Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0726387
Nº Convencional: JTRP00040907
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: CHEQUE
PRESCRIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
MÚTUO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
Nº do Documento: RP200712190726387
Data do Acordão: 12/19/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 260 - FLS 194.
Área Temática: .
Sumário: I - Se dos títulos de crédito prescritos não consta a causa da obrigação, tal como a qualquer outro documento particular nas mesmas condições, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam seja emergência ou não de um negócio jurídico formal; no primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não constitui título executivo.
II - A emissão de cheques pré-datados, por parte do executado, com ordem de pagamento dada para data futura, não é suficiente à prova da validade de contrato de mútuo de valor superior a € 20.000,00 e não se encontram em condições de ser dados á execução contratos inválidos por nulidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo especial de oposição à execução nº…./06.4YYPRT-A, do .º Juízo de Execução do Porto.
Oponente – B………. .
Exequente/Apelante – C………. .

Tese do Oponente
A data de emissão dos dois cheques dados à execução é de 12/11/2005 – assim, porque não se verificou qualquer interrupção do prazo prescricional, quando a execução foi intentada, em 27/7/06, já há muito que havia decorrido a prescrição por decurso do prazo (seis meses, contados do termo do prazo de apresentação, consoante artº 52º L.U.C.).
Os cheques nunca foram assumidos como um meio de pagamento, antes como uma garantia anexa decorrente de um contrato de mútuo verbalmente celebrado e que o deveria ter sido por escritura pública – artº 1143º C.Civ., como decorre desde logo da alegação do Exequente, no petitório executivo.
Sendo a obrigação que fundamentou a emissão do cheque nula, então não vale esse cheque como título executivo.
Tese do Exequente
É o próprio Oponente quem confessa a celebração do contrato de mútuo e não alega que pagou a quantia reclamada.
Os cheques enquanto documentos particulares (quirógrafos) valem como títulos executivos, desde que o possa ser a obrigação causal, que o Exequente invocou na petição executiva.

Sentença Recorrida
O Mmº Juiz “a quo”, subscrevendo, em linhas gerais, a tese do Oponente, julgou a oposição à execução procedente, com a consequente extinção dessa mesma execução.

Conclusões do Recurso de Apelação (resenha):
1º - O Executado aceita que celebrou com o Exequente um contrato de mútuo pelo valor e prazo indicados no requerimento executivo, com vencimento dos juros acordados.
2º - Os cheques dos autos não titulam o contrato de mútuo celebrado e nulo porque o cheque que titulou o mútuo não consta dos autos. Foi emitido pelo exequente, a favor do Executado e este, depois de o apresentar a pagamento, integrou no património o valor pecuniário equivalente.
3º - Como bem se decidiu no Ac.R.P. 22/11/05, pº nº 0524239, in dgsi.pt, o cheque que titule a devolução de dinheiro mutuado, quando o mútuo é nulo por falta de forma, não deixa de ser título executivo, desde que cumpra os requisitos da L.U.C..
4º - Os cheques dos autos cumprem todos os requisitos da L.U.C. quanto ao preenchimento, entrega, assinatura, apresentação a pagamento e certificação da causa da devolução.
5º - Nos termos da al.c) do artº 46º C.P.Civ., os documentos particulares assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, são títulos executivos.
6º - pelo menos relativamente ao cheque de € 49.880, é inequívoco que o mesmo representa a obrigação de pagamento na modalidade de “datio pro solvendo”, obrigação que não se extingue com a entrega do cheque, é autónoma da relação subjacente e não é afectada pela nulidade desta.
7º - A douta sentença recorrida violou os preceitos dos artºs 46º c) C.P.Civ., 221º nº1, 223º nº1 e 458º C.Civ.

O Oponente não apresentou contra-alegações.

Factos Apurados
1 – O Exequente apresentou à execução os documentos de fls. 8 dos autos de execução de que estes constituem um apenso, denominados “cheques”, a saber: cheque nº ………., no montante de € 48.880, com data de 12/11/05, sacado sobre o D………., emitido pelo
Oponente/Executado B………., à ordem do aqui Exequente.
2 – No requerimento executivo apresentado, na parte atinente aos “Factos”, o Exequente alegou, além do mais, o seguinte:
- Em 12/5/05, o Exequente emprestou a quantia de € 49.880, pelo prazo de seis meses, capital esse que foi convencionado seria remunerado à taxa anual de 8%.
- Nesse mesmo dia, para titular a obrigação de reembolso do capital mutuado e a obrigação de pagamento dos juros convencionados, o Executado preencheu pelo seu punho, assinou e entregou ao Exequente os seguintes cheques, ora dados à execução, sacados sobre a conta nº …………, do D………. (……….):
a) nº ………., no valor de € 49.880;
b) nº ………., no valor de € 1.995,20.
- ambos os cheques foram pré-datados, com a data de 12/11/05.

Fundamentos
A pretensão da Agravante ancora-se unicamente no questionar do bem fundado da decisão impugnada. O cheque dos autos, que se aceita prescrito, pode importar a constituição ou reconhecimento de uma obrigação pecuniária (na terminologia do artº 46º al.c) C.P.Civ.), qual seja a obrigação de o executado, na sequência da nulidade de um contrato de mútuo, devolver o capital mutuado?
I
A resposta à pretensão do Exequente é unanimemente negativa na doutrina.
Torna-se ocioso discorrer sobre uma matéria que revelou ser do perfeito domínio, quer das partes, através dos seus Exmºs Mandatários, quer do Mmº Juiz “a quo”, pese embora ser ainda possível tentar aludir a alguns aspectos a salientar na controvérsia, decisivos para a nossa convicção.
Basicamente, a al.c) do artº 46º C.P.Civ., na redacção da reforma de 95, deixou de autonomizar, na categoria geral dos documentos particulares assinados pelo devedor, os títulos de crédito referidos na redacção anterior do preceito; é indiscutido e, neste momento, indiscutível que tais documentos continuam porém, enquanto títulos de crédito, a deter força executiva.
Mas sabe-se como o mútuo dos autos, base e fundamento da emissão dos cheques que se pretendem dar à execução, titulado por dois cheques “pré-datados” (melhor se diriam “post-datados”), mútuo esse de valor superior a € 20.000, deveria ter sido celebrado por escritura pública – artº 1143º C.Civ.
Em consonância, o que geralmente se afirma é que “se dos títulos de crédito prescritos não consta a causa da obrigação, tal como a qualquer outro documento particular nas mesmas condições, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam seja emergência ou não de um negócio jurídico formal; no primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não constitui título executivo” (L. de Freitas, A Acção Executiva, 4ª ed., § 3.5.5, Lopes do Rego, Comentários, artº 46º, nota IV, S.T.J. 29/1/02 Col.I/64, Acs.S.T.J. in dgsi.pt de 5/7/07, 9/3/04 e 16/1/01, com nºs, respectivamente, 07A1999 – Fonseca Ramos, 03B4109 – Araújo Barros e 01B2089 – Oliveira Barros; ex abundanti, Acs.R.P. in dgsi.pt de 13/2/07, 13/10/05, 30/5/05, 6/10/04 e 2/11/00, com nºs, respectivamente, 0627123 – Alziro Cardoso, 0534550 – Fernando Batista, 0551718 - Rafael Arranja, 0453923 – Fernandes do Vale e 0030922 – Norberto Brandão, este apenas sumariado, e Ac.R.G. 19/X/06 Col.IV/273 e Ac.R.G. 19/X/06 Col.IV/279).
A afirmação estriba-se na doutrina tradicional, segundo a qual, apesar de o dito esclarecimento não constar expressamente da letra da al.c) do artº 46º, “nos casos em que a lei substantiva exija certas condições de forma para constituição ou prova da obrigação, o título que não obedeça a tais condições não pode servir para exigir executivamente a dita obrigação” (Lopes-Cardoso, Manual, § 11); ou, mais modernamente, “a exequibilidade intrínseca também é afectada por uma excepção que atinge o próprio poder de aquisição da prestação: é o caso, por exemplo, na nulidade da venda de um imóvel por escrito particular” (Teixeira de Sousa, Estudos, pg. 610).
Na verdade, apenas se lê na citada norma, proveniente da redacção de 95, que “à execução podem servir de base os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artº 805º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto”.
Mas obviamente a lei substantiva não pode ser postergada pela lei adjectiva, menos ainda pela lei adjectiva que alcandora o Autor à privilegiada condição de Exequente – apenas pela via do título executivo não se pode invocar a validade de um negócio (a matéria não é discutida no processo, apenas nos referimos a ela por facilidade de raciocínio).
Note-se que o cheque prescrito não pode ter o tratamento juscivilístico de um normal cheque rectius de uma obrigação cambiária, independente da obrigação que lhe subjaz (distinção que releva, sobre o mais, nas relações imediatas).
A questão prende-se também com a necessária distinção que, no processo executivo, se deve efectuar entre a causa de pedir e o título executivo: a primeira, “é o elemento que, com o pedido, identifica a pretensão da parte e que, por isso, ajuda a decidir da procedência desta (mediante a prévia averiguação da sua existência, da sua validade, da sua eficácia, etc.)”; constitui o elemento definidor do objecto da acção (ut A. Varela, Revista Decana, 121º/148).
Já o título executivo é o documento donde consta, não donde nasce, a obrigação cuja prestação se pretende obter por via coactiva – “utilizando uma outra imagem, destinada a ilustrar a função do título, dir-se-á que o título executivo é uma espécie de “escada magirus” necessária para o portador ascender imediatamente ao andar nobre da jurisdição cível – que é o da realização coactiva da prestação a que o queixoso faz jus – em vez de entrar pelo rés-do-chão do edifício judiciário, onde normalmente se discute a existência e a violação do direito que o demandante se arroga” (A.Varela, op. e loc. cits.).
O artº 46º (sob a epígrafe – espécies de títulos executivos) não posterga a necessária existência de uma causa de pedir na execução, mas completa tal necessidade.
Em suma, o caso dos autos, cabe na perfeição nas considerações supra expendidas – a subscrição de cheques pré-datados, por parte do Executado, com ordem de pagamento dada para data futura, não são suficientes à prova da validade do contrato e não se encontram em condições de ser dados à execução contratos inválidos por nulidade.
II
Algumas linhas, porém, para o invocado Ac.R.P. 22/11/05 in dgsi.pt, pº nº 0524239, relator: Cândido Lemos.
Ali se escreveu textualmente, na fundamentação de direito:
“O cheque que representa o mútuo nulo ou que lhe serve de garantia, é inquinado pela sorte do contrato que lhe subjaz, não podendo servir de título executivo.”
“Mas os cheques aqui dados à execução não pertencem a nenhuma destas categorias.”
“São cheques de pagamento ou de restituição da quantia mutuada.”
Ou seja:
O aresto não exprime uma opinião diferente da doutrina consensual; apenas a discussão se deslocou ali para o significado dos cheques, ali mero pagamento da quantia mutuada (na tese do também ali Exequente “assunção unilateral de uma dívida”), aqui prova e garantia do negócio.
Note-se que, se o cheque dos autos fosse um título cambiário inteiramente válido, a execução poderia prosseguir com base no título, isto porque “só se justifica o incumprimento da obrigação cambiária, de sua natureza abstracta quando se mostre ou que não existe, ou quando não pode ter o efeito que o credor lhe atribui, ou quando haja alguma excepção a opor ao cumprimento da obrigação eu essa relação jurídica fez nascer” (neste sentido, S.T.J. 12/11/87 Bol.371/464 e demais doutrina aí citada) – e nenhum destes casos se aplica à nulidade por falta de forma do mútuo subjacente à emissão de cheque válido.
Vimos porém já como o caso dos autos é diferente e não existe título cambiário invocável, tendo o Exequente que se ater exclusivamente a um contrato de mútuo cuja forma é tarifada e, inobservada, causa a nulidade do negócio – artº 220º C.Civ.
A sentença proferida merece assim ser confirmada.

Resumindo a fundamentação:
I – Se dos títulos de crédito prescritos não consta a causa da obrigação, tal como a qualquer outro documento particular nas mesmas condições, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam seja emergência ou não de um negócio jurídico formal; no primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não constitui título executivo.
II – A emissão de cheques pré-datados, por parte do Executado, com ordem de pagamento dada para data futura, não é suficiente à prova da validade de contrato de mútuo de valor superior a € 20.000 e não se encontram em condições de ser dados à execução contratos inválidos por nulidade.
III – Não se aplica à nulidade por falta de forma do mútuo subjacente à emissão de cheque prescrito a doutrina segundo a qual “só se justifica o incumprimento da obrigação cambiária, de sua natureza abstracta quando se mostre ou que não existe, ou quando não pode ter o efeito que o credor lhe atribui, ou quando haja alguma excepção a opor ao cumprimento da obrigação que essa relação jurídica fez nascer” (por todos, Ac.S.T.J. 12/11/87 Bol.371/464), válida apenas para títulos cambiários exequíveis por si, isto é, com base na própria relação cambiária.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, acorda-se neste Tribunal da Relação:
Julgar o recurso improcedente, por não provado, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.

Porto, 19 de Dezembro de 2007
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa