente em detrimento do património do Estado, for igual ou superior àquele montante».

NUNO POMBO, em Fraude Fiscal, Almedina, 2007, pág. 215, defende igual opinião: «Refira-se por último que o legislador, pela técnica usada no desenho da norma incriminadora, veio permitir que se instalasse a dúvida quando a saber se a efectiva punição, tal como se estabelece para o crime de fraude simples, pressupõe a pretensão de ser auferida vantagem patrimonial igual ou superior a 15.000 €. Com efeito, o artigo 104.º sobre este aspecto, é estranhamente mudo. Parece-nos todavia, que a melhor solução, em homenagem mais ao espírito do instituto do que aos elementos literais disponíveis, será a que advoga dever ser tomado em conta o limite de que depende a respectiva punição. A qualificação opera-se pela recepção de circunstâncias modificativas agravantes e deve traduzir-se não no alargamento das situações puníveis mas, como acontece, num endurecimento das respectivas penas».

SIMAS SANTOS e JORGE DE SOUSA, em Regime Geral das Infracções Tributárias, 2ª Edição, 2008, pág. 737, anotação 3 ao art. 104º, consideram também aplicável ao crime de fraude fiscal qualificada o valor “referência” da vantagem patrimonial ilegítima, quando referem: “A falsificação ou viciação, ocultação, destruição, inutilização ou recusa de entrega, exibição ou apresentação de livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária, pelo agente, bem como o uso por este daqueles elementos, sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro, por parte das entidades empregadoras, dos trabalhadores independentes e dos beneficiários que visem a liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias de valor igual ou superior a € 7500, não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber, caso em que será a aplicável [als. d) e e) do n.º 1 e 3]”. Este entendimento supõe que as condutas a que alude o art. 104º, 1, als d) e e) causem diminuição de receitas fiscais de valor superior ao do liminar da “punibilidade” previsto no artigo anterior.

Por seu turno, o acórdão da Relação de Coimbra, de 19-01-2011, proferido no processo n.º 1036/06.3TAAVR.C1, entendeu que “o limite de € 15.000,00 do art. 103 nº 3 do RGIT, abaixo do qual os factos que integram o crime de fraude fiscal não são puníveis, é aplicável à fraude fiscal qualificada, prevista no art. 104 do mesmo RGIT”.

Também o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão recente, de 16/03/2011, proferido no recurso n.º 65/05.9IDAVR.P1, entendeu que “o crime de fraude fiscal apenas será qualificado se, para além da ocorrência de, pelo menos, duas das suas circunstâncias agravativas, as mesmas forem aptas a causar um prejuízo ou a diminuição de vantagens tributárias no valor de, pelo menos, €15.000”

A nosso ver, é este o melhor entendimento, por diversas razões: literais, sistemáticas (lógicas) e teleológicas.

Em primeiro lugar, existem alguns aspectos literais a impor tal leitura, como seja a referência, no art. 104º, aos “factos previstos no artigo anterior”. Um dos factos previstos no artigo anterior é precisamente o previsto no n.º 2, segundo o qual não há punibilidade quando o montante da vantagem patrimonial ilegítima for “inferior a 15.000 €”. Se tivesse havido intenção de punir a fraude qualificada, independentemente do valor da vantagem ilegítima, a remissão deveria ter excluído o n.º 2.

Outro aspecto literal decorre da expressão usada no n.º 2 do art. 104º: “fraude”. Na verdade, o n.º 2 do art. 104º começa por dizer que “a mesma pena é aplicável quando a fraude tiver lugar mediante (…)”. Ao falar em fraude, está certamente a referir-se a uma fraude punível, ou seja, que tenha causado uma diminuição de receitas de valor superior a 15.000 €, já que abaixo desse valor o comportamento é punível e qualificado apenas como contra-ordenação e não como “fraude” fiscal (art. 118º do RGIT).

Para além desta referência aos factos previstos no art. 103º, sem excluir o n.º 2 e utilizando a expressão “fraude”, há elementos sistemáticos relevantes. A técnica legislativa de agravar a moldura penal dos crimes, através de circunstâncias qualificativas, traduz sempre uma remissão para o crime simples (género), destacando um especial modo de realização (espécie). O crime qualificado é assim, por definição, aquele que contém todos os elementos do crime simples, com a particularidade de ser cometido em determinadas circunstâncias.

Finalmente, a circunstância qualificativa a que se refere o n.º 2 do art. 104º decorre do facto de o crime de fraude simples ser cometido através da “utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes”. Esta incriminação especial resultou da utilização em larga escala de “facturas falsas” (ISABEL MARQUES DA SILVA, ob. cit. pág. 164, “… processos que invadiram os tribunais portugueses…”) e, portanto, de se ter querido combater uma forma especialmente em voga de cometer o crime de fraude fiscal. Não se vê qualquer razão especial para que o crime de fraude fiscal cometido através de facturas falsas ou documentos equivalentes deva ser punido, mesmo que a vantagem patrimonial ilegítima seja inferior a € 15.000. Toda a criminalidade fiscal visa combater a fuga ao pagamento de obrigações tributárias e, por isso, o bem jurídico comum é a obtenção das receitas fiscais devidas, elevado à categoria de bem jurídico penalmente relevante, por se tratar de um bem comum da maior importância para o ordenamento da sociedade. O direito tributário tem mecanismos próprios para executar as dívidas fiscais e não tem sentido, nos dias de hoje, criminalizar o incumprimento das obrigações pecuniárias. Por isso, o legislador recorre ao direito penal para punir as obrigações acessórias, através das quais se podem ocultar ou alterar as futuras obrigações pecuniárias. É certo que pune a violação de obrigações acessórias, mas a razão de ser da punição dessas obrigações é sempre evitar a frustração do recebimento das receitas tributárias. Daí que o valor do prejuízo fiscal tenha, no direito penal tributário, tão grande relevância, sendo em função desse valor que, afinal, se demarca o crime da contra-ordenação (cfr. art. 118º do RGIT). A existência de um determinado valor do prejuízo fiscal (vantagem patrimonial ilegítima), a demarcar o crime da contra-ordenação, significa que o legislador entende que os prejuízos mais pequenos não devem ser criminalizados, qualquer que seja a obrigação acessória que tenha sido frustrada e qualquer que seja o meio utilizado para tal. Atenta a finalidade da punição (visando sempre o cumprimento de obrigações pecuniárias), não faria sentido que o prejuízo fiscal fosse irrelevante para criminalizar a conduta, mas já fosse bastante para recortar o tipo de crime qualificado pelo meio utilizado. Se fosse essa a intenção do legislador, teria criminalizado com total autonomia a conduta em causa, o que não fez neste caso. Ou seja, as razões que levaram o legislador a estabelecer, no n.º 2 do art. 103º, um limiar da punibilidade como crime, tanto se verificam quando o crime seja cometido através da utilização de facturas falsas, como quando seja cometido através da celebração de um negócio jurídico simulado, pois está sempre em causa evitar comportamentos que visem obter vantagens patrimoniais fiscalmente ilícitas.

É certo que se o meio utilizado for crime autonomamente punível – falsificação ou burla, por exemplo – nada obstará à sua punição, desde que o prejuízo causado seja inferior a 15.000 €.

Tal decorre, sem dúvida, do disposto no n.º 3 do art. 104º do RGIT, quando refere que não haverá punição autónoma, excepto se as condutas que integrarem o crime de fraude fiscal forem punidas mais gravemente (“os factos previstos nas alíneas d) e e) … não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber”). Por isso, se a conduta do arguido não for punível, por força do disposto no art. 103º, 2 do RGIT, nada obsta a que a mesma seja punível se couber noutro tipo de ilícito, v.g. o crime de falsificação de documentos.

Do exposto resulta que a decisão recorrida está apenas parcialmente correcta.
Está correcta, quando julgou extinto o procedimento criminal relativamente ao crime de fraude fiscal qualificada, imputado aos arguidos. Mas não está completamente certa, pois tornava-se necessário tomar posição sobre a qualificação jurídica dos factos da acusação (contra-ordenação p. e p. pelo art. 118º do RGIT, ou outro tipo de ilícito), tendo em vista o disposto no art. 358º ou 359º do CPP, após ter chegado à conclusão de que os factos imputados na acusação (e que integravam o crime de fraude fiscal qualificada na data da sua prática) deixaram de ser crime, face à alteração do art. 103º, n.º 2, introduzida pela Lei nº. 60-A/2005, de 30 de Dezembro.

Nestes termos, impõe-se conceder parcial provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida quanto à não verificação do crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 104°, n.º 1, alíneas a) e e) e n.º 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, revogando-a todavia na parte em que julgou desde logo extinto todo o procedimento criminal, sem tomar posição sobre diversa qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.

3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder parcial provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida quanto à não verificação do crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 104°, n.º 1, alíneas a) e e) e n.º 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, revogando todavia a mesma na parte em que julgou desde logo extinto todo o procedimento criminal contra os arguidos, sem ter apreciado a subsistência de tal procedimento, relativamente aos factos constantes da acusação, com outra qualificação jurídica.
Sem custas.

Porto, 23/03/2011
Élia Costa de Mendonça São Pedro
Pedro Álvaro de Sousa Donas Botto Fernando